Jimii é o autor do poema sobre o qual focamos a nossa atenção, esboçando uma análise e uma leitura, com a qual esperamos honrar o merecimento do autor.

EU TE TRAÍ

Jimii

Traí. Traí, sim. Foi inevitável
Porque dormias tu pesadamente
Deixei de lado aquele ser amável
Depois que o mal entrou na minha mente

Traí porque não somos mais crianças
Algo dentro de nós envelheceu
Morreram nossas velhas esperanças
Traí porque não eras tu nem eu

Traí porque a casa estava escura
Não me apontes teu dedo acusador
Zerou em mim por ti toda ternura
Odeio te cruzar no corredor

Traí porque morreu nossa alegria
Respeito em nós não mais restou nenhum
Traí e assim gozei sem poesia
A traição não dói somente em um



NÍVEL SEMÂNTICO

O primeiro verso da primeira estrofe é formado por três orações coordenadas assindéticas. Ele apresenta a confissão descarada e reiterada “Traí. Traí, sim.” logo acompanhada da justificativa “Foi inevitável”.  As possibilidades de significado do vocabulário deixam vagas, sem definição, qual foi a traição e quem sofreu essa traição, que pode ser uma infidelidade ou uma denúncia.  A justificativa apresentada é dirigida ao outro de forma reprovadora “dormias pesadamente”, o descuido, a distração, a ineficácia do outro, mas , em relação a si, atribui a um ato exterior à vontade, a mudança de “um ser amável”, (aquele que podia ser amado) para um traidor: “o mal” (opinião desfavorável) que “entrou na minha mente”.

A reiteração reaparece no início de todas as estrofes, repete o esquema confissão e justificativa/explicação:  “Traí porque”, contrapõe traidor e traído, em preparação ao fecho do poema.

Assim, na segunda estrofe, a justificativa é a perda da inocência e do frescor, juntamente com o fim das expectativas, mas também com o fim de uma das virtudes (fé, esperança e caridade). Na segunda estrofe, a traição é reafirmada duas vezes. No último verso, “Traí, porque não eras tu nem eu”, cresce o nível de ambiguidade em relação ao par traidor/traído.  O verso remete à ideia de que ambos não são senão pacientes dessa trama que os envolve. Ao mesmo tempo fazem parte dela e são alheios a ela. As presenças no ato da traição são apenas representações dos atores.

Na terceira estrofe instala-se um elemento sombrio; o “porquê” é a “casa” (o espaço físico, a família, uma empresa, uma repartição pública) “escura” (com pouca luz, mas também escusa, suspeita). É utilizada também uma forma de defesa às avessas “Não me apontes teu dedo acusador”. Pode-se dizer que o poema se constrói sobre o esquema de auto-acusação e auto- defesa, ou simplesmente acusação e defesa: “acusador” em Direito Judicial é aquele a quem compete a acusação (5). O fim do afeto é declarado e, mais que isso, aparece o desafeto: “Odeio te cruzar no corredor”. Cruzar engloba o sentido de acasalamento, onde “cruzar no corredor” poderia ter a conotação francesa de “à la husard” (entre nós, “uma rapidinha”) mas,  pode ser simplesmente “encontrar em um intervalo”.  Tal fato é relatado como odioso.

Na quarta estrofe, a justificativa é a ausência de alegria e a falta de respeito que desencadeia a última reiteração. Neste verso o “gozar”, que deveria remeter ao orgástico e portanto ao pleno, é diminuído pelo “sem  poesia”, que lhe destrói a inteireza e a completude. Dir-se ia que foi um gozo sem real prazer. O fecho do poema traz mais um vez o elemento temático, porém agora na forma do substantivo “traição”, mais uma vez evidenciando o ambíguo: entregar, denunciar ou ainda, ser infiel no amor.  Além disso, há uma elevação do tom, porque se “a traição não dói somente em um”, dói em todos os envolvidos. Contudo, reconhecer que se dói ser traído, dói trair, traz no bojo a noção que na traição há dois culpados; mais do que isso, a constatação de que é o traído o culpado da dor que sente o traidor. Em resumo, ao final pode-se constatar que todo o poema parece simular uma defesa, pode ser entendido como uma acusação, mas é sobretudo uma queixa.


NÍVEL FÔNICO



        EU TE TRAÍ


Tra / í. / Tra / í, / sim. /
Foi / i /ne /vi /   / vel H
Por / que / dor /
mi / as / tu  / pe / sa / da / men  / te S
Dei / xei /  de / 
la / do a / que  / le / ser /  a /   / vel S
De / pois /  que o / 
mal /  em / trou  /  na /  mi / nha /  men  / te S


Tra / í /  por / que /  não / 
so  / mos /  mais /  cri / an  / ças H
Al / go /  den / tro /  de / 
nós  /  em / ve / lhe / ceu H
Mo / rre / ram / 
no / ssas /  ve  / lhas /  es / pe / ran  / ças H
Tra / í / por / que /  não / 
e  /  ras /  tu /  nem /  eu H


Tra / í /  por / que /  a / 
ca  / sa es / ta / va es / cu  / ra H
Não /  me a /
pon / tes /  teu /  de  / do a / cu / sa / dor S
Ze / rou / em / 
mim /  por /  ti  /  to / da /  ter / nu  / ra S
O / de/ io / 
te /  cru / zar  /  no /  co / rre / dor H


Tra / í /  por / que /  mo /
rreu  /  no / ssa a / le / gri / a  H
Res / pei / to em / 
nós /  não /  mais  /  res / tou /  ne / nhum S
Tra / í  / e a /
ssim /  go / zei  /  sem /  po / e / si  / a S
A / 
tra / i / ção /  não /  dói  /  so / men / te em /  um S




O poema é um decassílabo; compõe-se de quatro quartetos com rimas alternadas. Na primeira, terceira e quarta estrofes as rimas são pobres nos versos ímpares e ricas nos versos pares. Na terceira estrofe, todas as rimas são ricas. Na primeira estrofe todas as rimas são femininas; na segunda terceira e quarta estrofes, as rimas são femininas nos verso ímpares e masculinas nos versos pares. Combina versos heróicos e sáficos e os pés jambos, dátilos, anapestos e peônios.

A mais forte alteração do ritmo está na utilização de peônios nos finais dos versos 6 e 7 (cujo sentido é a perda da inocência e a ausência de esperanças); 10, 11, 12  e 13 (que relatam a transição da ternura para o ódio e a perda da alegria; trazendo o traído para uma posição de envolvimento responsável em toda a ação).

Fonemas

Vogais

a: 40
e: 48
i: 26
o: 23
u: 22
nasaladas: 23

Abertas: 111
Fechadas: 48

Ditongos
Orais: 15
Nasais: 5

Hiatos: 13

Consoantes

Surdas

/p/ 10
/t/ 26
/k/ 12
/f/ 01
/s/ 11
/x/ 01


sonoras
/b/ 00
/d/ 15
/g/ 03
/v/ 05
/z/ 07
/j/ 00

vibrantes
/r/ 18
/rr/ 02 duplas 14 intercaladas (encontro consonantal)

laterais
/l/ 03
/lh/ 05
 
nasais
/m/ 18
/n/ 18

oclusivas
surdas: 12
sonoras: 03

oclusivas
línguo-dentais: 59
bilabiais: 28
velares: 15

fricativas
alveolares: 07
palatais: 01

Elisão: 10

Hiato: 02  foi / inevitável  // porque / a casa

Diérese: poesia / traição


Entre consoantes sonoras e surdas, há o dobro de surdas (a raiva é surda, assim se diz).  Na distribuição por posição, há o dobro de oclusivas (relacionadas a obstáculos) em relação à demais. Há forte presença de consoantes nasais (idéia de ruminação).

Proporcionalmente ao conjunto, há poucas vogais nasaladas; as vogais abertas representam o dobro das vogais fechadas.  Entre hiatos e ditongos, estes são em dobro.

O aspecto consonantal pode ser associado à expressão de um sentimento contido e refletido (ruminado), diante de obstáculos; o aspecto vocálico, a uma expressão (explosão) do que estava contido; o impulso para vencer os obstáculos; os encontros vocálicos ao predomínio da tendência para a união.

Ainda do ponto de vista dos encontros, podemos relacionar as ocorrências intra vocabulares com o nível interno (e constamos a tendência para a união), com apenas dois casos de Diérese . Por outro lado, no nível externo, relacionando as ocorrências extra vocabulares,  a tendência para a união também predomina, com as ocorrências de Elisão superando as de Hiato.

NÍVEL DA MORFOLOGIA E DA SINTAXE


Categorias gramaticais

Substantivos:
13

Adjetivos: 6

Verbos 
Presente: 4
Pretérito Imperfeito: 3
Pretérito Perfeito: 16

Advérbios: 15

Artigos: 3
 

Pronomes:
Pessoais do caso reto: 6
Pessoais do caso oblíquo: 6
Possessivos: 4
Indefinidos: 2
Demonstrativo: 1

Conjunções: 7

Numerais: 1

Preposições: 5

Contrações: 3



A maior parte dos períodos, compõe-se por subordinação, em relativo equilíbrio entre sindéticas e assindéticas.

A maioria dos verbos está no passado , com significativo número de advérbios.

O texto é pouco adjetivado, mas tem expressiva utilização de pronomes.

O poema tem um movimento interior, em que mostra uma face e esconde outra, tal uma prestidigitação.

As estrofes impares utilizam pronomes no singular; as pares no plural: há uma emancipação de duas consciências, onde a idealização está caracterizada entre estes dois referenciais.  Na estrofe dois ocorre a maturidade que desvenda a dinâmica dos valores e a real possibilidade de manter seus princípios: neste movimento depressivo, eu e tu se fundem em nós.

Este mesmo movimento pode ser notado no desenvolvimento das estrofes seguintes, num movimento dialético onde os sujeitos se fundem e emancipam para acomodar a sua reação a exposição ao conflito.

Há uma fratura consciente da percepção, uma busca a fusão e se mantém presa à idealização dos valores adquiridos; a outra parte interpreta as alterações como naturais e busca adaptar-se à realidade exterior afastando-se do valor idealizado. Não existe o realmente justo;  resta como alternativa,  lidar com a possibilidade de ajustes. 




PLANO DA IMAGEM

Figuras de estilo

Eufemismo/Sinestesia:
“Dormias tu pesadamente”

Eufemismo: “Deixei de lado”

Antífrase: “ser amável”
 
Eufemismo: “mal entrou na (minha) mente”

Metáfora: “Algo (dentro de nós) envelheceu”

Antítese: “velhas esperanças”

Hipálage: “dedo acusador”

Disfemismo: “Zerou (a ternura)”

Alegoria: “morreu nossa alegria”

Eufemismo: “gozei sem poesia”




LEITURA INTERPRETATIVA

O poema se revela já no título um paradoxo, um conflito entre ser e não ser, utilizando-se de um registro vocabular coloquial e empregando expressões correntes, o poeta busca na construção de um solilóquio situar-se diante da compreensão dos disfarces da traição.

O emprego das figuras de estilo é rico, expressa com relativa proximidade os deslocamentos do eu poético diante da traição, na primeira estrofe ela é o mal que ronda os desatentos e provoca o abandono das convicções pessoais.

A seguir o poeta esvazia a sua expectativa, ao abdicar da pureza das crianças e ao perceber a perda do sentimento: “Morreram nossas velhas esperanças” o poeta se deixa conduzir por inteiro e se despede de um sentimento que vai se tornando remoto, “Traí porque não eras tu nem eu.”.

Na estrofe que segue há o registro humano da culpa, a casa estava escura é um registro da ausência da clareza, de sentidos...

O “dedo acusador” e o convívio (cruzar no corredor) remetem a enfrentar-se em causa e conseqüência, o eu poético toma fé da fragilidade do seu ato e busca atenuar a sua culpa numa divisão de responsabilidade.

Até aqui há um conflito revelado pela culpa e o objeto da adoração, mas nos dois primeiros versos da última estrofe o poeta abre para uma reflexão mais profunda acerca dos seus atos, e dos seus sentidos. Começa a assumir que a maior traição talvez ocorra consigo mesmo e com a dificuldade de assimilar as mortes que a traição decreta uma morte afetiva, dos laços e da idealização que faz do amor por si mesmo.

O penúltimo verso é uma afirmação de tal idéia, “gozei sem poesia” é apartar-se da própria alma e aceitar as contradições que conduzem para uma traição maior.

“A traição não dói somente em um” é a constatação da culpa e a situação da consciência num eu poético submetido ao paradoxo de amar a si e se recriminar pelo amor partilhado de forma menos integra. Há um conflito entre o amor próprio e o amor idealizado por outrem.

O poema como um todo é uma peça bem elaborada, que utilizando uma linguagem coloquial disfarça um conflito contido em toda traição, onde as duas partes sentem o teor do gesto e adiante há um estigma que o traidor não é capaz de justificar ou neutralizar.

As figuras foram aplicadas para dar leveza e provocar reconhecimento num nível léxico do senso comum, mas a realização encerra um dos grandes tabus que ainda não encontrou pacificação dentro da alma humana.

Dudu de Oliveira e Nilza Azzi
 
(com permissão do autor)