O HUMOR E ALEGRIA DO MANECO (MANUEL ANTÔNIO ÁLVARES DE AZEVEDO - 1831/1852) - PARTE II

HUMOR

AI JESUS!

Ai Jesus! não vês que gemo,

Que desmaio de paixão

Pelos teus olhos azuis?

Que empalideço, que tremo,

Que me expira o coração?

Ai Jesus!

Que por um olhar, donzela,

Eu poderia morrer

Dos teus olhos pela luz?

Que morte! que morte bela!

Antes seria viver!

Ai Jesus!

Que por um beijo perdido

Eu de gozo morreria

Em teus níveos seios nus?

Que no oceano dum gemido

Minh’alma se afogaria?

Ai Jesus!

A CANTIGA DO SERTANEJO

Love me, and leave me not.

SHAKESPEARE, Merch. Of Venice.

Donzela! Se tu quiseras

Ser a flor das primaveras

Que tenho no coração:

E se ouviras o desejo

Do amoroso sertanejo

Que descora de paixão!...

Se tu viesses comigo

Das serras ao desabrigo

Aprender o que é amar...

— Ouvi-lo no frio vento,

Das aves no sentimento,

Nas águas e no luar!...

Ouvi-lo nessa viola,

Onde a modinha espanhola

Sabe carpir e gemer!...

Que pelas horas perdidas

Tem cantigas doloridas,

Muito amor, muito doer...

Pobre amor! o sertanejo

Tem apenas seu desejo

E as noites belas do val!...

Só o ponche adamascado,

O trabuco prateado

E o ferro de seu punhal!...

E tem as lendas antigas

E as desmaiadas cantigas

Que fazem de amor gemer!...

E nas noites indolentes

Bebe cânticos ardentes

Que fazem estremecer!...

Tem mais... na selva sombria

Das florestas a harmonia,

Onde passa a voz de Deus,

E nos relentos da serra

Pernoita na sua terra,

No leito dos sonhos seus!

Se tu viesses, donzela,

Verias que a vida é bela

No deserto do sertão:

Lá têm mais aroma as flores

E mais amor os amores

Que falam do coração!

Se viesses inocente

Adormecer docemente

À noite no peito meu!...

E se quisesses comigo

Vir sonhar no desabrigo

Com os anjinhos do céu!

É doce na minha terra

Andar, cismando, na serra

Cheia de aroma e de luz,

Sentindo todas as flores,

Bebendo amor nos amores

Das borboletas azuis!

Os veados da campina

Na lagoa, entre a neblina,

São tão lindos a beber!...

Da torrente nas coroas

Ao deslizar das canoas

É tão doce adormecer!...

Ah! Se viesses, donzela,

Verias que a vida é bela

No silêncio do sertão!

Ah!... morena, se quiseras

Ser a flor das primaveras

Que tenho no coração!

Junto às águas da torrente

Sonharias indolente

Como num seio d’irmã!...

— Sobre o leito de verduras

O beijo das criaturas

Suspira com mais afã!

E da noitinha as aragens

Bebem nas flores selvagens

Efluviosa fresquidão!...

Os olhos têm mais ternura

E os ais da formosura

Se embebem no coração!...

E na caverna sombria

Tem um ai mais harmonia

E mais fogo o suspirar!...

Mais fervoroso o desejo

Vai sobre os lábios num beijo

Enlouquecer, desmaiar!...

E da noite nas ternuras

A paixão tem mais venturas

E fala com mais ardor!...

E os perfumes, o luar,

E as aves a suspirar,

Tudo canta e diz — amor!

Ah! vem! amemos! vivamos!

O enlevo do amor bebamos

Nos perfumes do serão!

Ah! Virgem, se tu quiseras

Ser a flor das primaveras

Que tenho no coração!...

VAGABUNDO

Eat, drink and love; what can the rest avail BYRON

Eu durmo e vivo no sol como um cigano,

Fumando meu cigarro vaporoso,

Nas noites de verão namoro estrela;

Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;

Mas tenho na viola uma riqueza:

Canto à lua de noite serenatas,

E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva

Nas cavernas do peito, sufocante,

Quando à noite na treva em mim se entornam

Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores;

Sou garboso e rapaz... Uma criada

Abrasada de amor por um soneto

Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismado

Na donzela que ali defronte mora.

Ela ao ver me sorri tão docemente!

Desconfio que a moça me namora!..

Tenho por meu palácio as longas ruas;

Passeio a gosto e durmo sem temores;

Quando bebo, sou rei como um poeta,

E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,

Minha pátria é o vento que respiro,

Minha mãe é a lua macilenta,

E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,

De painéis a carvão adorno a rua;

Como as aves do céu e as flores puras

Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto me um coração de lazzaroni;

Sou filho do calor, odeio o frio;

Não creio no diabo nem nos santos.

Rezo à Nossa Senhora, e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela

Bem doirada e amante da preguiça

Quiser a nívea mão unir à minha

Há de achar me na Sé, domingo, à Missa.

A LAGARTIXA

A lagartixa ao sol ardente vive

E fazendo verão o corpo espicha:

O clarão de teus olhos me dá vida

Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

Amo te como o vinho e como o sono,

Tu és meu copo e amoroso leito

Mas teu néctar de amor jamais se esgota,

Travesseiro não há como teu peito.

Possa agora viver: para coroas

Não preciso no prado colher flores;

Engrinaldo melhor a minha fronte

Nas rosas mais gentis de teus amores.

Vale todo um harém a minha bela,

Em fazer me ditoso ela capricha;

Vivo ao sol de seus olhos namorados,

Como ao sol de verão a lagartixa.

LUAR DE VERÃO

O que vês, trovador?—Eu vejo a lua

Que sem lavor a face ali passeia;

No azul do firmamento inda é mais pálida

Que em cinzas do fogão uma candeia.

O que vês, trovador?—No esguio tronco

Vejo erguer se o chinó de uma nogueira.

Além se entorna a luz sobre um rochedo

Tão liso como um pau de cabeleira.

Nas praias lisas a maré enchente

S'espraia cintilante d'ardentia

Em vez de aromas as doiradas ondas

Respiram efluviosa maresia!

O que vês, trovador?—No céu formoso

Ao sopro dos favônios feiticeiros

Eu vejo—e tremo de paixão ao vê las—

As nuvens a dormir, como carneiros.

E vejo além, na sombra do horizonte,

Como viúva moça envolta em luto,

Brilhando em nuvem negra estrela viva

Como na treva a ponta de um charuto.

Teu romantismo bebo, ó minha lua,

A teus raios divinos me abandono,

Torno me vaporoso, e só de ver te

Eu sinto os lábios meus se abrir de sono.

É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!

É ela! é ela!—murmurei tremendo,

E o eco ao longe murmurou—é ela!

Eu a vi—minha fada aérea e pura—

A minha lavadeira na janela!

Dessas águas furtadas onde eu moro

Eu a vejo estendendo no telhado

Os vestidos de chita, as saias brancas;

Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido

Nas telhas que estalavam nos meus passos

Ir espiar seu venturoso sono,

Vê la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono! . . .

Tinha na mão o ferro do engomado. . .

Como roncava maviosa e pura!. . .

Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:

Palpitava lhe o seio adormecido...

Fui beijá la. . . roubei do seio dela

Um bilhete que estava ali metido. . .

Oh! de certo. . . (pensei) é doce página

Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela. . . que amanhã de certo

Ela me enviará cheios de flores.

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

Eu beijei a a tremer de devaneio. .

É ela! é ela!—repeti tremendo;

Mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta. . .

Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas,

Se achou a assim mais bela,—eu mais te adoro

Sonhando te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh'alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela. . .

É ela! é ela!—murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou—é ela!

NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça

Que rege minha vida malfadada

Pôs lá no fim da rua do Catete

A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde

Um cavalo de trote (que esparrela!)

Só para erguer meus olhos suspirando

A minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai se em flores

E em lindas folhas de papel bordado

Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,

Algum verso bonito. . . mas furtado.

Morro pela menina, junto dela

Nem ouso suspirar de acanhamento. . .

Se ela quisesse eu acabava a história

Como toda a comédia—em casamento.

Ontem tinha chovido. . . que desgraça!

Eu ia a trote inglês ardendo em chama,

Mas lá vai senão quando uma carroça

Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote

No Rocinante erguendo a larga espada

Nunca voltou de medo, eu, mais valente,

Fui mesmo sujo ver a namorada. . .

Mas eis que no passar pelo sobrado

Onde habita nas lojas minha bela

Por ver me tão lodoso ela irritada

Bateu me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros

Entre dentes tomou a bofetada,

Arrepia se, pula, e dá me um tombo

Com pernas para o ar, sobre a calçada. ..

Dei ao diabo os namoros. Escovado

Meu chapéu que sofrera no pagode

Dei de pernas corrido e cabisbaixo

E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa

Rasgou se no cair de meio a meio,

O sangue pelas ventas me corria

Em paga do amoroso devaneio!

D I N H E I R O

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune,

adoré; on a consideration, honneur,

qualités, vertus. Quand on n'a point d'argent,

on est dans la dépendance de toutes ces

choses et de tout le monde.

CHATEAUBRIAND

Sem ele não há cova—quem enterra

Assim gratis a Deo? O batizado

Também custa dinheiro. Quem namora

Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?

Demais, as Dánaes também o adoram.

Quem imprime seus versos, quem passeia,

Quem sobe a Deputado, até Ministro,

Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,

Embora gênio, talentosa fronte, Alma

Romana, se não tem dinheiro?

Fora a canalha de vazios bolsos!

O mundo é para todos.... Certamente,

Assim o disse Deus—mas esse texto

Explica se melhor e doutro modo.

Houve um erro de imprensa no Evangelho:

O mundo é um festim—concordo nisso,

Mas não entra ninguém sem ter as louras.

TODA AQUELA MULHER TEM A PUREZA

Toda aquela mulher tem a pureza

Que exala o jasmineiro no perfume,

Lampeja seu olhar nos olhos negros

Como, em noite d’escuro, um vagalume...

Que suave moreno o de seu rosto!

A alma parece que seu corpo inflama...

Simula até que sobre os lábios dela

Na cor vermelha tem errante chama...

E quem dirá, meu Deus! que a lira d'alma

Ali não tem um som — nem de falsete!

E, sob a imagem de aparente fogo,

É frio o coração como um sorvete!

ALEGRIA

NO MAR

Les étoiles s’allument au ciel, et la brise du soir erre doucement parmi les fleurs: rêvez, chantez et soupirez.GEORGE SAND

Era de noite: — dormias,

Do sonho nas melodias,

Ao fresco da viração,

Embalada na falua,

Ao frio clarão da lua,

Aos ais do meu coração!

Ah! que véu de palidez

Da langue face na tez!

Como teus seios revoltos

Te palpitavam sonhando!

Como eu cismava beijando

Teus negros cabelos soltos!

Sonhavas? — eu não dormia;

A minh’alma se embebia

Em tua alma pensativa!

E tremias, bela amante,

A meus beijos, semelhante

Às folhas da sensitivas!

E que noite! que luar!

E que ardentias no mar!

E que perfumes no vento!

Que vida que se bebia

Na noite que parecia

Suspirar de sentimento!

Minha rola, ó minha flor,

Ó madresilva de amor,

Como eras saudosa então!

Como pálida sorrias

E no meu peito dormias

Aos ais do meu coração!

E que noite! que luar!

Como a brisa a soluçar

Se desmaiava de amor!

Como toda evaporava

Perfumes que respirava

Nas laranjeiras em flor!

Suspiravas? que suspiro!

Ai que ainda me deliro

Entrevendo a imagem tua

Ao fresco da viração,

Aos ais do meu coração,

Embalada na falua!

Como virgem que desmaia,

Dormia a onda na praia!

Tua alma de sonhos cheia

Era tão pura, dormente,

Como a vaga transparente

Sobre seu leito de areia!

Era de noite — dormias,

Do sonho nas melodias,

Ao fresco da viração;

Embalada na falua,

Ao frio clarão da lua,

Aos ais do meu coração.

AMOR

Quand la mort est si belle,

Il est doux de mourir.

V. HUGO

Amemos! quero de amor

Viver no teu coração!

Sofrer e amar essa dor

Que desmaia de paixão!

Na tu’alma, em teus encantos

E na tua palidez

E nos teus ardentes prantos

Suspirar de languidez!

Quero em teus lábios beber

Os teus amores do céu!

Quero em teu seio morrer

No enlevo do seio teu!

Quero viver d’esperança!

Quero tremer e sentir!

Na tua cheirosa trança

Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,

Minh’alma, meu coração...

Que noite! que noite bela!

Como é doce a viração!

E entre os suspiros do vento,

Da noite ao mole frescor,

Quero viver um momento,

Morrer contigo de amor!

MINHA MUSA

Minha musa é a lembrança

Dos sonhos em que eu vivi,

É de uns lábios a esperança

E a saudade que eu nutri!

É a crença que alentei,

As luas belas que amei

E os olhos por quem morri!

Os meus cantos de saudade

São amores que eu chorei,

São lírios da mocidade

Que murcham porque te amei!

As minhas notas ardentes

São as lágrimas dementes

Que em teu seio derramei!

Do meu outono os desfolhos,

Os astros do teu verão,

A languidez de teus olhos

Inspiram minha canção...

Sou poeta porque és bela,

Tenho em teus olhos, donzela,

A musa do coração!

Se na lira voluptuosa

Entre as fibras que estalei

Um dia atei uma rosa

Cujo aroma respirei...

Foi nas noites de ventura,

Quando em tua formosura

Meus lábios embriaguei!

E se tu queres, donzela,

Sentir minh’alma vibrar,

Solta essa trança tão bela,

Quero nela suspirar!

E dá repousar-me teu seio...

Ouvirás no devaneio

A minha lira cantar!

NA VÁRZEA

Como é bela a manhã! Como entre a névoa

A cidade sombria ao sol clareia

E o manto dos pinheiros se aveluda...

E o orvalho goteja dos coqueiros...

E dos vales o aroma acorda o pássaro...

E o fogoso corcel no campo aberto

Sorve d’alva o frescor, sacode as clinas,

Respira na amplidão, no orvalho rola,

Cobra em leito de folhas novo alento

E galopa nitrindo!

Agora que a manhã é fresca e branca

E o campo solitário e o val se arreia...

Ó meu amigo, passeemos juntos

Na várzea que do rio as águas negras

Umedecem fecundas...

O campo é só: na chácara florida

Dorme o homem do vale e no convento

Cintila a medo a lâmpada da virgem,

Que pálidas vestais no altar acendem!

Tudo acorda, meu Deus, nestas campinas!

Os cantos do Senhor erguem-se em nuvens,

Como o perfume que evapora o leito

Do lírio virginal!

Acorda, ó meu amigo: quando brilha

Em toda a natureza tanto encanto,

Tanta magia pelo céu flutua

E chovem sobre os vales harmonias,

É descrer do Senhor dormir no tédio,

É renegar das santas maravilhas

O ardente coração não expandir-se

E a alma não jubilar dentro do peito!

Lá onde mais suave entre os coqueiros,

O vento da manhã nas casuarinas

Cicia mais ardente suspirando,

Como de noite no pinhal sombrio

Aéreo canto de não vista sombra,

Que enche o ar de tristeza e amor transpira...

Lá onde o rio molemente chora

Nas campinas em flor e rola triste...

Alveja, à sombra, habitação ditosa,

Coroa os frisos da janela verde

A trepadeira em flor do jasmineiro

E pelo muro se avermelha a rosa.

Ali quando a manhã acorda a bela,

A bela, que eu sonhei nos meus amores...

Ao primeiro calor do sol d’aurora

Entorna-se da flor o doce aroma,

Inda mais doce em matutino orvalho,

Nas tranças negras da donzela pálida,

Mais bela que o diamante se aveluda,

Camélia fresca, inda em botão, tingida

De neve e de coral... no seio dela

Não reluz o colar... em negro fio

A cruz da infância melhor guarda o seio,

Que o amor virginal beija tremendo

E os ais do coração melhor perfuma...

Vem comigo, mancebo: aqui sentemo-nos...

Ela dorme: a janela inda cerrada

Se enche de rosas e jasmins, à noite...

E as flores virgens com o aberto seio

Um beijo da donzela ainda imploram.

Mais doce o canto foge de mistura

Co’as doces notas do violão divino!

Anjo da vida te verteu nos lábios

O mel dos serafins que a voz serena,

Que a transborda de encanto e de harmonia

E faz no eco propulsar meu peito!

Suspire o violão: nos seus lamentos

Murmura essa canção dos meus amores,

Que este peito sangrento lhe votara,

Quando a seus pés, acesa a fantasia,

Em doce engano derramei minh’alma!

Quando a brisa seus ais melhor afina,

Quando a frauta no mar branda suspira,

Com mais encanto as folhas do salgueiro

Debruçam-se nas águas solitárias

E deixam, gota a gota, o argênteo orvalho

Como prantos nas folhas deslizar-se.

Quando a voz do cantor perder-se, à noite,

Na margem da torrente, ou nas campinas,

Ou no umbroso jardim que flores cobrem...

Mais doce a noite pelo céu vagueia,

Melhor florescem as noturnas flores...

E o seio da mulher, que a noite embala,

Pulsa quente e febril com mais ternura!

Se o anjo de meus tímidos amores

Pudesse ouvir-te os cândidos suspiros,

Que a minha dor de amante lhe revelam...

Se ela acordasse, nos cabelos soltos

Inda o semblante sonolento e pálido

E o seio seminu e os ombros níveos

E as trêmulas mãos cobrindo o seio...

Se esta janela num instante abrisse

A fada da ventura, embora apenas

Um instante... sequer... Meus pobres sonhos,

Como saudosos vos murchais sedentos!

Flores do mar que um triste vagabundo

Arrancou de seu leito umedecido

E grosseiro apertou nas mãos ardentes,

Eu morro de saudade! e só me nutre

Inda nas tristes, desbotadas veias

O sangue do passado e da esperança!

MEU DESEJO

Meu desejo? era ser a luva branca

Que essa tua gentil mãozinha aperta,

A camélia que murcha no teu seio,

O anjo que por te ver do céu deserta...

Meu desejo? era ser o sapatinho

Que teu mimoso pé no baile encerra...

A esperança que sonhas no futuro,

As saudades que tens aqui na terra...

Meu desejo? era ser o cortinado

Que não conta os mistérios de teu leito,

Era de teu colar de negra seda

Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho

Que mais bela te vê quando deslaças

Do baile as roupas de escumilha e flores

E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito

De cambraia o lençol, o travesseiro

Com que velas o seio, onde repousas,

Solto o cabelo, o rosto feiticeiro...

Meu desejo? era ser a voz da terra

Que da estrela do céu ouvisse amor!

Ser o amante que sonhas, que desejas

Nas cismas encantadas de langor!

TERZA RIMA

E, belo de entre a cinza ver ardendo

Nas mãos do fumador um bom cigarro,

Sentir o fumo em névoas recendendo,

Do cachimbo alemão no louro barro

Ver a chama vermelha estremecendo

E até perdoem respirar lhe o sarro!

Porém o que há mais doce nesta vida,

O que das mágoas desvanece o luto

E dá som a uma alma empobrecida,

Palavra d'honra, és tu, ó meu charuto!

SONETO

Um mancebo no jogo se descora,

Outro bêbedo passa noite e dia,

Um tolo pela valsa viveria,

Um passeia a cavalo, outro namora.

Um outro que uma sina má devora

Faz das vidas alheias zombaria,

Outro toma rapé, um outro espia...

Quantos moços perdidos vejo agora!

Oh! não proíbam, pois, no meu retiro

Do pensamento ao merencório luto

A fumaça gentil por que suspiro.

Numa fumaça o canto d'alma escuto...

Um aroma balsâmico respiro,

Oh! deixai-me fumar o meu charuto!

SONETO

Ao sol do meio-dia eu vi dormindo

Na calçada da rua um marinheiro,

Roncava a todo o pano o tal brejeiro

Do vinho nos vapores se expandindo!

Além um espanhol eu vi sorrindo,

Saboreando um cigarro feiticeiro,

Enchia de fumaça o quarto inteiro...

Parecia de gosto se esvaindo!

Mais longe estava um pobretão careca

De uma esquina lodosa no retiro

Enlevado tocando uma rabeca!...

Venturosa indolência! não deliro

Se morro de preguiça... o mais é seca!

Desta vida o que mais vale um suspiro?

FUI UM DOUDO EM SONHAR TANTOS AMORES

Dorme, meu coração! Em paz esquece

Tudo, tudo que amaste neste mundo!

Sonho falaz de tímida esperança

Não interrompa teu dormir profundo!

Tradução do Dr. Octaviano.

Fui um doudo em sonhar tantos amores...

Que loucura, meu Deus!

Em expandir-lhe aos pés, pobre insensato,

Todos os sonhos meus!

E ela, triste mulher, ela tão bela,

Dos seus anos na flor,

Por que havia de sagrar pelos meus sonhos

Um suspiro de amor?

Um beijo — um beijo só! eu não pedia

Senão um beijo seu

E nas horas do amor e do silêncio

Juntá-la ao peito meu!

CISMAR

Fala-me, anjo de luz! és glorioso

À minha vista na janela à noite

Como divino alado mensageiro

Ao ebrioso olhar dos frouxos olhos

Do homem, que se ajoelha para vê-lo,

Quando resvala em preguiçosas nuvens,

Ou navega no seio do ar da noite.

ROMEU

Ai! quando de noite, sozinha à janela

Co’a face na mão te vejo ao luar,

Por que, suspirando, tu sonhas, donzela?

A noite vai bela,

E a vista desmaia

Ao longe na praia

Do mar!

Por quem essa lágrima orvalha-te os dedos,

Como água da chuva cheiroso jasmim?

Na cisma que anjinho te conta segredos?

Que pálidos medos?

Suave morena,

Acaso tens pena

De mim?

Donzela sombria, na brisa não sentes

A dor que um suspiro em meus lábios tremeu?

E a noite, que inspira no seio dos entes

Os sonhos ardentes,

Não diz-te que a voz

Que fala-te a sós

Sou eu?

Acorda! Não durmas da cisma no véu!

Amemos, vivamos, que amor é sonhar!

Um beijo, donzela! Não ouves? no céu

A brisa gemeu...

As vagas murmuraram...

As folhas sussurram:

Amar!