POLIFONIA, IRONIA, REFERÊNCIAS E INFERÊNCIAS EM "O DICIONÁRIO", de Machado de Assis

Resumo: Neste estudo do conto “O dicionário”, de Machado de Assis, teço algumas considerações sobre recursos de linguagem usados pelo autor no processo de criação de um texto polifônico, marcado pela ironia; referências, inferências e alguns exemplos de diversos fenômenos de retomada de um segmento por outro num mesmo conjunto textual e que permitem a construção de um discurso coeso.

Palavras-chave: demagogo, tonel de marmelada, política, trono, sabedoria, súditos, sedução, maquiavelismo

A polifonia e a conseqüente ironia percebidas no conto “O dicionário, de Machado de Assis, podem ser pressentidas já no início do texto que começa com a locução era uma vez e que leva o leitor a ficar ciente de que o locutor-narrador “é o dono das palavras, mas não se responsabiliza pelo ponto de vista que o enunciado defende.” Maingueneau (2000:109). Era uma vez não determina o tempo preciso em que ocorreu o fato narrado no conto “O dicionário” e ainda traz à narrativa vozes e ideologias que lhe foram acrescidas ao longo do tempo. Era uma vez, como articulador textual, tem aí a função enunciativa de preparar o leitor para a leitura de uma fábula, de uma ficção:

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão.

A respeito do caráter polifônico do conto “O dicionário”, podemos identificá-lo por meio de algumas “pistas” que o narrador foi deixando na linguagem escolhida para a narrativa, notadamente através do uso de anáforas indiretas, associativas e dêixeis de memória, como define Apothelóz ( 2003 :70) ou mesmo catáforas, que são segmentos responsáveis pela continuidade referencial. Esses recursos de recuperação de informações ou mesmo de preparação para o que ainda vai ser dito representam um papel importante na construção da coerência nessa narrativa de tempo indefinido: recupera vozes que se evidenciaram no passado e ainda são validadas no momento da escrita, vozes essas, quiçá “ouvidas” ainda nos dias atuais.

Com relação à referência, gostaria de citar Koch (2003:79): “a referência passa a ser considerada como o resultado da operação que realizamos quando, para designar, representar ou sugerir algo, usamos um termo ou criamos uma situação discursiva referencial com essa finalidade: as entidades designadas passam a ser vistas como objetos-do-discurso.” No capítulo “A referenciação” do livro “Desvendando os segredos do texto”, Koch cita Apothelóz & Reichler-Béguelin (1995:265) que dizem: “a referência diz respeito sobretudo às operações efetuadas pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve”. Dentre essas “operações” que os sujeitos efetuam, estão incluídas as inferências, que segundo Coscarelli (1999: 90) podem ser definidas como um processo, através do, qual o leitor adiciona ao texto informações que não são explicitamente mencionadas nele, como podemos ver no segmento:

Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.

Para exemplificar uma inferência que o leitor é conduzido a fazer no momento da leitura, lembro o Bernardino _ tanoeiro, porque vivia de fabricar tonéis, “professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada”. Se ele pegou de um pau, como arma, para concitar ânimos e deitar abaixo o rei, provavelmente, esse pau seria o objeto então usado para mexer a marmelada, doce de marmelo, no tonel. Para chegar a essa proposição, supõem-se que o interlocutor-leitor possua os conhecimentos necessários para dar conta da interpretação referencial que recupere o significado desses segmentos. Porém, é necessário que o leitor conte com as informações do texto para a ele adicionar, quando necessário, informações de seu conhecimento prévio.

Escolhi na narrativa alguns segmentos, que foram sendo engendrados pelo autor, como numa teia, em geral, acrescentando “qualidades” ao conceito de um demagogo_ político inescrupuloso e hábil que se vale das paixões populares para fins menos lícitos_ que se tornou rei, embora sua luta tenha sido na “intenção” de ganhar o trono para a multidão, que nada mais era, que seu povo. Esses trechos selecionados também servem para exemplificar casos de recuperação de informação fornecida me um texto:

Retornando ao articulador era uma vez, gostaria de chamar a atenção para o uso do artigo indefinido “um” antes de tanoeiro como conseqüência de “era uma vez’, algo como “quem conta um conto aumenta um ponto”, para falar sobre demagogo, qualidade atribuída ao “indefinido” tanoeiro, como uma voz ideológica, implícita, que vem de tempo e local indeterminado. A ideologia desse tanoeiro demagogo é dada logo a seguir, numa frase a ele atribuída: “Este mundo é um imenso tonel de marmelada”. Podemos dizer que essa fease parodia um dito de caráter prático e popular, que faz parte da sabedoria do povo, portanto carrega diversas vozes. Tonel, produto de fabricação do tanoeiro é uma vasilha, um recipiente. O mundo tido como um enorme recipiente de marmelada, que aqui, podemos tratar de dêixis de memória Apothelóz (2003:70) ou anáfora associativa – Kóch (2003:109). Na verdade, para o, até então, Bernardino, o mundo não seria um recipiente cheio de doce de marmelo, pois logo após a vírgula segue o trecho: e em política. A palavra política associada a tonel de marmelada leva à marmelada, com o significado de “negócio desonesto”, um registro antigo na memória do povo, para fazer referências a atos de políticos.

“Viu que o trono só dava para uma pessoa”, é um outro exemplo. Trono não havia ainda surgido no texto, mas logo é associado a rei; se é rei, tem trono, isso leva a poder. É uma retomada a tudo o que o tanoeiro demagogo queria para si, desde o início do conto.

“Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súditos o ensejo de parecerem com ele que padecia de um calo”.

Nesse segmento, podemos verificar o recurso da antonímia usado para proporcionar o sentido irônico ao termo sabedoria: sabedoria é um referente novo introduzido no decorrer do texto; há um dito que sabedoria é um atributo de reis. Aqui, a associação acontece em sentido antonímico e irônico. É uma frase que recupera todos os atos de “sabedoria” até então praticados pelo tanoeiro que se fez rei; o uso do vocábulo súditos , evidencia a situação daqueles que estão ap redor do trono, submetidos à vontade do rei.

Um outro comentário que quero fazer é sobre navalha no segmento abaixo:

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças”.

Navalha é nome de objeto usado para raspar pêlos da barba ou da cabeça e faz pensar em “calvo”- de cabelos raspados por uma navalha. A ironia fica por conta do “ato” “fundado com o objetivo de se criar a unidade moral do Estado” – tanto no pensamento( no interior das cabeças) como na “aparência exterior da cabeças”, todos deveriam ser iguais. “Aparência exterior das cabeças”, calvo, pode também ser associado ao elemento navalha - aparência exterior, por resultado de um corte por navalha.

A respeito de dinastia, um referente introduzido na frase: “Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius”, podemos supor que, dentro do contexto de um regime de monarquia, o uso dessa palavra leva o leitor a concluir que, se o tanoeiro Bernardino se fez rei, sentiu necessidade de ter antecedentes nobres, portanto, encomendou uma genealogia e foi “entroncado a um tal ou qual general romano do século IV”, natural que pertencesse a uma dinastia.

Sedução é introduzido no texto, como que se fosse um ponto que muda a trajetória do demagogo tanoeiro, que passa a sofrer por amor. Ainda dentro da idéia que motivou esse estudo, escolhi um trecho construído para comentar argumentos que induzem à sedução. É constituído de diversos ditos populares, que foram solidificados com o passar dos tempos _ vozes diversas_ que ressoam, com a finalidade de convencer a noiva, Estrelada, escolhida pelo rei a aceitá-lo:

“... Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhes acenava com o principado ; que os tronos não andavam a rodo e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.”

O elemento sedução, nesse segmento acima, retoma os argumentos dados anteriormente, cujos teores poderiam seduzir uma jovem e que denotam “ a voz” da família, ou mesmo do povo. Porém, Estrelada não se seduzia pela idéia de tornar-se uma princesa, não se rendia à voz do povo, da família, recusava toda a riqueza que um rei poderia lhe oferecer.

No despertar da paixão, conforme o narrador, o rei ainda tentou usar de um atributo comum ao político: “Por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade.” Nesta frase, maquiavelismo recupera tudo o que foi dito a respeito da personalidade do Bernardão, rei, enquanto tanoeiro, Bernardino, e das ações até então por ele praticadas com relação à sua política desprovida de boa-fé.

Como o uso do maquiavelismo não funcionou adequadamente para seduzir Estrelada, que amava um poeta, o rei Bernardão chegou a ordenar que fossem recolhidos todos os dicionários do reino, para que os estudiosos da corte pudessem compor outro vocabulário, para que ele pudesse encontrar as palavras certas a dizer a Estrelada. Não sendo bem sucedido, teve suas atitudes enfraquecidas, situação que acompanha a linguagem da parte final do conto, que não está sendo estudada no presente texto.

Referências bibliográficas

APOTHELÓZ, Denis. Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual. In: CAVALCANTE, RODRIGUES e CIULLA orgs. Referenciação. S.Paulo: Contexto, 2003

ASSIS, Machado de. Contos: uma antologia, volume 2; seleção e notas de John Gledson. São Paulo: Cia. das Letras. 1998

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003

BACKTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª Ed. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997

COSCARELLI, Carla Viana. Leitura em ambiente multimídia e a produção de inferências. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, 1999(Tese de doutorado). Cap. 3 e 4

COSTA VAL, Maria da Graça. Texto, textualidade e textualização. Pedagogia Cidadã-Cadernos de Formação. Volumes de Língua e Literatura- Caderno 9. São Paulo: UNESP, 2004

MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1998

KOCK, Ingedore G.Villaça. Desvendando os segredos do texto. S.Paulo: Cortez, 2003

(Terezinha Pereira

Graduada em Letras- UFMG

Membro da Academia de Letras de Pará de Minas)

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 24/08/2005
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