Machado: A Filosofia da Ponta do Nariz, o Humanitismo e o Brasil
Durante o século XIX, a Europa sofreu grandes mudanças
sócio - políticas. Os ideais de liberdade difundidos pela
Revolução Francesa de 1789, os quais foram “abafados”
pelas nações européias até as proximidades de 1850,
apareceram com grande força a partir de então,
manifestando-se através de lutas e da fermentação de
idéias políticas.
Quanto ao Brasil, a sociedade era formada de uma pequena
elite constituída por grandes fazendeiros e grandes
empresários, num segundo nível, um pouco abaixo do
primeiro. Havia ainda uma classe mais pobre, na qual se
enquadravam os trabalhadores das fazendas, os operários –
vários deles imigrantes- e uma nova classe, tanto ou mais
miserável, formada pelos escravos, que, ao ganhar a
liberdade, acabavam recendendo também o abandono.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, grande obra de Machado
de Assis, é uma leitura dessas “idéias novas”- os vários
ismos- Positivismo, Liberalismo, Evolucionismo... etc, até
então surgidos, dentro do contexto brasileiro, mostrando,
por meio cômico e crítico, a estranha combinação que
moldava a sociedade brasileira. Como ser atrasado e
moderno ao mesmo tempo? Como despropositadamente misturar
liberalismo e escravismo? É a partir dessas perguntas, que
Machado, por meio dos atos e pensamentos de sua personagem
Brás Cubas, denuncia o ridículo, as inadequações e as
parcas condições do Brasil de aderir aos novos princípios
políticos, “não há por ora no nosso ambiente a força
necessária à invenção de doutrinas novas”.
O prazer do cavaleiro ilustrado Brás cubas é rebaixar tudo
e todos para que ele se torne o maior. Tal personagem,
volúvel e caprichosa, se mostra moderna, renovada de
idéias, no entanto, é apenas ornato, nada é feito ou
assimilado de forma oportuna ao contexto brasileiro para
que algo realmente novo venha e aconteça. Como Nietzche
bem argumentaria: “Um político (uma elite escravista)
divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e
inimigos”.
Se em qualquer lugar que se encontre uma criatura viva,
se encontra desejo de poder, torna-se possível a
compreensão da filosofia dita Ponta do Nariz expressa no
capítulo XLIX. “Cada homem tem necessidade e poder de
contemplar o seu próprio nariz (...) tal contemplação,
cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz
somente, constitui o equilíbrio das sociedades”. Ao olhar
para a ponta do nariz, tal recolhimento que o sujeito faz
ao seu íntimo, lhe permite fazer escolhas e ir ao encontro
das circunstâncias que forem mais adequadas aos seus
interesses pessoais, ainda que injustamente. Devido a sua
característica (física) e social desvantajosa, a ausência
de ponta no nariz em um indivíduo é como se revelasse uma
impossibilidade de independência crítica diante da
opressão e dos interesses burgueses.
O que sempre estará em jogo é o papel da burguesia, seu
espírito de competição, seu egocentrismo e manipulação,
aquela que subestima tudo que considera inferior e resume
o mundo a sua própria existência. Igualdade sim, mas no
comércio, isto é, no ato de compra e venda, todas as
eventuais desigualdades sociais entre compradores e
vendedores (caso do Brasil) não tinham importância.
Tratando-se agora da filosofia do Humanitismo, criada por
outra personagem machadiana, Quincas Borba é uma sátira
devido ao surgimento de tantos “ismos”, destinada a
arruinar todos os demais sistemas. O Humanitismo concebia
as guerras, rebeliões, a inveja, toda e qualquer forma de
competição e luta, para que a vida não se tornasse uma
monótona rotina universal, onde, usando a terminologia de
Darwin, sobrevivem os mais aptos. Ora, em uma sociedade
como a do Brasil, com plena desigualdade (grandes
fazendeiros e empresários), e na base do triângulo, uma
maioria miserável (imigrantes, escravos e operários), uma
competição entre tais classes, a minoria, mesmo sendo
minoria, ganharia.
Enfim, os mecanismos que movimentam o sistema Humanista
são acelerados quando há maior amor a si próprio, o homem
não só está no centro do universo, como também
propriamente se considera um universo dentro de outro.
Assim, a crítica, entre outros fatores, está na
contradição de dizer que competir, lutar... Princípios que
nos remetem a pensar em algo dinâmico, não aconteciam de
maneira ativa em sociedades como a brasileira, onde a
burguesia liberal, com sua economia de mercado, se
assentava estaticamente sobre a escravidão. Machado, ao
colocar as variadas formas do pensamento moderno sujeitas
ao acaso das vontades de Brás Cubas, explorou e criticou
de modo cômico estas inusitadas inadequações brasileiras,
trazendo à tona as ironias, mostrando que as soluções
trazidas por tantas teorias científicas seriam no mínimo
ilusórias, na verdade, uma grande piada em solo
brasileiro.