CENÁRIO DA LEITURA em A DIVINA COMÉDIA de Dante Alighieri

CENÁRIO DA LEITURA em A DIVINA COMÉDIA, de Dante Alighieri

E comecei: “Poeta (1), de falar

àqueles dois (2) eu gostaria, certo,

que juntos vão, alígeros, no ar.”

“Espera”, respondeu-me, “que mais perto

cheguem de nós, e indagarás então

do grande amor que neles foi desperto.”

Logo que o vento em nossa direção

os impeliu, gritei: “Seres feridos,

falai conosco de vossa paixão!”

E como pombos que, de amor movidos,

asas tensas, se abatem sobre o ninho,

no ar dos desejos como conduzidos

- assim, deixando os mais pelo caminho,

foram ambos chegando, ao sopro arfante,

sensíveis ao meu grito de carinho:

“Ó ser afetuoso e insinuante,

que nos visita, a nós que derramamos

na terra o nosso sangue degradante;

Se amigo fosse o rei a que faltamos,

rogaríamos dele a tua paz,

pois te condóis do mal que suportamos. (...)

Estávamos um dia por lazer

de Lancelote a bela história lendo,

sós e tranqüilos, nada por temer.

Às vezes um para o outro o olhar erguendo,

nossa vista tremia, perturbada;

e a um ponto fomos, que nos foi vencendo.

Ao ler que, perto, a boca desejada

sorria,e foi beijada pelo amante,

este, de quem não fui mais apartada,

Os lábios me beijou, trêmulo, arfante.

Galeoto (3) achamos nós no livro e autor:

e nunca mais foi a leitura adiante.”

Enquanto aquela sombra o triste amor

lembrava, a outra gemia em desconforto;

e quase à morte eu fui, de tanta dor.

E caí, como cai um corpo morto.

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1. O Poeta é Virgílio, a quem Dante dá este tratamento. O local é o Inferno, mais especificamente, o círculo no qual se encontram os luxuriosos, os pecadores.

2 . “àqueles dois” : trata-se de Francisca de Rímini e de Paulo Malatesta; o irmão de Paulo, Gianciotto Malatesta, marido de Francisca, ao descobri-los cunhados e amantes, mata-os.

. INTERTEXTUALIDADE: o ato de Paulo, matando o irmão, remete a Caim e Abel. Ou (3): Galeoto = era o autor do livro que Francisca e Paulo liam; trata-se do amigo que ensejou Lancelote a beijar Ginevra, a bela esposa do rei Arthur. De acordo com as lições do estudioso francês Gérard Genette, a INTERTEXTUALIDADE supõe a presença de um texto no outro por citação ou alusão.

. O ato da leitura como um ato amoroso: “àqueles dois” = “e indagarás então do grande amor que neles foi desperto.”

. Leitura e corpos = o ato da leitura a dois por vias da erotização crescente: “Ao ler que, perto, a boca desejada...”

. A erotização do texto: Os lábios me beijou, trêmulo, arfante...”

. A leitura como ato de traição, traição incestuosa: o incesto entre cunhados. Daí conclui-se que a leitura é um ato perigoso. Pode levar à deriva, à uma diabólica paixão.

. Por fim, no conjunto, os versos de Dante Alighieri nos apresenta um CENÁRIO DA LEITURA.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução Cristiano Martins. 2 v. 5 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1989.

GENETTE, Gérard. Introdução ao Arquitexto. Tradução Fernando C. Martins. 3 ed. Lisboa: Vega, 1995.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é outono de 2007.