Os funerais na Grécia: do mundo mítico à pólis

O presente trabalho tem como objetivo tratar sobre os funerais na Grécia de Homero e os feitos na pólis, bem como mostrar suas diferenças e convergências.

Para começar, procuraremos entender os funerais a partir do que se apresenta no "Dicionário Oxford de Literaturas Clássicas – gregas e latinas", de Paul Harvey(6). Consta no verbete “funerais e cremações” a seguinte definição:

“Funeral: O método de dar destino aos mortos variou entre os gregos em épocas diferentes. Nos tempos pré-históricos, conhecidos como micênios, costumava-se enterrar os cadáveres. Nos poemas homéricos os cadáveres eram incinerados numa pira. Nos tempos históricos usavam-se aparentemente ambos os métodos. Há referências a enterros nos poetas dramáticos gregos. Por outro lado conservaram-se urnas contendo os restos calcinados de mortos. Era costume pôr uma moeda na boca da pessoa como um pagamento a Cáron por seus serviços de barqueiro no mundo subterrâneo. As tumbas gregas situavam-se usualmente às margens das estradas que saíam da cidade. A tumba consistia geralmente numa laje ou coluna, ou simplesmente num montículo de terra, com uma inscrição para identificar o morto. Em épocas posteriores, costumava-se acrescentar alguns versos laudatórios”.

A historiadora Nicole Loraux, em seu livro "A invenção de Atenas"(1), diz que, dentre as invenções atenienses, está a oração fúnebre, mesmo sendo esta muitas vezes considerada marginal, embora não destituída de prestígio.

“Decretando que os atenienses são os únicos do mundo a praticar o elogio fúnebre. (…) Portanto, como instituição específica de Atenas, a oração fúnebre remete à oração fúnebre, e torna-se bastante difícil para um ateniense evocar a epitáphios, ainda que em meio a uma defesa política, sem adotar sua linguagem. Inversamente a pólis que honra os seus mortos por meio de um discurso encontra-se, a si própria, no discurso, como origem do nómos e como causa final da morte dos cidadãos”.

Esta reverência aos mortos não começou com a pólis. Antes, já se faz presente em vários momentos de "A Ilíada", de Homero.

Na história, a família de Heitor buscou de todas as formas resgatar o corpo do filho amado e estimado por todos do clã, para reverenciá-lo, mas a ira de Aquiles impediu a ação, até que ele se deixou ser tocado pelos apelos dos familiares do inimigo morto e devolveu o corpo do troiano, não concretizando o ultraje que pretendia fazer. Antes de a família conseguir convencer Aquiles, Apolo se apiedou do infeliz Heitor e cobriu-lhe o corpo com sua égide de ouro, para que, apesar da fúria do herói, ele se conservasse intacto:

“Durante doze dias, Aquiles repetiu a façanha, mas ao cabo desse período o próprio Zeus já estava irritado com aquela falta de respeito ao morto [Heitor]. Excetuando-se Hera, Atena e Netuno, os demais deuses o acompanhavam naqueles sentimentos.”

O grande herói grego, ao tentar ultrajar o corpo de Heitor, quis vingar-se da morte de seu grande amigo Pátroclo.

No texto "A bela morte e o cadáver ultrajado", o historiador Jean-Pierre Vernant(4) comenta o ultraje ao corpo de um herói já falecido:

“(…) Tornando o corpo uma massa informe que não se distingue mais da terra na qual permanece estendido, não somente se apaga a figura particular do defunto, mas suprime-se a diferença que separa a matéria da criatura viva, reduz-se o cadáver a não ser mais o aspecto visível da pessoa, mas essa argila inerte de que falava Apolo.”

O Canto 32 de "A Ilíada" traz outro exemplo da importância de se reverenciar os mortos. Quando Príamo recebe de Aquiles o corpo de Heitor e aceita esperar alguns dias para que a família do seu oponente faça a cerimônia de funeral, ele de fato reverencia e demonstra a importância dos funerais; se assim não o fizesse, estaria comprometendo sua areté, já que o funeral é um rito de passagem, tanto para quem o oficia como para alguém que é oficiado.

“(…) Mas dize-me com franqueza: quantos dias queres para realizar os funerais de Heitor? Quero sabê-lo para impedir que se reiniciem os combates durante este período.

E Príamo, comovido, respondeu:

- Se tu consentes que todas as cerimônias se realizem conforme o rito, fico-te muito agradecido. Precisaremos de doze dias, pois não temos mais lenha na cidade e é necessário ir buscá-las nas montanhas. No duodécimo dia estaremos livres e prontos para combater.”

Mas não apenas os troianos buscaram o resgate dos corpos de seus mortos. Ao lado dos gregos, lutaram também para conseguir o corpo de Pátroclo do campo de batalha, de forma a lhe prestar as devidas homenagens. Gregos e troianos demonstram o quanto é importante o ritual de cerimônia do funeral. Todo ato fúnebre é uma maneira de honrar o génos.

Outro dado importante envolvendo o ritual do funeral: o morto perde a sua psiquê, que irá direto para o mundo dos mortos.

Em "A Ilíada", Homero descreve, no Canto 31, o encontro entre Aquiles e Pátroclo, que lhe pede que sepulte seu corpo logo, para que ele possa ir para o reino de Hades.

“Aquiles, tu dormes, esquecido já do amigo que partiu? Peço-te me sepultes logo, para que me seja permitido atravessar o rio e ingressar no reino de Hades. E providencie que, na mesma urna em que puseres minhas cinzas, também as tuas sejam recolhidas, pois não tardará a seguir-me, e é bom que também após a morte não nos separemos.”

O “fantasma” de Pátroclo pede o funeral porque precisa de paz. Poderíamos dizer que a psiquê em Homero corresponde ao que atualmente se pode chamar de ectoplasma. É este ectoplasma que vai para o Reino de Hades. Homero usa a palavra psiquê para descrever o ectoplasma que abandona o cadáver; é seu sopro vital e precisa de um lugar para ir, não pode ficar vagando indeterminadamente. Seu lugar certo é o mundo dos mortos.

Em Homero, a psiquê não é mencionada quando a pessoa está viva. Quando o homem está agindo, não é sua psiquê que o impulsiona à ação. A definição de psiquê no aedo é muito diferente da atual, num mundo pós-Freud e com os avanços sobre o psiquismo humano. No mundo mítico, o homem não tem noção da alma como a concebemos nos dias de hoje, ou seja, como um aparelho psíquico.

Outro dado importante que se precisa lembrar é que o mundo mítico encara a morte como algo normal na natureza. O homem não se sentia um ser à parte da Mãe Natureza, o mundo é a própria Mãe Terra. Há um pensamento circular em que tudo é planejado para que haja uma perfeição exata, infalível e regular. O cosmo funciona com perfeição, então a natureza é perfeita e todos os seres têm como destino final a morte, que completa este círculo de perfeição. Com isso, o homem homérico se organiza do mesmo modo que a natureza, a noção de indivíduo é secundária, o que se pensa é na coletividade e no bem do clã.

Quando um aedo reverencia as façanhas de algum guerreiro, por exemplo, sua psiquê é invocada e, ao ser reverenciada, ela “brilha”, glorificando-se. Ao cantar as glórias do guerreiro morto, este não é mais ignorado, e seu clã é exaltado. Morrer no anonimato é a morte real para qualquer um, pois não se estará dignificando o clã e sua história familiar.

No texto "A bela morte e o cadáver ultrajado", Jean-Pierre Vernant(4) diz:

“(…) Ser reconhecido, estimado, honrado; é sobretudo ser glorificado, ser objeto de palavra de louvor, de uma narrativa como conta, sob a forma de uma gesta, retomada repetida sem cessar, um destino por todos admirados.”

É importante fazer tal explanação para que se tenha consciência de como o funeral será tratado a partir da pólis.

Com a pólis o que se restringia ao campo familiar, dos génos, passa a fazer parte do coletivo, da comunidade. A historiadora Nicole Loraux, em seu livro "A invenção de Atenas"(1), diz que em muitas cidades-estado gregas na Época Clássica a glorificação dos mortos é uma obrigação do Estado para com as vítimas de guerra e que tal atitude constitui uma importante dimensão da vida cívica. Se antes os mortos em guerra eram exaltados por seus familiares, e só assim o génos teria valor, com o surgimento da pólis a homenagem aos mortos é uma celebração da pátria.

“A pólis ateniense, entretanto, rompe com o costume grego de sepultamento em campo de batalha ao repatriar as cinzas dos mortos. (…) A coletividade encontra vantagens em venerar os mais valorosos dos seus, pois, assim, exprime sua coesão e grandeza, e as atesta solenemente diante de todo o universo. (…) Enterrando seus mortos, a comunidade ateniense apropria-se deles para sempre e no demósion sema se anulam todas as distinções individuais ou familiares, econômicas e sociais, que, até mesmo no túmulo, poderiam dividir os atenienses.”

Para se ter uma ideia, com essas mudanças de valorização da pátria em contraste à glorificação do génos, até mesmo o sepultamento mudou. Loraux afirma que as sepulturas na época arcaica reuniam todos os membros de uma mesma família aristocrática, enterrados lado a lado, na mesma necrópole. Com a pólis a situação muda.

“No demósion sema, ao contrário, estabeleceu-se uma oposição funcional, que, no seio de um mesmo grupo de atenienses, isola, para sempre, os andrés – adultos e cidadãos-soldados – de seus pais, de seus filhos e, também, de suas mulheres. Talvez a pólis ateniense, democratizou a atividade militar e a abriu para todos os cidadãos, seja, mais do que qualquer outra pólis, um ‘clube de homens’.(…) A guerra é um assunto de homens, os funerais cívicos o são igualmente.”

A pólis grega delimita dessa forma o papel e o lugar da mulher em meio a essa assembleia masculina, livremente reunida para honrar os mortos. As únicas figuras femininas admitidas são seus parentes próximos. Ainda assim, a presença do chamado sexo frágil só é permitida, segundo Loraux, junto ao túmulo, jamais durante o cortejo.

“A exclusão das mulheres introduziu a questão do afastamento das famílias, da qual talvez não se constituísse mais do que uma casa particular, se a atitude da democracia ateniense em relação aos parentes dos desaparecidos não se mostrasse, de fato, bem mais nuançada do que parece a princípio, ao menos no que concerne aos atos que precedem e que seguem aos funerais. Na verdade, na próthesis e no banquete fúnebre, os particulares são autorizados a homenagear livremente seus mortos. Ainda que rigorosamente regulamentadas, essas cerimônias têm lugar nas moradias privadas, nas casas dos parentes mais diretos dos mortos. (…) Pode-se falar de um compromisso entre a família e a pólis; entretanto, os valores cívicos têm primazia”.

Nicole Loraux comenta ainda a importância da oração fúnebre, que domina o momento mais solene no funeral.

“A oração fúnebre dispõe: a predominância da pólis está inscrita na própria estrutura do discurso, onde a consolação dirigida aos parentes em luto, em geral, culmina em uma exaltação das honras cívicas e da magnanimidade da pólis. E é também como faz o orador Menexeno, que, após relembrar a dupla significação cívica e familiar dos funerais, dedica-se a sublinhar que a pólis assume sozinha todos os papéis: de pai e de filho”.

No livro "Eloquência Grega e Latina", organizado por Jaime Bruna(5), confirma-se o que a historiadora diz e vai-se um pouco além: nas cidades-estado da Grécia Antiga, a oratória amadureceu como uma arte intimamente ligada ao contexto político .

(…) Nas cidades-estado da Grécia com suas bulés e ecclesias, assembleias legislativas e ao mesmo tempo tribunais, onde comparecia o povo para reger os próprios destinos e julgar os transgressores da vontade da maioria, a oratória amadureceu na arte sujeita a cânones.”

Nos textos organizados por Jaime Bruna inclui-se "A oração fúnebre de Péricles", de Tucídides. É importante esclarecer: Tucídides nasceu em Atenas por volta de 465 a.C.. De família aristocrática, escreveu a história da Guerra do Peloponeso, narrando a luta de Atenas . Segundo nota de Jaime Bruna(5), é o primeiro historiador, eliminando da História:

“(…) a intervenção milagrosa dos deuses, ainda admitida por Heródoto, busca nos interesses e paixões dos homens a causa dos acontecimentos; tem a preocupação de ser exato, de colher informações seguras, de controlar suas fontes; escolhe, onde faltam estas, as tradições menos fantasiosas e mais plausíveis. Quer, na História, uma lição de experiência adquirida – são seus termos – para sempre.”

Tucídides fez o pronunciamento abaixo em 431 a.C., por ocasião dos funerais com que Atenas, anualmente, dava sepultamento solene aos mortos de guerra.

Mais do que um elogio aos heróis tombados na luta, é um panegírico de Atenas e de sua democracia.

“Em sua maioria, os oradores desta solenidade têm louvado a introdução da oração fúnebre no costume, por acharem belo pronunciamento no enterro dos que tombaram em guerra. Ao meu ver, bastaria traduzir em ações os preitos a homens valorosos na ação, ações como vedes aqui, no erguimento de um túmulo em nome do povo; assim maior ou menor eloquência de um só. (…) Para começar. Partirei de nossos antepassados; é justo e ao mesmo tempo adequado a uma cerimônia desta natureza render-lhes a homenagem desta evocação. Habitando este país ininterruptamente através de sucessivas gerações, eles no-la transmitiram livre até hoje. Este louvor não o merecem só eles, senão, mais ainda, também nossos pais; à sua herança, não sem fadigas, acrescentaram todo o império que possuímos e legaram-no nós mesmos, homens hoje ainda em plena idade madura, em tudo aparelhando a república para bastar a si mesmo na guerra ou na paz. Não direi dos feitos guerreiros em que se consumou cada uma dessas conquistas, nem das agressões, vindas da Grécia e do exterior, rechaçadas com denodo por nós mesmo ou por nosso país, para não me alongar a referi-lo a quem o sabe; mas antes de abordar o elogio destes bravos, explorarei quais normas de vida o levaram a esse domínio, graças a qual constituição política e mercê de que traços de caráter o alargamos, segundo penso, não seria impertinente discorrer, nesta oportunidade, sobre esse tema e a toda a multidão de atenienses e forasteiros aproveitaria ouvi-lo.

Nossa constituição não copia as leis dos vizinhos; damos antes modelo a alguns do que imitamos a outros. Ela, por depender não de uns poucos, mas do maior número, chama-se democracia; nas divergências privadas, estatui a igualdade de todos perante a lei; quanto às dignidades, as pessoas ascendem às magistraturas não, as mais das vezes, em razão de sua categoria, senão de seus méritos, conforme o conceito de qual em algumas prestância; nem a pobreza impede ninguém, obscurecendo-lhe o valor, de prestar à república o bem de que foi capaz. Não só nas relações políticas somos livres, somo-lo igualmente de mútuos temores na vida quotidiana. Não nos encolerizamos com o próximo por agir a seu bel-prazer, nem lhe infligimos vexações, que, embora inócuas, causem repulsa.

(…) Em palavras, de acordo com a tradição, eu disse tudo que tinha apropriado; em atos, os heróis que estamos sepultando receberam de um lado, nossa homenagem e, de outro, a república criará os seus filhos, até a juventude, a expensas do erário, oferecendo a eles e aos que deixaram essa proveitosa coroa em recompensa de tão nobres lutas; os homens cumprem melhor seus deveres de cidadãos quando os maiores galardões esperam a virtude. Prestai, agora, a cada um o preito do último lamento e podeis ir”.

Conclusão

Com a invenção da pólis, os valores da época mítica não foram deixados de lado, mas sim incorporados, com o objetivo de fortalecer a cidade-estado, que começava a surgir no mundo grego. Ao invés de renegar ou querer suprimir os funerais e suas orações, a pólis consegue, ao apoiar o elogio aos epitáphios fúnebres e utilizando-se do passado mítico, construir o seu próprio ideal de uma Atenas.

Refletindo sobre este fato, na contemporaneidade, nós, mulheres e homens de uma era 'pós-pós-muderna', podemos aprender com os gregos, mesmo após mais de dois mil anos: renegar o passado é destruir o futuro. Ele pode – e deve ser – o alicerce sobre o qual construiremos a história do nosso tempo para as gerações vindouras.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 31/07/2011
Reeditado em 11/03/2020
Código do texto: T3129557
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