Pequena grande prosa
Conto “Desenredo”, do livro Tatumeia, mostra as infinitas possibilidade de leitura da narrativa rosiana

 
Por Susana Souto Silva, em Língua portuguesa no 71

 
João Guimarães Rosa (1908-1967) transforma de tal modo a língua que, quando o lemos pela primeira vez, pensamos estar diante de um texto escrito num idioma estrangeiro, com suas palavras incomuns e sua sintaxe desconcertante. Até a sua biografia tem palavras inusitadas: nasceu no sertão de Minas Gerais, numa cidade de nome alemão, Cordisburgo; seu pai chamava-se Florduardo. Sobre a infância, Rosa declarou em entrevista ao crítico Günter Lorenz: “trazia sempre os ouvidos atentos, escutava o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda”.
  Espécie de mágico do idioma, Rosa tira da sua cartola arcaísmos, neologismos e revigora termos de uso cotidiano, mobilizando assim um vasto repertório de línguas, aperfeiçoado nos anos em que viveu no exterior como diplomata, e revelando uma profunda intimidade com a língua portuguesa. Publicado em 1946, seu primeiro livro trazia na capa a palavra Sagarana, derivada da fusão de saga (de origem germânica, que remete às narrativas nórdicas em prosa, de caráter histórico ou lendário) e rana (sufixo oriundo do tupi, que significa “à maneira de”, “semelhante a”). A obra é composta por narrativas situadas no sertão mineiro, repleta de falares típicos recuperados de forma estilizada pelo filho de seu Florduardo.
  No ano de sua morte, 1967, Rosa publicou um volume de contos intitulado Tutameia, derivada da junção de tuta-e-meia, expressão que significa “coisa pequena”, “coisa miúda”, e pode ser entendida como referência ao tamanho das 40 narrativas do livro, que variam entre três e cinco páginas. Esse livro trás ainda dois índices, um de leitura e outro de releitura (indicando que a compreensão dos textos exige atenção e tempo do leitor), e quatro prefácios, que subvertem a noção de prefácio como texto introdutório e explicativo.
  Vejamos um trecho de “Desenredo”, uma narrativa de Tutameia de apenas três páginas que nos convida a experimentar, como toda a obra rosiana, as infinitas possibilidades de nossa língua.

Do narrador a seus ouvintes:
A palavra “ouvinte” cria uma moldura narrativa que remete a uma cena de circulação de estória, em que o narrador está próximo daqueles que o ouvem. Esse recurso anuncia o uso de elementos típicos da oralidade como conto, como a elipse e a presença de ditos populares.
Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Como elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
 
O autor estabelece uma intertextualidade com a Bíblia. Junta dois nomes de personagens conhecidos: Jô, caracterizado no relato religioso como o que aceita os desígnios divinos, mesmo que dolorosos e duros, e Joaquim, o pai de Maria, que é simples, pacífico.
Mais uma vez o texto opera a reelaboração do relato bíblico ao citar não apenas o nome dos personagens que figuram no Gênesis, como o primeiro homem e mulher, mas ao retomar a narrativa da criação da mulher, feita a partir da costela de Adão enquanto este dormia.
 
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
 
A descrição da personagem é metonímica e mínima. É bonita, embora descrita por comparações inusitadas. Os olhos que, segundo a tradição, são considerados as janelas da alma, aqui, são associados aos de uma mosca, algo cotidiano e desagradável.
Escrever pressupõe selecionar e combinar repertórios. Assim, Rosa seleciona o mês de maio para situar o tempo em que os personagens se conhecem. Segundo a tradição católica, maio está associado ao amor, pois remete à Virgem Maria.
 
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
 
Nenhum diálogo entre os personagens é narrado. Somos convidados a imaginar. O espaço está articulado às ações apresentadas. O amor dos personagens deve ser secreto, clandestino, pois a mulher é casada, o marido é ciumento e, sobretudo, porque eles moram numa cidade pequena.
A prosa quase sempre se articula a partir da sucessividade. Não começamos um romance pelo terceiro capítulo, por exemplo. Mas Rosa subverte essa relação e insere versos em suas narrativas, períodos que podem ser lidos e destacados sem perder o sentido, como esse trecho ou o seguinte (grifo laranja).
 
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que a ferira, leviano modo.

 
A relação paródica com ditos populares; nesse caso com “o trágico vem a galope”. Essa inversão, por meio do uso da negativa, força o receptor a um deslocamento do já conhecido.
O escritor Julio Cortázar (1914-1984) diz que o conto é um “caracol de linguagem”, sem espaço para desperdício. Assim, nesse trecho, temos apenas o pronome oblíquo enclítico, que indica que o marido assustou a mulher (a) e matou o amante (o), ao flagrá-los juntos.
 
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudo personagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.
 
A rede intertextual amplia as possibilidades do texto e aciona o repertório de leituras. A Bíblia é mais uma vez evocada, e narra-se a criação do homem (Adão, Adam, derivado de “terra”, Adamah).
A imagem escolhida está em consonância com o universo rural. Além disso, a passagem indica que o personagem tinha um marido e dois amantes. Assim, Rosa opera modificações no clichê da narrativa de adultério.
Neologismo criado a partir da fusão de duas palavras existentes: “abuso” e “usufruto”, que enfatiza o sentimento do narrador e destaca procedimentos de criação, na língua, de novos vocábulos.

 
Susana Souto Silva
Enviado por Germino da Terra em 28/01/2012
Reeditado em 28/01/2012
Código do texto: T3466493
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.