“DO PALCO À PÁGINA”, DE ROGER CHARTIER

Roger Chartier estabelece logo no início do texto, que seu objetivo ao relacionar as modalidades de execução de textos e as diferentes recepções que lhe deram o público leitor, é identificar os modos como as obras e gêneros literários circularam e foram apropriadas, ou melhor, recebidas, durante os séculos XVI e XVII.

Em seguida, o autor assevera que, naquele período, os textos não eram produzidos tendo como alvo um leitor específico, consumidor solitário a partir de uma leitura silenciosa; diz que, em verdade, os textos tinham objetivos próprios, fincados no momento histórico que exigia, ou melhor, apenas permitia a leitura oral e comunitária, muito diferente dos hábitos modernos de leitura, fazendo com que os textos perdessem seu caráter invariável e universal.

Com o propósito de clarificar a questão ora levantada, o autor faz referência a uma fábula escrita pelo poeta argentino Luís Borges, na qual ele narra a trajetória da produção de um poema em homenagem às grandes conquistas do Grande Rei da Irlanda, encomendada por este ao poeta Ollan. A cada ano, durante três anos, o poeta se apresentou ao rei com o poema, que, sendo o mesmo, ganhou tons diferentes.

No primeiro ano, o poema obedeceu às rígidas normas da arte literária. Foi lido para o Rei, sua corte e uma multidão que mal se acomodava no local. Como prêmio, segue a fábula, o poeta recebeu do rei um espelho.

No outro ano, o poeta apresentou o poema contrariando todas as convenções às quais tinha prendido quando escreveu a primeira vez. A forma como o poema foi apresentado ao rei também sofreu alteração. Não foi recitado com a maestria da vez pretérita; foi lido com hesitação, claudicância. Não refletia a realidade das ações heróicas do rei, mas as apresentava com nuanças de ilusão, de invenção. Foi lido para o Rei e seus próximos, apenas. Como fora uma representação do real, o poeta recebeu pelo poema uma máscara dourada - como marca de seu poder inventivo. Ainda assim, o rei não achou a obra sublime, queria algo melhor.

No terceiro ano, o poeta Ollan apresentou um poema que consistia em uma única linha, e a leu somente para o Rei. Não havia regras, nem desrespeito a elas, pois o poeta havia deixado que a inspiração lhe dominasse, e ele, inspirado, subverteu a ordem do real com a linguagem da alma, do coração, que gera às vezes uma oração, outras, uma blasfêmia. A ode, sublime, revestiu-se de um caráter misterioso, que envolveu a ambos, Rei e Poeta, os quais se sentiram inundados por uma contemplação quase sagrada de um acontecimento inscrito seu interior, que só a eles incomodava, só a eles movia; como prêmio pela descoberta de sentimentos tão contraditórios, pungentes ao tempo em são prazerosos, o Rei entregou ao poeta uma adaga para este tirar a própria vida, e a si mesmo deu o Rei um destino errante, destituído da antiga glória, tornando-se um mendigo a percorrer os caminhos do reino sem nunca ter repetido o poema.

Essa fábula de Borges, diz o autor, quer comunicar o modo como o texto, digo, a textualidade é registrada em oposições, em momentos que se seguem, não negando um ao outro, mas revelando a pluralidade no fazer do texto de acordo com os objetivos de quem o faz, de como é feito, e do contexto histórico em que ocorre. Nessa linha de raciocínio, as noções fundamentais que constituem a “instituição literária” não devem prevalecer, ou seja, pensar em literatura somente a partir da existência de um determinado texto escrito - que, por estável, pode ser manipulado - da existência de um leitor individualizado, e de uma necessidade de significação do texto, incorre em precariedade quando se analisam os principais gêneros literários gregos ou romanos.

A ode, o canto ritual lido durante os banquetes a Dionísio, não poderia, segundo os conceitos atuais de literatura, assim ser considerada, uma vez que o texto do canto era elaborado no exato momento da execução, não sendo escrito ou repetido outras vezes. Porém, aos poucos a ode, a palavra poética inspirada pelas musas, foi se transformando naquilo que hoje se conhece como literatura. Tal transformação ocorreu durante os festivais e competições das cidades-estados, pois os cantos deveriam obedecer a certas regras que permitissem sua classificação e avaliação.

O autor assevera que as conseqüências dessa transformação foram, por ordem de importância: a) a distinção entre o canto avaliado por sua excelência literária e a cena ficcional inscrita no poema; b) necessidade de se atribuir o fazer literário a um autor – de onde por exemplo, decorre nomear Homero como o fundador da epopéia como gênero literário -, c) a necessidade de um fazer poético que estabelecesse regras, do que decorre a idéia do fazer poético como fruto do esforço e da criação, ou seja, o poema como um tecido, algo que se tece, um texto.

A partir desse ponto, o autor aborda questões relativas à forma como o texto pode ser interpretado não segundo as intenções de quem o produz, ou sua representação, mas pela leitura a partir principalmente das regras estabelecidas para o ato de escrever, critério para se avaliar o valor de uma peça segundo alguns comentadores de “A Poética” de Aristóteles. Nesse sentido, as questões técnicas, surgidas desde o momento em que a pontuação retórica, da oralidade, dá lugar à pontuação gramatical, da leitura, parecem dominar as análises dos textos literários, não definindo o momento em que tal transição tornou o fazer poético refém de uma abordagem puramente lógica, científica, nem definindo se a literatura pode ser assim denominada à parte da obrigação de ser escrita.

Clóvis Luz da Silva
Enviado por Clóvis Luz da Silva em 16/10/2006
Código do texto: T265771