ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO “FUTUROS AMANTES” DE CHICO BUARQUE.

Em meio à constelação que é a obra de Chico Buarque, encontra-se a música “Futuros Amantes” do álbum “Paratodos” de 1993. A crítica aponta, nesta obra, características destoantes do que fora produzido pelo compositor até então, como o trabalho diferenciado com a metrificação e cadência do texto- música, o tratamento temático voltado para questões existenciais e, também, um forte engajamento com as questões de língua e linguagem.

Isto, todavia, pode sugerir uma postura fugidia em relação às temáticas político-ideológicas muito fortes nos poemas musicados de Chico. Mas, não se pode descartar a possibilidade de que “Paratodos” seja o marco de uma maturidade artística de um poeta-compositor de cinqüenta anos, que dialoga criticamente com o próprio passado.

A música, entretanto, apresenta o amor como tema principal – isso não é novidade nos temas musicais de Chico – mas, neste caso, o sentimento não estaria preso ao amor carnal, ou ao relacionamento amoroso concretizado, mas toda a questão dialógica da música parece nascer de um amor não correspondido, de uma história de amor não concretizada, um amor que fica na expectativa, que permanece pairante.

Vê-se, então, a idéia de um sentimento que pode ser aproveitado mais tarde, como quando a pessoa amada regressar ou corresponder ao afeto. Caso a consumação desse sentimento não aconteça numa previsão de tempo desejada pelo amante, possivelmente, em um futuro, outras pessoas acharão um momento fortuito para materializar esse sentimento, que, enquanto, isso ficaria esperando que alguém o apanhe e complete a sua função de amor.

No entanto o tempo seria uma segunda posição na hierarquia temática da música e outra questão relevante para a análise. Pois este elemento, que muitas vezes sufoca ou apressa o amor, é tratado de maneira menos urgente, deve-se esperar para quem sabe concretizar o amor não correspondido e se o relacionamento esperado não acontecer o sentimento não morreria, suas marcas ficariam imortalizadas em detalhes deixados por cada um que já amou. Talvez em cartas esquecidas pela casa, lembranças esquecidas em armários, em sótãos.

E por fim, de maneira singular, vê-se na música de Chico Buarque uma espécie de diálogo, pois de forma quase teatral é possível perceber um locutor que consola um alocutário, numa tentativa de afastar-lhe o sofrimento iminente ao amor não correspondido. Este diálogo amoroso nos enleva em um ar carregado de melancolia, que o locutor resolve afastar.

Esta melancolia, por sua vez, seria conseqüência da ausência da materialidade do amor, o qual desvela uma cena romântica: seria o homem que deixou a mulher, o qual não pode corresponder ao amor e por isso o sentimento fica sedento de materialização por parte dela. Aliás esta imagem poderia ter os papéis invertidos, um homem que sofre a perda ou a não realização amorosa em vez da mulher, isso porque não existem marcas fortes de um discurso feminino ou masculino, mas nesta análise a primeira cena fora mais eloquente.

Para, enfim, corroborarmos esta tentativa de interpretação e análise da música “Futuros Amantes” três aspectos estarão em jogo: os recursos lingüísticos que nos permitem importantes inferências da construção textual argumentativa; a posição sujeito marcada histórico-socialmente e a própria condição história.

Ao adentrarmos, assim, numa primeira leitura algumas palavras e expressões linguísticas são determinantes para toda a construção argumentativa concatenada na letra da música. Não obstante está a expressão não se afobe, não/ que nada é pra já presente, na primeira e na derradeira estrofe da música, como um refrão que retoma a questão posta anteriormente como relevante para a situação amorosa: o tempo.

E esta é confirmada por todo o primeiro parágrafo, principalmente quando se observa os versos o amor não tem pressa/ Ele pode esperar em silêncio, ou seja, não existe a necessidade da relação amorosa ser concretizada para que o amor exista, o locutor enfatiza essa questão e ao consolar ele também se exime da necessidade de corresponder a este amor – afinal o amor como sentimento é maior que o amante – e ao fim da estrofe coloca-se o recurso enfático para a questão da longevidade do amor ao repetir as palavras milênios milênios construindo um eco.

Este sujeito enunciador, assim sendo, parece não sofrer a questão do afastamento da pessoa amada, porque ele mais parece estar interessado em consolar seu enunciatário – que adotamos como a mulher que sofre a ausência do relacionamento – que viver a condição que ele adotara. Portanto o mais importante desta cena enunciativa é que se trata de um enunciatário embebido da visão materialista e imediatista do amor, como também da visão ultrarromântica, em que a necessidade de possuir o sentimento amoroso é levada ao extremo.

No entanto, este sujeito que enuncia acrescenta de maneira progressiva, num tom quase didático, argumentos para confirmar sua posição de rejeição a postura ultrarromântica de sofreguidão diante da própria história de amor no tempo. Ele exemplifica a respeito do caráter subjetivo das relações amorosas e diz que se no porvir alguém venha vasculhar esses resquícios de amor em papel, em palavras, não encontrarão grandes respostas, mas sim grandes enigmas, pois a idéia de amor é um conhecimento compartilhado, mas a experiência amorosa é individual.

É o que se observa nos versos “sábios em vão/tentarão decifrar/o eco de antigas palavras/ Vestígios de estranha civilização”, que em outras palavras nos sugerem esta subjetividade.

A questão curiosa que se constata na construção musical do “poema” é o fato de se tratarem de versos brancos, que torna complexa a melodia, como também uma postura libertária sobre a cadência do poema, pois esta parece ter sido desconstruída de maneira proposital para completar, no plano semiótico, a cena da interação verbal – como se letra e música estivesse em desconexão e que cada verso fosse tacitamente falado com um fundo musical, completando a visão teatral de que falamos nos parágrafos anteriores até chegarmos à cena da despedida.

Existe, entretanto, nos versos seguintes, um tom desprendido da mais ínfima compaixão em relação ao sofrimento do outro como se observa em: “e quem sabe então/ o Rio será/ alguma cidade submersa/ e os escafandristas virão/ explorar sua casa/ seu quarto/ suas coisas/ sua alma, desvãos. E se formos aos esconderijos dessas palavras, em consonância com a interpretação proposta nesta análise, há de se desvendar um sujeito demasiado consciente da posição que lhe pertence no relacionamento, do sentimento do outro e, também, da condição efêmera da manifestação do amor enquanto manifestação carnal.

Ao perpassarmos cada estrofe, entendemos uma construção desse sujeito que fala alto, que chegou ao êxito da não rendição diante da coita amorosa e da relação amor versus tempo que gera o sofrimento e frustração.

Não se pode deixar, todavia, de desvelar as formações discursivas que enlevam a condição desse sujeito, pois ao conseguir entender o amor para além da posição que ocupava no relacionamento, ele rompe com as formações discursivas a que pertencia e a que ainda pertence o interlocutor – ligadas ao entendimento de que amar é exigir a presença do outro, ser correspondido, e que a não correspondência leva a sofrer.

Estas formações, entretanto, estão engajadas com o pensamento pós-moderno da incompletude da manifestação amorosa e de seu caráter efêmero, poucos relacionamentos são duradouros, ele questiona essa durabilidade e demonstra que o sentimento não é efêmero, mas sim as relações e que uma história de amor não correspondido não se trata de um protótipo para toda a condição amorosa. O sentimento não precisa morrer, mas ele fica paciente esperando outra oportunidade.

Em linhas finais vê-se, pois, de maneira latente a interferência desse sujeito na própria condição psicossocial que ele antes ocupara no relacionamento, pois ele irrompe com a posição histórica que lhe pertencia no imaginário social: a de um homem que deve ocupar lugares como de marido, de amante, de fonte mantenedora do amor da mulher, um escravo da materialização carnal do amor. Posição esta que lhe configura a obrigação de estabelecer para si a relação “amar é sofrer” e a sensação de que o tempo é sempre pouco, de que o “tempo é agora”

Mas ele irrompe com essa condição histórica e a transcende a ela. E ao fazer isto ele se destaca, assumo um discurso atípico para a nação de amor versus tempo do mundo pós-moderno e constitui o momento fulcral desta análise.