Ensaio sobre O Triste Fim Policarpo Quaresma.

A dimensão que desejamos abordar no livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma” é a da falta de adaptação do personagem central, Policarpo Quaresma, à sociedade retratada por Lima Barreto, ou seja, o Brasil do período inicial da República Velha.

Pretendemos mostrar que, apesar de carregar fortes traços do nacionalismo ufanista, então em voga na sociedade, Quaresma vai passar por um processo de distinção, graças à sua humanidade e sensibilidade, o que o leva a refletir sobre o seu tempo. Mostraremos, assim, como o nosso personagem coloca-se, devido a esse processo, numa condição de estranho frente a essa sociedade que, por basear-se na irreflexão, não pode aceitá-lo como um cidadão normal.

O pensamento crítico foi transformado em instrumento econômico pelo avanço técnico. Tal forma de pensar, pragmática e utilitarista, é um dos traços mais característicos dessa sociedade. Todos são uniformes e quem se coloca contra isso é imediatamente combatido. Trata-se, como afirmou Marcuse, de uma sociedade unidimensional. Os conflitos ou qualquer antagonismo são diluídos na identidade hegemônica.

Lima Barreto nos revelou, em diversos momentos da sua obra, os mecanismo criados para impedir qualquer tipo de reflexão na sociedade capitalista. Por exemplo, no capítulo quatro “Desastrosas conseqüências de um requerimento” da primeira parte do livro, o major Quaresma manda um requerimento propondo o tupi-guarani como língua oficial da nação. Por esse ato ele sofre o escárnio da imprensa. A formadora da opinião pública não pode aceitar nenhuma diferença.

No entanto, o que é ainda mais caracterizador é a hostilidade que o meio burocrático, em que o protagonista trabalhava desde muito tempo, demonstrou pelo ato de ousadia do major.

A burocracia não deve, afinal, admitir qualquer coisa que transcenda a sua mediocridade. Rotina construída por papéis, ofícios e outros critérios usados para garantir eficiência ou, no caso dos meios econômicos, produtividade.

Talvez exista um forte traço biográfico nessa questão, pois, o autor ingressou em 1903, como amanuense, na secretária da guerra.

A sociedade unidimensional privilegiará uma visão das coisas que inverte todos os termos, fazendo com que a imbecilidade estabeleça-se como padrão e, por outro lado, a genialidade passe a ser considerada como algo suspeito ou marginal: “É como se se visse no portador da superioridade um traidor à mediocridade, ao anonimato papeleiro.” (BARRETO, 1989, p. 27). Não é por acaso que esse ato de pensar e propor algo desencadeará, posteriormente, a reclusão de Policarpo, como se estivesse louco, ao hospício. Outro traço, aliás, que nos remete à biografia do autor.

Não se trata de defender simplesmente o nacionalismo das propostas de Quaresma, mas a coragem de sua posição livre do interesse pelo dinheiro, glória ou posição social. Isto o distanciará do padrão estabelecido, por isso mesmo, seu comportamento é considerado como desvio e daí a necessidade do seu isolamento, primeiro no hospício e depois na prisão.

A marginalidade social que o personagem sofre deve ser considerada como parte do quadro mais geral traçado na obra de Lima Barreto, um quadro opressivo e de horror, típico de uma sociedade irredutível com qualquer individualidade que se contraponha a ela. Policarpo representa, por suas atitudes, pensamentos e reflexões, esse tipo de individualidade. Vítima perfeita e esperada dentro das estruturas criadas por tal sociedade.

È importante também distinguir o processo de individuação que Quaresma vivenciará do típico individualismo que marca a sociedade burguesa. Aquele é um processo que envolve dor, busca por conhecimento, reconhecimento diante das limitações enfrentadas diante da realidade social adversa e, conseqüentemente, valorização dos valores humanos. A dor nesse processo advém da perda das referências até então aceitas, ou seja, da racionalidade burocrática ou mecânica que pretende explicar tudo a partir de modelos preestabelecidos pelo poder. Tal será o processo vivenciado pelo major.

Na visão do escritor, essa inversão que promove a mediocridade em detrimento da genialidade, seria conseqüência da ganância, do arrivismo e do individualismo. Antinomias de uma cultura que se moderniza, que deseja estabelecer a regra como critério, isentando-se de qualquer sentimentalismo, de qualquer ética e de qualquer traço da antiga solidariedade. A burocracia formadora de indivíduos inertes e anestesiados diante de uma nova forma assumida pela velha classe dirigente.

Diante da incompreensão, já adentrando na segunda parte do romance, encontramos a tentativa de Policarpo de mudar a sua vida, até então tipicamente urbana, para uma vida agrícola. A mudança de Quaresma, caracterizada pela sua tentativa agrícola, revela sua desilusão com o sistema e o desejo de abandonar todo o convívio social: “Os misantropos recriam no ermo um tipo de existência ideal, que é o inverso e a única alternativa digna para a sociedade de que se exilaram”. (SEVICENKO, 1983, p. 182).

No entanto, esse isolamento é impossível de se concretizar. As lutas políticas de Curuzu (município escolhido por Policarpo para se estabelecer, no sítio chamado, ironicamente, de Sossego) logo começam a interferir na sua nova atividade.

Outro obstáculo para a sua vocação de agricultor é o das formigas. Problema que parece intransponível para um isolado sonhador. A voracidade do flagelo recorta todos os seus projetos, deixando-os secos, símbolos de desejos que jamais se realizarão sem uma profunda mudança das condições de vida da sociedade em geral.

Quaresma volta-se então para a ilusão de uma autoridade forte, que resolvesse, de uma vez por todas, os problemas do país. É com a esperança nesse salvador da pátria que Policarpo deixa o seu recanto para ajudar o presidente Floriano Peixoto contra a Revolta da Armada (1893). Revive-se também no romance a aventura, tão comum na história da América Latina, de que um golpe, militares, patriotismo e canhões mudariam a sociedade injusta. Porém, o sonho de uma nação mais humana, mais uma vez, não se realizaria.

Tudo o que o nosso personagem recebe do governo em troca do seu apoio é o título de “visionário”, sobretudo, após apresentar mais um memorando propondo mudanças e sugestões de apoio à agricultura. Note-se a influência da cultura burocrática na formação do herói que, mesmo quando reivindica, não contesta a ordem estabelecida pelos superiores. Comportamento típico de uma classe formada na perspectiva do pensamento Positivista do século XIX.

Com o final da Revolta da Armada, duramente reprimida como todos os movimentos que ameaçassem a ordem estabelecida, Quaresma, engajado no regimento “Cruzeiro do Sul”, passa a guarnecer a ilha das Enxadas, desempenhando o papel de carcereiro-chefe dos pobres condenados que ousaram desafiar o regime dos oligarcas. Compreendemos que esse ponto é central no processo de formação de Policarpo, pois, a partir desse momento de desilusão e descrença com o sistema, existe a possibilidade de uma reflexão sobre todos os seus projetos de vida.

O episódio em que um emissário do governo Floriano vai até a ilha e escolhe prisioneiros para serem executados a esmo, demonstra como o poder constitui-se acima de todas as regras. Profundamente chocado Quaresma, não compreendendo os mecanismos da política republicana brasileira, escreve uma carta de protesto dirigida ao presidente. Ele se mantém humano e solidário, não se contém diante da carnificina e, por isso mesmo, também será vítima do Estado.

Por esse ato, acaba preso na Ilha das Cabras, acusado de traição, aguardando por sua execução. Na prisão, conclui que não viveu nada, não realizou nenhum dos seus sonhos. Buscou apenas um ideal, tentou contribuir para a prosperidade de sua pátria (noção que ele percebe ser abstrata e construída pela ideologia dos dominantes) e tudo o que teve em troca foi o encarceramento e a condenação à morte.

Ficou o desalento e a triste sensação de não ter sido feliz. Os inúmeros atos de patriotismo e abnegação não trouxeram satisfação. Basta lembramos do caso do tupi, da tentativa agrícola e dos seus combates a favor do Marechal.

Não obstante, o que realmente importa foi o seu processo de individuação, rompendo com antigas ilusões patrióticas e ideológicas, mesmo que o preço de tal ruptura tenha sido tão alto.

Finalmente é bom recordar que os personagens Ricardo Coração dos Outros e a afilhada de Quaresma, Olga, também lutaram pela preservação da solidariedade e de uma ética, quando tentaram salvar Policarpo da morte. Torna-se claro, assim, a importância que Lima Barreto deu à solidariedade como grande força da humanidade.

A sua tentativa de recuperar o indivíduo autônomo e consciente, no entanto, parece mais e mais distante de se concretizar.

Referências Bibliográficas

BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Editora Moderna, 1989.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

SEVICENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983.

Marques Nunes
Enviado por Marques Nunes em 04/11/2009
Código do texto: T1905072
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