A Electra de Eurípedes - uma jóia clássica

A Grécia é o berço de toda a filosofia que hoje conhecemos. E é o seu período clássico a fonte original da manifestação da racionalidade humana, quando os primeiros pensadores substituíram o domínio dos mitos pelo domínio da razão. Obviamente não se tratou de uma ruptura radical, instantânea, como se os gregos, reunidos em uma assembléia, houvessem dado fim, por um decreto, à antiga forma de explicar o mundo e a vida. A superstição, o misticismo, o medo pelo oculto, foram gradativamente cedendo espaço e sendo substituídos por uma nova forma de compreender as manifestações da natureza na vida dos homens e suas respostas a essas manifestações. O que significa dizer que o pensamento mítico e o racional coexistiram por um considerável período de tempo na sociedade grega.

Essa mudança gradual no modo de pensar grego se explica pela evolução mesma das relações sociais do povo, acrescida da conseqüente complexidade que a partir delas se produziu, como por exemplo, o crescimento econômico das cidades, o aumento nas polis de uma classe média, e uma quase natural descrença nos antigos mitos e feitos atribuídos aos deuses do Olimpo. A tarefa filosófica dos pré-socráticos e a chegada da democracia, ambos no séc. V a.C, consolidaram esse momento de discussão sobre a pertinência das antigas idéias.

Os filósofos pré-socráticos consolidaram a passagem da consciência mítica e religiosa para a consciência racional e filosófica a partir de suas indagações sobre o que é o ser. O que é uma coisa e por que essa coisa muda, desaparece, e depois volta a ser, permanecendo a Natureza exatamente como sempre foi? Foi para explicar essas perguntas que os pré-socráticos procuraram um princípio único na Natureza, negando portanto as explicações míticas e supersticiosas até então em vigor, inaugurando de vez a Era da Razão. Por isso não é de se surpreender que a literatura grega viesse a sofrer grande influência dessa mudança de concepções sobre o estado das coisas, sua origem e fim, e como o homem se inclui nelas enquanto ser mutante, variante.

Apenas para efeito didático, há que se fazer a distinção entre os períodos antigo e ático da literatura grega. No período antigo, anterior a 475 a.C., predominaram as obras épicas e líricas. No período ático, (referência à Ática, região de Atenas), de 475 a 300 a.C., predominaram o drama e a prosa. É no período ático que nascem os grandes poetas trágicos, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, que vão marcar nome na História com suas grandes tragédias.

Esses poetas trágicos manifestaram em suas obras a mudança no modo grego de pensar, catalisando em suas peças o pensamento religioso, político, filosófico e estético do mundo de então.

Por que, é de se indagar, esses poetas foram denominados trágicos? O que vem a ser a tragédia grega? Qual a relação da filosofia com a tragédia? Como Eurípedes conseguiu imprimir em suas tragédias, especialmente Electra, as novas cores do pensamento filosófico grego? São essas perguntas que procuraremos responder a seguir.

A tragédia Grega.

Uma definição clássica, talvez a mais conhecida, de tragédia, vem de Aristóteles, segundo quem a tragédia é “uma representação imitadora de uma ação séria, concreta, de certa grandeza, representada, e não narrada, por atores em linguagem elegante, empregando um estilo diferente para cada uma das partes, e que, por meio da compaixão e do horror provoca o desencadeamento liberador de tais afetos”.

É a Katarsi, ou seja, a purgação das emoções geradas nos espectadores pelos dramas da vida do herói, o principal objetivo de uma peça trágica. O centro da tragédia é o Herói e suas desventuras. O herói trágico é sempre um valente, um homem honrado e de bem, sempre cercado de glórias, que se vê repentinamente envolto em tramas surpreendentes, absurdamente permitidas pelo destino, tragando com desgraças o homem, deixando-o à mercê de fatos trágicos, geralmente marcados por separações definitivas e mortes inevitáveis de entes queridos. A dor do herói e sua completa infelicidade mesmo diante de circunstâncias aparentemente capazes de lhe garantir uma vida de plenitude e gozo, são as marcas mais contundentes da tragédia, o centro emocional a partir do qual toda a trama se desenvolve.

A tragédia grega representa já a passagem do pensamento mítico para o racional, a partir do que se percebe que os poetas trágicos, em graus, tendem a abrir mão dos antigos mitos, das velhas superstições, deixando mesmo de lado as ações dos deuses gregos como elementos explicativos e determinantes dos fatos na vida dos homens. Todavia, há que se fazer a seguinte ressalva: na literatura houve uma coexistência parcial entre a nova e a velha mentalidade grega, percebida, por exemplo, nas obras de Ésquilo, que, tomando como ponto de partida um evento lendário qualquer revestiu-o de um caráter profundamente religioso, fazendo a distinção entre os dois mundos apenas quanto ao conteúdo, deixando intacta a forma de apresentar os conflitos entre os deuses e os homens, ainda que quisesse afirmar a supremacia do mundo racional em relação ao mundo místico; assim também nas obras de Sófocles, quando diz que homens e deuses andam em mundos distintos, conflitantes, mas necessários à existência de ambos, cuja união é “o vislumbre das profundezas sombrias da vida, através das quais nós homens andamos, e a diáfana alegria com a luz, que apesar de tudo os deuses estenderam sobre este mundo.” Em Sófocles o distanciamento dos deuses não é tão radical nem definitivo.

Já em Eurípedes nota-se uma distinção em relação aos outros dois poetas trágicos, que é a diminuição qualitativa das ações divinas. Nas peças euripidianas os deuses não possuem a mesma relevância observada em seus antecessores. Existe uma consciente retirada do sagrado em relação aos mitos e a saída de cena dos deuses enquanto elementos determinantes do que deve acontecer, ou seja, da condição de manipuladores da vida e do destino dos homens, marca maior da literatura grega no período homérico.

Eurípedes nasceu em Salamina no ano de 480 a.C., sendo o mais novo dos três poetas trágicos. Denominado por Aristóteles como o mais trágicos de todos os poetas, Eurípedes escreveu inúmeras peças, tendo chegado até nossos dias apenas 18, dentre as quais citamos Alceste, Medea, Hipólito, Bacantes, Ifigênia em Táurida, Ifigência em Áulida, Helena, Orestes, Andrômeca, Héracles, As mulheres de Tróia, Íon, As fenícias, Cíclope, Heracléade, As suplicantes e Electra.

A peça Electra é a versão euripidiana da vingança final de Orestes, filho de Agamenon, rei de Micenas, contra os assassinos de seu pai: a própria mãe e Egisto. Na obra se percebe claramente que Eurípedes absorveu muito das novas idéias vigentes no séc. V. a.C., a partir das quais o pensamento grego se torna preso às especulações filosóficas. Ao retirar das ações divinas, dos mitos e das lendas, o poder de explicar o mundo, o universo, os pensadores pré-socráticos e especialmente os sofistas, influenciaram a produção de Eurípedes de tal maneira, que em suas obras ele substituiu os deuses tradicionais por meras abstrações: no lugar de Zeus, Ar, no lugar de Apolo, Éter, no lugar de Hera, Razão...

Electra nos apresenta essa mudança de foco. O eixo a partir do qual as ações humanas giram se transfere da vontade dos deuses à instância dos sentimentos oriundos do coração, que em Eurípedes pode ser identificado não apenas como a sede das emoções mas também como um centro volitivo e de atividade intelectual. Ou seja, o coração é sinônimo de alma, pois será a paixão o elemento movedor das ações em Electra.

Resumo da tragédia Electra, de Eurípedes.

O camponês, com quem a princesa Electra foi obrigada a casar pelos assassinos do pai, Egisto e Clitemnestra, expõe a humilhante situação de Electra. Pobremente vestida, ela entre carregando um pote de água, e agradece a amizade e apoio do camponês. Orestes e Pílades chegam, acompanhados de servidores, e assistem escondidos Electra lamentar a morte de Agamêmnom. O coro chega e anuncia a aproximação da festa de Juno; Electra diz que não comparecerá e que se sente abandonada pelos deuses.

Electra descobre Orestes escondido. Ele finge ser amigo dele próprio e procura notícias da irmã. Electra relata seu sofrimento e o que ocorre atualmente no palácio. O marido de Electra reaparece e oferece hospitalidade aos visitantes; Orestes reconhece perante Electra seu valor. O coro canta o escudo de Aquiles e a seguir prevê a morte de Clitemnestra.

Um velho servidor de Agamenon vem trazer mantimentos para ajudar Electra e o marido a hospedarem os visitantes. Ele reconhece Orestes e revela a Electra que ele é seu irmão ausente. Os três planejam a vigança e o velho sugere que Orestes e Pílades entrem no palácio como estrangeiros, durante um sacrifício oferecido por Egisto. Electra anuncia que preparará a morte da mãe e manda-lhe a falsa notícia de que deu à luz uma criança. Todos saem depois de orar aos deuses.

Electra e o coro ouvem gritos. Um servidor de Orestes aparece, anuncia-lhes a morte de Egisto e descreve os acontecimentos. Canto e dança triunfal do coro e de Electra. Orestes e Pílades voltam, trazendo o corpo de Egisto. Electra fala ao Egisto morto o que não pudera falar ao vivo, e

Orestes vacila ao ver que a mãe se aproxima. Electra instiga-o utilizando o oráculo de Apolo como argumento. Orestes cede, mas deixa bem claro que vai matar a mãe porque é o desejo dos deuses. Esconde-se na casa de Electra, e logo depois chega Clitemnestra.

Clitemnestra e Electra discutem, e a mãe mostra uma certa ponderação e algum arrependimento; a filha, revela-se dominada por um irreprimível desejo de vingança. Clitemnestra entra, finalmente, na casa. O coro relembra a morte de Agamêmnon. Ouve-se a súplica de Clitemnestra, antes da morte, e a seguir Orestes e Electra saem da cabana. Lamento alternado Orestes/coro e Electra/coro. Orestes mostra-se horrorizado com o que fez a mando dos deuses.

Surgem os Dióscuros Castor e Pólux, deuses ex-machina; Castor ordena a Orestes casar Electra com Pílades e depois deixar Argos. Avisa-o que as terríveis Erínias irão persegui-lo, que deverá submeter-se ao tribunal em Atenas, e que considera Apolo culpado de tudo, devido ao oráculo proferido; finalmente, menciona que Helena jamais esteve em Ilion. Orestes e Electra se despedem.

A partir da leitura do texto de Electra podemos perceber nitidamente a mudança no comportamento dos personagens, que agora obedeciam às variações de seus sentimentos, às paixões que dominavam seus corações, e não aos desígnios dos deuses, numa postura bem diferente daquele determinismo que caracterizou a literatura grega em tempos homéricos, e, ainda que em menor escala, algumas obras de contemporânes de Eurípedes.

Por que tal mudança? Ora, se os filósofos questionaram os antigos mitos, as ações dos deuses e as lendas enquanto definidores do modo de pensar dos gregos, trocando-os por especulações filosóficas, é de se esperar que tal mudança na disposição mental afetasse a literatura, influenciando o pensamento de Eurípedes e determinando que seus personagens igualmente se mostrassem muito mais presos às suas inquietações, motivações e cogitações íntimas, adotando atitudes mais humanas e naturais, em oposição à simples obediência aos oráculos divinos. Anular a vontade humana para cegamente ceder à divina, não questionar os oráculos, o Destino, não mais seria uma atitude normal, regular. E se Orestes argumentou que somente aceitou matar a mãe em obediência ao oráculo de Apolo, tal fato não configura contradição insuperável, uma vez que facilmente também se pode argumentar que ele fora convencido duplamente: primeiramente por sua própria consciência de filho, que sabia ser necessário vingar a morte do pai, cuja usurpação do trono e a desonra como conseqüência, somente poderiam ser reparadas com a morte dos usurpadores; depois, não resistiu às instigações de Electra, que como figura central da tragédia não arredou um milímetro sequer de sua vontade em vingar a morte do pai. Se Orestes aparentemente titubeou, Electra resistiu a qualquer argumentação contrária à sua disposição férrea da matar a própria mãe e Egisto. Ela não atribuiu a nenhum deus, a nenhum oráculo, a necessidade de ser morta Clitemnestra.

O fragmento a seguir com o diálogo entre Orestes e Electra revela como a dominava a irredutível conviccção de que somente matando a mãe e seu cúmplice no assassínio de Agamêmnon seria resgatada a honra do pai:

“- E tu, prestando-lhe auxílio, terias coragem de matar tua mãe?

- Sem dúvida! E com o mesmo ferro com que meu pai foi ferido.

- Poderei dizer isso a Orestes? Tua resolução é inabalável?

- Sim! Ainda que eu tenha de morrer, logo após o derramamento do sangue de minha mãe!”

Orestes e Electra executam o plano de matar Egisto e Clitemnestra. A saga dos Átridas seguiria adiante. Desta vez, porém, não teríamos mais mortes, e sim vidas seguindo o seu Destino: Orestes enfrentando julgamento por sua ações e Electra sendo desposada por Pílades. Eurípedes deixou incontestáveis provas de que os homens não podem se submeter cegamente aos desígnios dos deuses, uma vez possuindo uma Razão que a tudo questiona. Foi no autor de Electra que a seguinte mudança se mostrou patente: houve um tempo em que os deuses decidiam a sorte dos homens, mas a partir do momento em que a razão venceu o mito e a especulação gerou dúvidas, os homens declararam que os mitos, as lendas, os deuses, poderiam até continuar existindo no imaginário do povo e influenciar determinados comportamentos, porém a resposta certa para as situações limites da vida humana deveria surgir na mente e no coração dos próprios humanos.

Clóvis Luz da Silva
Enviado por Clóvis Luz da Silva em 27/09/2006
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