A CANA DA CHÃ: LEITURA INTERPRETATIVA (1)


A CANA DA CHà (PAULO CAMELO)

O carro canta o seu gemido rouco,
os bois de coice seguem devagar
mas o carreiro não pode esperar,
que o engenho vai moer daqui a pouco.

O seu chicote estala, a vara fura,
e os bois se atiçam, numa pressa vã,
levando a cana que cresceu na chã,
na terra estorricada, terra dura.

Na várzea é bem mais fácil de plantar
e de colher, a água é abundante,
o eito é produtivo e é grossa a cana.

A chã, porém, é fértil e, apesar
de acidentada e do sol escaldante,
a cana é fina, mas é soberana.


Carro
Substantivo masculino.
1.Veículo de rodas para transporte de pessoas ou carga.
6.Parte da máquina de escrever onde é introduzida e fixada a folha de papel, e que se movimenta, ou não, à medida que se produzem as batidas.
7.Tip. Conjunto móvel das prensas planocilíndricas, que inclui o cofre e a mesa de tintagem.

Cantar
Verbo transitivo direto.
1.Dizer ou exprimir por meio do canto.
2.Celebrar em poesia:
7.Bras. Pop. Seduzir ou tentar seduzir valendo-se de palavras ou maneiras hábeis; dar uma cantada em:
11.Produzir sons melodiosos ou cadenciados:

O cantar do galo. 1. O amanhecer.

Gemido
Substantivo masculino.
1.Ato de gemer .
3.Som lastimoso ou plangente.

Boi do coice. 1. Animal que, num carro de bois, faz parte da dupla que se acha diretamente ligada ao veículo; boi de tronco.

Furar
Verbo transitivo direto.
1.Abrir ou fazer furo em; perfurar, esburacar.
2.Penetrar em; introduzir-se por; romper:
7.Abrir caminho, passagem:
9.Romper; vazar:

Atiçar
Verbo transitivo direto.
2.Instigar, promover, fomentar:
3.Excitar, estimular:

Pressa
Substantivo feminino.
1.Velocidade, ligeireza, rapidez:
2.Necessidade intensa de atingir um objetivo, de apressar-se; premência, urgência: 3.Grande afã; azáfama:
4.Precipitação; irreflexão:

Vão
Adjetivo.
1.Vazio, oco.
2.Sem valor; fútil, insignificante.
7.Inútil, baldado, frustrado:

Chã
Substantivo feminino.
1.Terreno plano; planície.
2.Carne da parte interior da coxa do boi.
3.Bras. PB AL V. planalto.

Estorricado
Adjetivo.
1.Muito seco.
2.Muito assado; quase torrado.

Várzea
Substantivo feminino.
1.Planície fértil e cultivada, em um vale.
2.Terra chã.

Plantar
Verbo transitivo direto.
1.Meter (um vegetal) na terra para aí enraizar:
3.Fazer plantação em; amanhar:
8.Introduzir no ânimo; sugerir, insinuar, instilar, implantar:
13.Fazer entrar, ou nascer; insinuar, instilar, incutir:

Colher
Verbo transitivo direto.
1.Tirar, desprender (flores, frutos, folhas) do ramo ou da haste; apanhar:
5.Apanhar, pegar:
11.Apreender, perceber:
18.Depreender, inferir, deduzir:
19.Tirar, apanhar, recolher:
23.Proceder à colheita:

Água
Substantivo feminino.
1.Líquido incolor, sem cheiro ou sabor, essencial à vida; congela a 0°C e entra em ebulição a 100°C.
4.Qualquer das secreções orgânicas aquosas: suor, lágrima, saliva, urina, humor, etc.:
11.Qualidade, predicado, talento.

Abundante
Adjetivo de dois gêneros.
1.Que tem ou existe em abundância; farto, abundoso:
2.Em grande número; numeroso: .
4.Fértil, fecundo, abundoso.
5.Falador, loquaz.

Eito
Substantivo masculino.
1.Seqüência ou série de coisas que estão na mesma direção ou linha.
2.Bras. Limpeza de uma plantação por turmas que usam enxadas.
3.Bras. Roça onde trabalhavam escravos:
4.P. ext. Bras. Pop. Trabalho intenso.

Produtivo
Adjetivo.
1.Que produz; fértil.
2.Rendoso, proveitoso.

Grosso
Adjetivo.
1.De grande diâmetro:
8.Diz-se daquilo que, em comparação com outro da mesma espécie, tem maior volume, espessura, encorpadura, etc.:
16.Tip. Caligr. Qualidade dos elementos espessos do traçado das letras.

Cana
Substantivo feminino.
1.Bras. Gír. Situação difícil:

Acidentado
Adjetivo.
1.Que tem acidentes; irregular, desigual:
5.Relevo que apresenta desnivelamentos marcantes.

Fina
Adjetivo.
1.Que não é grosso; delgado.
9.Que é de boa qualidade; precioso, excelente:
10.Apurado, escolhido:
13.Extremoso, delicado:
15.Sagaz, ladino, astuto.
16.Tip. V. claro (21).  21.Tip. Diz-se do tipo (ou fio) de traços mais delgados que o normal; magro, fino

Soberana
Adjetivo.
3.Fig. Supremo, absoluto:
4.Fig. Excelente, magnífico:
5.Fig. Altivo, arrogante: .
6.Fig. Eficiente, eficaz; poderoso:



Todo o texto do poema é baseado numa busca de equilíbrio. Em relação ao conteúdo semântico, tem-se nas duas primeiras estrofes o desenvolvimento temático da cana já colhida, sendo transportada para o engenho pelo carro de bois, conduzido por um carreiro que coloca urgência no trabalho, no seguimento do carro, porque a moenda logo irá funcionar. O produto da colheita não é uma cana qualquer, mas sim a cana que cresceu num solo aparentemente infértil, numa região inóspita (a chã) onde o solo é acidentado, chove pouco e a terra é dura. Nessa parte do poema, são confrontadas a lentidão dos bois e a pressa do carreiro. No primeiro terceto, nova oposição, entre dois tipos de solo de cultivo; a chã, a terra estorricada e dura, e a várzea, aparentemente mais fértil, ao menos de plantio mais fácil, solo mais macio, melhor provido de umidade, do qual será colhido um produto mais taludo. Mas logo vem outra confrontação e uma constatação. Apesar das condições que seriam consideradas adversas, o solo duro e ressequido produz uma cana que embora fina, é magnífica, de excelente qualidade. O ritmo do poema, um soneto italiano em decassílabos, curiosamente parece arrastar a leitura. A alternância das porções de sentido, a distribuição das palavras entre monossílabos, dissílabos e trissílabos contra apenas seis polissílabos, combinada com a  alternância entre versos sáficos e heróicos conduz a uma leitura que evolui devagar, pausadamente. Esse ritmo impede que o leitor deixe de notar, em cada verso, a ideia enunciada e a mensagem nela contida. Associado à imagem dos bois pesados e lentos, do próprio carro, que mais parece arrastar-se do que deslizar, o ritmo atribui ao poema o peso provocado pela gravidade. Nesse enredo que parece se desenvolve em câmara lenta, desfilam as tríades que compõem a essência de cada estrofe. Assim é que se vai notando o carro, os bois e o carreiro; o chicote, a cana e a terra; a várzea, a água e a fertilidade; a chã, o sol e a excelência. Um dos conteúdos que podem ser aqui destacados é o da relação do produto com o meio, por extensão do homem com o ambiente. Este, enquanto hostil, exige dos elementos a adaptação necessária, e a busca pela sobrevivência e acaba produzindo a excelência. Há ainda uma observação a respeito das aparências, que podem ser enganadoras. A cana mais fina é, digamos, mais apurada, quiçá depurada, e o seu sumo é o de melhor qualidade. O homem, que vive e cresce em ambiente que se lhe opõe dificuldade, tem ali seu caráter forjado na adversidade, mas nem por isso é inferior a quem cresce em meio a facilidades; pelo contrário, está implícita a condição de que o ser humano. oriundo de um ambiente aparentemente adverso, no esforço para superar o que lhe é contrário, acaba por atingir patamares elevados de qualidade física e moral. A par de uma leitura relacionada ao ser humano pode-se ainda, no nível semântico notar, embora com menor força, a questão da sexualidade varonil, veja-se os significados de: cana/ furar/ atiçar/ plantar/ colher/ água/ abundante/ grossa... e do labor poético conforme possibilidade sugerida pelos vocábulos: carro/ cantar/ água/ abundante/ grossa/ fina.

O Soneto é formado por versos heróicos e sáficos.  No entanto, no terceiro verso do primeiro terceto há um verso em outro ritmo, numa posição em que, entre a lentidão dos bois e a urgência do engenho, está “o carreiro que não pode esperar”. Assim, é a alteração do ritmo o fator a engendrar uma reflexão central na narrativa que pode  aplicar-se a qualquer uma das “marchas” abordadas (a vida, o sexo, a poesia). Em cada um desses aspectos, há um momento em que a urgência sobrepõe-se ao curso natural das coisas e, eventualmente, pode colocar os objetivos a perder ou sacrificar quem está pelo caminho.

No texto aparecem em equilíbrio substantivos, verbos e adjetivos, com ligeira predominância dos substantivos. Nesse conjunto, a quantidade de verbos é bastante grande e faz parte das várias oposições presentes no texto. A um arrastar-se do carro, que segue devagar, uma quantidade elevada de verbos apresenta a ação que se mantém no âmbito da sugestão apenas. A vida, os aspectos nela envolvidos e contidos no poema, se arrasta, de certa forma, à revelia da vontade do ator, de quem a vive, principalmente na juventude, já que este é um poema da fase em que o poeta era mais jovem, contudo, faz-se por colocar nela mais ação, em busca da impressão de vivê-la mais intensamente. No fazer poético e nos relacionamentos amorosos existem períodos idênticos, em que nada parece acontecer e seguimos em busca uma ilusão de ação.

O aspecto fônico tem a presença marcante das vogais /e/ e /i/ , lembrando o chiado do carro, a fricção da madeira contra a madeira. Há as aliterações em /k//t/ /d/ /s/, as mais marcantes, dentais e velares, que juntamente com a predominância das vogais, contrastem o tom claro e causticante do sol sobre uma terra seca e poeirenta contra o escuro da moenda, destino final da cana. Registra-se também uma forte presença de consoantes vibrantes tanto soltas, como intercaladas, tanto fracas, quanto fortes, reforçando toda a dicotomia do poema. A busca do equilíbrio encadeada pelas oposições não é apenas estrutural, conduz à conclusão e reforça a questão semântica central: raramente chove no deserto, mas o mandacaru floresce e suas flores são lindas.
Sobressai mais a flor isolada em luminosidade, cor e impacto, do que aquela que está no meio de um canteiro. A frase de James Joyce , Nós artistas somos como olivas; prensem-nos, teria plena aplicação ao sentido apresentado no poema: em meio hostil forjam-se grandes homens e belos poemas.

Nilza Azzi    (publicado com autorização do autor).