Os vastos espaços, por Paulo Rónai em Primeiras estórias de Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira

Desde 1962, quando saiu a primeira edição deste volume, Guimarães Rosa não publicou nenhum outro livro. Entretanto, nestes últimos anos, a sua situação literária passou por modificação substancial. Transpondo as barreiras linguísticas não só do próprio idioma, mas também as que o escritor parecia erguer adre­de em torno da sua obra, esta inesperadamente se tornou em artigo de exportação: farejada pelos noticiários, descoberta por editores da Europa e da América, transposta as duras pe­nas para as grandes línguas de cultura, ela está sendo saudada pela crítica internacional como a revelação de um universo novo e lida pelos públicos mais exigentes.
  Que um ficcionista nosso, livre de vinculações políticas, avesso a qualquer facilidade e intransigente em seus padrões artísticos, tenha conquistado, pela autenticidade da sua mensagem, audiência internacional — isto abre novas perspectivas à valorização das letras brasileiras no mundo. E note-se que embora desfalcado de algumas de suas características mais peculiares, pois toda a arte dos tradutores, ainda que disponham da virtuosidade de um Meyer-Clason, não pode deixar de atenuar-lhe a torrencial força expressiva.
  Daqui em diante a evolução dessa arte deixa de ser assunto interno: mesmo aos livros vindouros do ficcionista estão assegura­das, desde já, vasta expectativa e acessibilidade universal. Não é provável, contudo, que o reforçamento da acústica venha a exercer modificação sensível nos seus processos de criação. Como todo grande artista, o nosso autor escreve para si mesmo, para o próprio deleite, catarse e realização. É de esperar, portanto, que o sa­ber-se ouvido por um auditório muitas vezes maior venha apenas corroborar-lhe a poderosa originalidade, exalçar-lhe as tendências íntimas, que, de volume a volume, se acusavam com maior vigor.
  A amplitude do êxito e motivo de satisfação para os críticos brasileiros, que, logo depois do aparecimento do primeiro livro de Guimarães Rosa, souberam discernir-lhe o alcance ultranacional. O mais ouvido de todos, Álvaro Lins, apontou-o imediatamente como “o que deveria ser o ideal da literatura brasileira na feição regionalista: a temática nacional numa expressão universal”.

Justificação desta nota introdutiva
A obra de Guimarães Rosa, de riqueza e complexidade crescentes, estimula cada vez mais o trabalho da exegese. Note-se, porém, que mesmo os críticos mais aparelhados para a tarefa só a empreendem com precauções e ressalvas, como que intimados a definir primeiro o próprio ofício e a precisar-lhe as limitações. Enquanto não expla­nada, a obra se constitui de um conjunto de sugestões inseparavel­mente entrelaçadas; destacando uma ou outra, a explanação relega as demais à sombra, além de romper os fios de interligação. Por isso é que, ao apontar três planos superpostos em Grande sertão: vere­das, mestre Cavalcanti Proença se apressa em acrescentar: “É preci­so, porém, ressaltar o artificialismo desta simplificação, pois que as várias camadas se interpenetram, não sendo possível delimitá-las, mas unicamente acentuar-lhes as características e conexões que nos permitem esta divisão genérica. Decorre dessa complexidade uma abundância de elementos alegórico, uma simbologia muito densa, além do caráter polissêmico das personagens.”
  Vilem Flusser, em sua notável glosa ao conto “As garças” (pos­terior a este volume), aponta outro perigo: a crítica “afrouxa a densidade e traduz o conto da camada vivencial para a intelec­tual”. As tentativas de explicação acabam, sem querer, apoiando o traço de desenhos cuja magia está no esvaimento dos contor­nos, por dar expressão matemática a um conjunto em que não há equações perfeitas.
  Oswaldino Marques, em seu penetrante ensaio “Canto e plu­magem das palavras”, todo ele consagrado à arte de Guimarães Rosa, julga indispensável uma definição prévia das teorias da análise literária, uma das quais consiste em “tornar manifestos, a posteriori, os elos subconsciente da construção formal para definir os originais de que se valeu o artista no tour de force da imitação” (e, por se tratar de Guimarães Rosa, poderia ter dito “os elos subconscientes, e os conscientes, mas ocultados”).
  Adolfo Casais Monteiro, estudioso eminente dos problemas do romance, em face de Grande sertão: veredas, renuncia à pretensão exegética para apenas “refletir sobre o livro que nos deixou profun­da impressão, para nos esclarecermos mais do que esclarecer seja quem for — e muito menos para ensinar nada ao autor”.
  Não é outra coisa que se propõe o prefaciador de Primeiras estórias ao tentar expor, mais uma vez, suas razões de deslumbramento e espanto ante um livro de Guimarães Rosa. De suas conversações com o autor, nas quais vislumbrou numerosos subentendidos que lhe tinham escapado durante a leitura, ficou-lhe a convicção de que mesmo ao olhar mais agudo seria impossível abranger a totalidade intrincada das intenções do mais consciente dos nossos escritores. Se, apesar disso, se atreve a perlustrar o mais labiríntico de seus livros, onde a perspectiva, a atmosfera e a temperatura emocional mudam mais de vinte vezes, é apenas para exemplificar uma das muitas maneiras de acercamento amoroso de uma obra de ficção com que as nossas letras contribuem para o enriquecimento da li­teratura mundial.

Por que “primeiras” e por que “estórias”?
Cada novo cume atingido é, para o artista criador, um triunfo e um perigo. A obra-prima realizada impõe a obrigação de superar-se. Em Corpo de baile, Guimarães Rosa soube corresponder à expec­tativa suscitada por Sagarana; em Grande sertão: veredas, soube ir ainda mais além; e soube renovar-se nestas Primeiras estórias, que, não obstante o seu volume pouco alentado, formam outra etapa importante na reta da sua ascensão e obrigam o comentarista a rever suas apreciações anteriores. Há vinte anos, num artigo sobre Sagarana, antevi a vocação de romancista do futuro autor de Grande sertão: veredas, mas pus em dúvida seus dotes para o conto curto. Hoje estou persuadido de que suas inesgotáveis vivências se cristalizam, por assim dizer, automaticamente no gênero mais apto apropriado.
  Na falta de precisões da “orelha” do volume, o título pede duas palavras de explicação.
  O epíteto não alude a trabalhos da mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim à novidade do gênero adotado, a estória. Esse neologismo de sabor popular, adotado por número crescente de ficcionistas e críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas, destina-se a absorver um dos significados de “história”, o de “conto” (= short story). A oposição conceitual re­sulta nitidamente deste trecho de “Nenhum, nenhuma”: “Era uma velha, uma velhinha de história, de estória — velhíssima, a ina­creditável.”
  Embora o termo, hoje em dia, já apareça também sem conota­ção folclórica, referido às narrativas de Guimarães Rosa envolve-se numa aura mágica, num halo de maravilhosa ingenuidade, que as torna visceralmente diferentes de quaisquer outras.

Diversidade e unidade
Nisto já antecipamos a característica dominante da coletânea: sem embargo de sua extrema diferenciação, as vinte e uma estórias acabam dando uma impressão de homogeneidade perfeita — tal como as novelas de Sagarana se fundem em unidade, ou como as sete narrativas de Corpo de baile emergiram intimamente associa­das da imaginação do artista.
  Diversos, antes de mais nada, os assuntos: tente-se recontá-los em breves palavras para ver quantos. Diversas as situações, os problemas envolvidos e suas soluções. Note-se ainda que cada es­pécime pertence, por assim dizer, a outra variante ou subgênero — o conto fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódio cântico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... Distinga-se a multiplicidade dos tons: jocoso, patético, sarcástico, lírico, arcaizante, erudito, popular. Pedante multiplicidade decorrente não só do tema, senão também da personalidade do narrador, manifesto ou oculto. Observa-se a va­riedade da construção e do ritmo.
  Contudo as histórias se apresentam com inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo halo, trescalando o mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços estilísticos: provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte.
  Cada estória tem como núcleo um acontecimento. Mas o sen­tido atribuível a esse termo não é o que lhe dão comumente os di­cionários, isto é, não é sinônimo de ocorrência. “Parecia não acon­tecer coisa nenhuma”, adverte-nos o contista certa vez; e em outra ocasião pondera, ainda mais explícito: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.”
  Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses aconteci­mentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadap­tados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que exis­te dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.
  Os que desencadeiam essa corrente e nela se banham sentem-na com toda a intensidade, mas encontram dificuldade em comunicá-la. Ainda que tenham o verbo fácil, falta-lhes o domínio da lingua­gem abstrata e exteriorizam suas fortes experiências íntimas com toda a sua riqueza de matizes numa língua concreta, saborosa e enérgica; a maioria, porém, compõe-se de taciturnos, desajeitados e ensimesmados, que nem tentam exprimir-se e passariam desper­cebidos pela vida se não encontrassem quem lhes emprestasse a voz. Reconstituir a fala daqueles, traduzir o silêncio destes — eis a tarefa do contista.
  Até os contos que não se enquadram neste esquema represen­tam, de uma ou de outra maneira, sondagens no inconsciente; as­sim a evocação e reconstrução, pelo adulto, de vivências infantis ou juvenis só parcialmente entendidas na época, ou o monólogo do introspectivo a procura do próprio eu sob as camadas super­postas pelas contingências do viver. O espetáculo tragicômico do demente encarapitado no alto de uma palmeira enseja um estudo de patologia individual, e outro, de patologia coletiva. As próprias narrativas anedóticas se prolongam, pelas alternativas sugeridas, num plano outro que não o real.

Cenário e substrato social
A maioria dos contos desenrola-se numa região não especifi­cada, mas identificável como a das obras anteriores do autor: o mundo da sua infância e da sua mocidade. Menos onipresente do que naquelas, onde chega a desempenhar papel de protagonista, o cenário é esboçado com poucos toques, mas de extrema precisão. Sunt nomina rebus: bichos e plantas têm nome e atri­butos seguros; costumes e hábitos, misteres e fainas revivem na sua autenticidade minuciosa. As cenas enquadram-se na moldura de altos morros e vastos horizontes, amplos rios margeados de brejos, campos extensos de muito pastoreio e escassa lavoura, fa­zendas enormes — as do Pãodolhão, do Tôrto-Alto, do Casco, Congonha, Santa-Cruz-da-Onça, Lagoa-dos-Cavalos — forço­samente auto-suficientes, que se abastecem a si mesmas de ví­veres, artigos de primeira necessidade, folguedos, superstições e justiça. Acostumados a não encontrarem vivalma por muitas lé­guas, fazendeiros e agregados, desconfiados e pouco comunicati­vos, tornam-se reticentes mesmo no recesso da família; a falta de intercâmbio aparta-os dos demais; acabam encaramujando-se. Do ensimesmamento ao isolamento, deste à mania, o caminho é direto; os taciturnos calam-se de vez, e um dia surpreendem a família com o estouro da sua demência.
  Nos intervalos das fazendas ocultam-se arraiais pobres, de redu­zida povoação o arraial do Breberê, o povoadinho do M’en-gano, o lugar chamado o Temor-de-Deus sem quaisquer recursos de organização social. A lei do mais forte a única existente e exercida na fazenda sob formas paternalísticas pelo dono, assisti­do, para o que der e vier, dos rifles certeiros de alguns capangas; nas vilas, pelos valentões do lugar, detestados e temidos; nas escassas cidadezinhas, pela polícia local, que, para fazer-se respeitar, tem de pedir emprestados os métodos da arbitrariedade. Em contato com os elementos imemoriais da paisagem, nuvens e ventos, montes de perfil invariável, sendas de largura constante, as mesmas árvores, o mesmo gado, a vida corre numa rotina secular, regulamentada por vetustos códigos de honra que determinam inflexivelmente os deveres do parentesco, da amizade e da hospitalidade, assim como os da inimizade e do ódio.
  Os vastos espaços desertos são povoados pelos devaneios da imaginação. Os riscos e os imprevistos da dura vida do dia a dia produzem resignação e fatalismo. Nos casarões da fazenda encon­tram-se à mesa parentes, amigos e comensais de incerta procedên­cia; acotovelam-se crianças e macróbios sobreviventes de tempos idos; acolhem-se e escondem-se fugitivos; dissimulam-se segredos do clã. As raras quebras do ramerrão são motivos de alvoroço, es­petáculo para os basbaques, agitação para os insofridos. A sede do sobrenatural gera santos e suscita milagres, matiza a religião de variantes animísticas.

Personagens
Ocupar-me-ei mais adiante dos neologismos de Guimarães Rosa e da probabilidade de eles se incorporarem ao idioma. Em todo o caso, “personagente”, mais que personagem e menos que protagonista, e dos que poderiam introduzir uma nuança útil na nomen­clatura da crítica.
  Pois bem, na multidão de figurantes de Primeiras estórias, os “personagentes” quase todos pertencem a duas categorias, a de loucos e a de crianças. Os da primeira são particularmente nume­rosos. Rodeados da áurea de sapiência e santidade de que os cerca o povo, exibem infindáveis esfumaturas e gradações da demência. Impossível traçar, aliás, a linha de demarcação entre esta última e a normalidade, tanto mais quanto por vezes a mais previdente e calculadora sabedoria se disfarça em mania (“Nada e a nossa con­dição”), enquanto a loucura pode heroicamente adotar soluções de bom senso que a razão pusilânime não ousa levar em consideração (“A benfazeja”) ou recorre a ardis de incrível sagacidade (“O cava­lo que bebia cerveja”). Desmascarada e refreada quando irrom­pe num ímpeto (“Darandina”), a alienação é aceita como parte dolorosa da rotina da vida quando se declara paulatinamente (“A terceira margem do rio”). Ao contista suas variantes interessam não como casos clínicos (embora frequentemente revele conhe­cimentos fora do comum, relacionados com seus antecedentes de médico), e sim como campo propício à invasão do irreal, do irracional, do mágico numa palavra, da poesia. E, na medida em que permanece acessível a esses poderes, o homem “normal” tem seus instantes de exaltação. Assim, quando Sorôco, após despachar a mãe e a filha loucas, retoma por sua vez a desatinada canção trauteada por elas, a multidão circundante imita-o sem querer. E o velho Iô João de Barros Diniz Robertes, “encostado, em maluca velhice” e “aprazado de moribundo”, quando sai da modorra senil para uma última e quixotesca cavalgada, arrasta atrás de si uma multidão magnetizada. “Ninguém é doido. Ou, então, todos.” A loucura enche os vazios da vida, solta fogos de artifício, escancara os horizontes.
  Ao lado dos doidos, as crianças formam grupo menor, mas im­portante, “estrelando” cinco estórias. Elas “fazem parte de uma curiosa estirpe de personagens, preludiada por Miguilim e Dito, de ‘Campo Geral’, e à qual pertencem infantes de extrema pers­picácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados de poderes extraordinários, quando não possuem origem oculta ou vaga iden­tidade” (Benedito Nunes). Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se deslumbrem com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. Nos contos inicial e final realiza-se a gageure de fazer desfilar pela sensibilidade de um menino, com o pensamentozinho “ainda na fase hieroglífica”, os grandes problemas existenciais do bem e do mal, e, através da sua decifração, é transmitida uma men­sagem de otimismo e de fé. Alhures, Nhinhinha, crescida no isola­mento da roça, é, por isso, isenta da visão convencional dos fenôme­nos, vislumbra-lhes os segredos em acenos que, para a testemunha culta, são manifestações elementares de lirismo, e, para os parentes simplórios, emanações de santidade. Brejeirinha, seu oposto na vi­vacidade da inteligência, mas sua parenta no frescor da imaginação associativa, encontra tanto divertimento nas palavras como nos ob­jetos, utilizando umas e outros como brinquedos. (Poder-se-iam ver nas duas meninas as encarnações da poesia popular e da erudita.)
  Pela evocação de vivências análogas às de todos nós, assis­timos com curiosidade total à aventura dos meninos atores de “Pirlimpsiquice”, exemplo de virtuosismo em seu ritmo arrebata­do, estudo de psicologia juvenil, mas também relato de um desses milagres do cotidiano que são o domínio específico do autor. A embriaguez desses colegiais entregues a elaboração de uma “so­brepeça” à margem da peça que ensaiam é extraordinária, e contudo tão plausível quanto à experiência do Menino que, transporta­do para a grande cidade que se ergue do chão num lance de mágica, teima em ver o milagre em dois perus e num tucano.

Enfoque e perspectiva
O crítico Dante Moreira Leite assinalou, em Grande sertão: veredas, a transcendência do modus narrandi adotado: relatório feito pelo protagonista a um estranho que se limita a ouvi-lo como o psicana­lista ouve as confidências do paciente. “O romance somente adqui­re sentido diante do interlocutor quase silencioso que não interfere nas interpretações e nem na fabulação de Riobaldo.” Analisando noutro estudo a novela “Campo geral”, do nosso autor, escrita na terceira pessoa convencional da ficção, mas que apreende apenas a experiência do menino Miguilim, ressalta Dante Moreira Leite que o recurso era necessário, “pois a história não poderia ser nar­rada pelo herói a não ser como evocação, e isso (...) destruiria o seu núcleo fundamental, que é a perspectiva da criança”.
  Teve toda razão o ensaísta ao apontar nessas duas obras a im­portância intrínseca do que poderíamos chamar o enfoque da his­tória; a observação pode ser generalizada em relação a todas as obras de Guimarães Rosa, pois em todas elas o ponto de vista do narrador constitui elemento essencial, mais de uma vez verdadeiro fio de Ariadne.
  Às Primeiras estórias, especialmente, a constante variação da perspectiva confere descomunal riqueza de cambiantes, muitas vezes um elemento suplementar de mistério. Algumas, segundo toda a evidência, tem raízes em experiências pessoais do autor e envolvem sua participação direta, ainda que não muito intensa. O máximo de sua presença ativa note-se em “Pirlimpsiquice”: ainda assim, ele funciona menos a título individual do que como parte de uma coletividade. Noutros casos desempenha o papel de figuran­te passivo (“Famigerado”), presenciador inconsciente (“Nenhum, nenhuma”), testemunha e comentador (“Fatalidade”, “A menina de lá”), evocador e exegeta.
  À primeira pessoa da narração pode corresponder o eu não do autor, e sim de um relator nominalmente designado cuja perso­nalidade se vai delineando paralelamente ao desenrolar-se da ação (“Luas-de-mel”, “O cavalo que bebia cerveja”, “— Tarantão, meu patrão”), ou a pessoas sem nome mas possuidoras de personalida­de, como o narrador de “O espelho”, em quem vamos identificando um desses solitários autodidatas da província que se emaranham nos fios de suas infindáveis especulações, ou o de “A terceira mar­gem do rio”, que se vem contagiando com a demência do pai. Dos outros eus, o de “Darandina” tem seus pontos de contato com o autor, de quem partilha (e exagera) as fantasias verbais e o pendor filosofante; o de “A benfazeja”, revelador dos sentimentos incon­fessados de uma comunidade, parece mais uma personificação do que uma pessoa.
  Nas estórias contadas em terceira pessoa observam-se também divergências no grau de participação do invisível narrador. Se a sua parte, em “Sequência” ou em “Substância”, se reduz à onipresença e à onisciência convencionais do ficcionista, em “Sorôco, sua mãe, sua filha” e “Os irmãos Dagobé” diz respeito antes a um membro não individualizado da multidão a testemunhar os fatos contados. Em “Partida do audaz navegante”, a subjacente simpatia do autor acusa reminiscências de infância. Em “As margens da alegria” e “Os cimos”, que se apartam do resto do volume em estrutura e propósitos, o autor existe para decifrar os pensamentos hieroglíficos do Menino.
  Essa série de substituições, procurações e disfarces, esse brin­car de esconde-esconde não serve só de provocação e estímulo: habitua o leitor a dar a volta da história e a repensá-la. Qual não seria o caso de Nhinhinha narrado não pelo autor, compassivo mas ainda assim distante, e sim por Tiantónia? ou o do remador que embarca para nenhures, se glosado não por quem lhe sofre o des­vario na própria carne, mas por um espectador chistoso como o de “Darandina”? Afinal, o próprio relato metamorfoseia-se em ação e enredo: haja vista a ambivalência e a evolução dos sentimentos do capanga Reivalino em relação ao patrão. Tem-se aí outra história à margem da primeira, de mistério não menos profundo que o do cavalo bebedor de cerveja.

Estrutura
Sabe o nosso autor, como poucos, graduar a emoção, criar sus­penses, produzir a expectativa de catástrofes. Essa expectativa, porém, frequentemente não é satisfeita: as estórias acabam sem explosão, os conflitos esvaziam-se em resignação ou apa­ziguamento e, contudo, o leitor não se sente frustrado. Em “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”, “O cavalo que bebia cerve­ja”, “Luas-de-mel”, “Darandina”, “— Tarantão, meu patrão”, o conflito esperado deixa de se cumprir, o desfecho realiza-se no íntimo das personagens. Nesse corajoso e convincente em­prego do anticlímax deve-se ver prova decisiva de mestria na arte de tramar histórias.
  Outro motivo de beleza estrutural será o desenvolvimento paralelo de dois enredos que se completam e explicam, sendo que o secundário só se entrevê intervaladamente. Em “Luas-de­-mel”, a chegada de uma moça raptada e o casamento realizado às pressas sob a ameaça de um ataque armado reacendem a so­pitada ternura conjugal no velho fazendeiro que acolheu os fugi­tivos; em “Partida do audaz navegante”, a burlesca brincadeira inventada por uma criança desencadeia em duas outras uma inci­piente paixão juvenil.
  Armar um mistério no começo da narrativa para no fim satis­fazer, por meio de uma explicação minuciosa, as exigências de um leitor raciocinante, é processo que Guimarães Rosa só excepcio­nalmente adota. Prefere esconder a explicação no título ou entre dois parênteses, sugeri-la em termos velados, fornecê-la por par­tes, antecipá-la do modo mais insólito. Gosta ainda de insinuar apenas uma das explanações possíveis, admitindo a plausibilidade de outras. Em qualquer destes casos, o leitor é forçado a abando­nar a sua inércia, tornando-se colaborador.
  Se quiséssemos representar a ação de cada conto por uma linha, obteríamos riscos bem variados, desde a reta simples até a parábo­la e a espiral. Em relação à primeira composição do volume, por exemplo, ela daria uma curva ondulante de acordo com as oscila­ções do pensamento do Menino. Quando, pela primeira vez, a in­tuição da intensidade do existir o leva a um auge, dá-se uma queda brusca, pela revelação da morte individual; vislumbrada uma pos­sível compensação da vida da espécie, ei-lo em nova ascensão. Mas só por pouco tempo esse avatar lhe parece um remédio ao caos, pois outro mistério, revelado no ódio do bicho vivo ao morto, mergulha-o no abismo. Encadeados, os enigmas sucedem-se, e essa percepção aterra e consola sucessivamente.
  Nem só essa história se prolonga pelo plano metafísico. Quase to­das são pluridimensionais, carregadas de significado oculto. Todos os rios do mundo de Guimarães Rosa têm três margens.
  Os temas da arte são fragmentos de vida, esses aspectos superfi­ciais da realidade que os nossos sentidos percebem. Mas “em volta de nós, o que há, é a sombra mais fechada — coisas gerais”.
  O universo é, ao mesmo tempo, ordenado e caótico. Sua or­dem, inacessível à nossa percepção, pauta nossas existências, pre­estabelecidas, imutáveis. Precisados de segurança, ansiamos por alguma orientação e alguns pontos de apoio, e pelejamos “para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica”. Nesse esforço inventamos as três faces do tempo: ora, a nossa duração é indivisível e cada um dos instantes sucessivos que rotulamos de presente contém todo o passado e todo o futuro. Ignorando-o, agitamo-nos e procuramos reverter o tempo, livrar-nos do pas­sado ou desviar o futuro, trocar de destino, iludir-nos com a ideia de optar, quando apenas estamos trilhando a senda dos “futuros antanhos”. Fazendo planos, tomando decisões, organizando a nossa vida, não notamos que “algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...”. A unidade e o sentido dessa vida ficam-nos ocultos, pois o seu desenho só se completa pela morte, tam­bém preexistente.
  Visão artisticamente fecunda, mas de profunda tragicidade, essa concepção do mundo é suavizada pela importância que nela cabe ao amor, um amor carnal “que gera o espiritual e nele se transforma” (Benedito Nunes). Este é que nos traz os momentos de exaltação e sublimação em que damos conta exatamente do nosso recado e me­lhor nos igualamos ao rosto ideal que vivemos a buscar no espelho.

O choque estilístico
O leitor brasileiro que porventura entrar em contato com a arte de Guimarães Rosa através de Primeiras estórias inevitavelmente haverá de experimentar um choque, devido à agressiva novidade do estilo, a qual os leitores antigos do autor se vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor brasileiro, porque o estran­geiro, que a conhecer através de tradução, terá forçosamente sob os olhos um texto atenuado e filtrado, adaptado pelo tradutor aos padrões existentes da língua acolhedora.)
  Lembre-se que o autor fez sua aparição na literatura como escri­tor regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional indis­tintamente em todo o livro, restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária, conven­cional. A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos mais profundos do idioma, não se satisfaz em ex­plorar-lhe todo o tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí um estilo personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico se alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por suas raras produções ensaísticas.
  Fez, em suma, Guimarães Rosa, em relação à linguagem, o que todos os ficcionistas fazem da realidade, sua matéria-prima: desagregam-na e reconstituem-na a seu bel-prazer, tratando as suas parcelas como elementos de mosaico; com pedaços e traços de pessoas vivas constroem as suas personagens; fundindo cenas e acontecimentos registrados pela própria memória, deles tiram episódios e enredos. Com clarividência notável, Antonio Candido define o mundo de Guimarães Rosa como um universo autônomo “composto de realidades expressionais e humanas que se articu­lam com harmonia, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma”.
Entre os motivos dessa experimentação, do contínuo alargar do registro da língua, figura, sem dúvida, o propósito de amoldá-la para exprimir matizes e modalidades até então não observados da realidade que aguardam denominação para penetrarem na cons­ciência comum. “O poeta se distingue como um aparelho alta­mente discriminante da infinita multiplicidade de aspectos do ser” (Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais de uma vez declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar “toque e timbre novos às expressões amortecidas”. Como pertinentemente obser­va Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra coisa não faz senão apelar para a consciência etimológica do leitor, neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado (obliterado ou por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie daquele silêncio que desperta os moleiros quando cessa o rolar do moinho.”
  Nas considerações seguintes, tenta-se não a catalogação dos recursos estilísticos manejados no presente volume (e que daria outro volume), e sim, apenas, a indicação exemplificada das ten­dências a que correspondem. Não se ignora o risco deste trabalho: os espécimes montados em alfinete com fins de coleção, rígidos e murchos, podem parecer meras esquisitices e até monstruosi­dades, por mais que vicejem e resplandeçam no contexto do seu ambiente natural, vitalizando-o e animando-o.
 
segue a seguir..., no II
 
Paulo Rónai
Enviado por Germino da Terra em 25/01/2013
Reeditado em 01/04/2013
Código do texto: T4104641
Classificação de conteúdo: seguro
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