MARIO DE ANDRADE - PAI DO MODERNISMO NO BRASIL (PARA ENTENDER O MODERNO II)

Mário começou versejando castigadamente à antiga. O soneto, pertencente ao arquivo de Oneyda Alvarenga, é um dos 15 arrolados por Mário para chegarem às mãos de do poeta Vicente de Carvalho. E chegaram. Como, porém, já não direi o poeta, mas o judicioso Vicente de Carvalho não se dignou de se manifestar a respeito dos ditos sonetos, Mário começou “a cultivar um complexo de inferioridade feliz” o qual, de sua vez, o deixou “solto, livre, irresponsável, desligado dos (seus) ídolos parnasianos, curioso de todas as inovações, sequaz incondicional de todas as revoltas” (in “História do Modernismo Brasileiro”, de Mário da Silva Brito).”

Coleção Nossos Clássicos – Mário de Andadre, Poesia

Soneto

Tanta lágrima hei já, Senhora minha,

Derramado dos olhos sofredores,

Que se foram com elas meus ardores

E a ânsia de amar que de teus dons me vinha.

Todo o pranto chorei. Todo o que tinha

Caiu-me ao peito cheio de esplendores,

E em vez de aí formar terras melhores,

Tornou minha sáfara e maninha.

E foi tal o chorar por mim vertido,

E tais as dores, tantas as tristezas

Que me arrancou do peito vossa graça,

Que de muito perder, tudo hei perdido;

Não vejo mais surpresa nas surpresas

E nem sofrer sei mais, por mor desgraça.

***

Mário nasce numa fase das mais agitadas da história brasileira, um pouco depois da abolição da escravatura e da proclamação da República. O mercado interno era abastecido pelo sistema patriarcal de agricultura, muito forte notadamente no sul do Brasil, desenvolvido ao longo do Império. Era uma País que, indo-se bem, “se deixava ser”, numa expressão de Mário. A nova ordem diz-se, desde 1810, vinha sendo apoiada pelo governo de Sua Majestade Britânica, faminto de novos mercados.

Quando Mário publica seu primeiro livro Há uma Gota de Sangue em Cada Poema - 1917, o mundo é reflexo do que se continha nele e seus versos descrevem bem o sentimento do poeta ante a realidade que se apresenta, para, ao final, perguntar: “E acaso alguém tem razão?”

Do ponto de vista de sua poética, a poesia de Mário de Andrade exibe nítidos estágios de evolução: este seu primeiro livro Há uma Gota de Sangue em Cada Poema - 1917, mostra poemas ainda num estilo mais conservador. A preocupação é usar a poesia enquanto instrumento de paz e denunciar os horrores da primeira guerra mundial. É nesse contexto que se situa o poema seguinte:

OS CARNÍVOROS

Quando a paz vier de novo, nova e franca,

passar nestas estradas e caminhos,

novas aves talvez e novos ninhos

hão-de agitar-se pela manhã branca...

Novos ventos virão da serra,

úmidos, rindo-se, esfusiar no prado;

e novamente, regoando a terra,

ir-se há, rangendo, o arado...

Pouco tempo depois, pela estrada os viandantes

verão cobrindo os campos marginais,

os brocados trementes, ampliondeantes,

as roupagens custosas dos trigais...

Virão novas colheitas,

Virão risadas a remir fadigas,

Virão manhãs de acordar cedo,

virão as tardes feitas

de conversas à sombra do arvoredo,

virão as noites de bailados e cantigas!...

Toda a população ir-se há nos vales

colher o trigo novo e lourejante;

e, na pressa afanosa, bem distante

lhe passará da idéia tanta luta,

tantos passados males!

Pelo campo ceifado, à Ave-Maria,

na tarde enxuta

e fria,

enquanto o vento remurmura, meigo e brando,

mulheres de Milliet, robustas e curvadas,

irão glanando, irão glanando.

Tudo será colheita e riso – Então.

depois de tantas fomes e misérias,

de tantas alegrias apagadas,

de tantas raivas deletérias,

os celeiros de novo se encherão.

Mas o trigo abastoso dos celeiros

relembrará o sangue, a vida,

os penosos momentos derradeiros

duma geração toda destruída...

Olhai! Hoje o trigal é mais verde e mais forte!

O chão foi adubado a carne e sangue...

Que importa haja caído um exército exangue,

se deu a vida ao trigo tanta morte!

Este trigo é pão e alento!

Vós que matastes com luxúria e sanha,

vinde buscar o premio: é o alimento...

Ei-lo em raudal! Em nuvem, em montanha!

Este é o trigo que nutre e revigora!

É para todos! Basta abrir as mãos!

Vinde buscá-lo!... – Vamos ver agora,

Quem comerá a carne dos irmãos!

Mário de Andrade, Há Uma Gota de Sangue em cada Poema (1917)

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Parece que sou todo instinto. Não é verdade. Há no meu livro e não me desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista”

(Prefácio Interessantíssimo)

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INSPIRAÇÃO

São Paulo! comoção de minha vida ...

Os meus amores são flores feitas de original ...

Arlequinal! ... Traje de losangos .... Cinza e ouro ....

Luz e bruma ... Forno e inverno morno ....

Elegâncias sutis sem escândalos , sem ciúmes ...

Perfumes de Paris ... Aryz !

Bofetadas líricas no Trianon ... Algodoal !...

São Paulo comoção de minha vida !

Galicismo a berrar nos desertos da América !

(Mário de Andrade, 1921 - Paulicéia Desvairada)

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31.10.09