POR QUE SARAMAGO FALA TANTO EM DEUS?

As imagens da Índia, de Angola de Israel e de Nova York relatadas no texto O Fator Deus, como diz o próprio Saramago ”atiram-nos com o horror à cara”. São retratos do mal e desafios a qualquer filosofia que negue sua existência. E esse mal como tal escancarado faz pensar que não foi e não poderá ser jamais respondido o tão conhecido paradoxo de Epicuro; assim citado por David Hume: “As velhas questões de Epicuro continuam ainda sem resposta. Está ela [a divindade] inclinada a impedir o mal, mas não é capaz? Então é impotente. É ela capaz, mas não está inclinada? Então é malévola. É ela simultaneamente capaz e está inclinada? De onde vem então o mal?” (HUME, 2005, p. 102).

Saramago é constantemente acusado de ter uma fixação excessiva pelo tema religião “Não raras vezes, os mais ácidos estudiosos da literatura de Saramago o acusam de ser obsedado pelas questões religiosas”. (SANT’ANNA, 2009, p. 16). Muitos chegam a argumentar que para o ateu assumido que foi Saramago, essa fixação não faz sentido, afinal, por que um ateu teria a religião como tema tão constante quando o que se espera é que, por não acreditar, o ateu simplesmente não a aborde exceto com citações leves quando e se o personagem ou enredo assim o exigir? Mas Saramago, ao contrário do que se esperaria de um ateu, coloca a religião e o próprio Deus como ponto central de várias obras, como acontece em Memorial do Convento. Por quê? se perguntam os leitores e críticos; por que um ateu teria tanto interesse em falar de Deus? Por que teria tanto conhecimento da história do catolicismo e da bíblia? e por que usaria isso como base ou como destaque para suas obras? “Uma obviedade: José Saramago é ateu. [...] O que nos causa espécie [...] é a obsessão com que o tema religioso é constantemente abordado na obra do escritor português” (SANT’ANNA, 2009, p. 41). Não seria esse um indício de que na verdade Saramago acreditava em Deus? Não, não seria. E o texto O Fator Deus é o que talvez melhor explique e melhor contradiga esse estranhamento que chega a sugerir que Saramago seria um teísta com “raiva” de deus e não um ateu “de verdade”.

Sabemos que citações da Bíblia são uma constante na obra de Saramago, “o prototexto bíblico é, geralmente, descontextualizado; desloca-se de seu contexto próximo para agregar-se ao contexto da narrativa” (SANT’ANNA, 2009, p. 66), por conta disso talvez seja produtivo nos determos um pouco nesse livro que o Nobel português mostra conhecer tão bem: A Bíblia é o livro que os adeptos de todas as religiões cristãs costumam usar para provar a existência de Deus. Para os ateus, essa prova não parece muito convincente. “A Bíblia contradiz a moral, contradiz a razão, contradiz a si mesma inúmeras vezes; mas ela é a palavra de Deus, a eterna verdade e “a verdade não pode se contradizer”. Como então o crente na revelação sai desta contradição entre a ideia da revelação como uma verdade divina, harmônica e a suposta revelação real? Somente através de auto-tapeações, somente através dos argumentos mais tolos e falsos, somente através dos piores e mais mentirosos sofismas” (FEUERBACH, 1988, p. 253-254)

As duas outras grandes religiões – judaísmo e islamismo – também têm seus livros sagrados, cada uma das três religiões dá a seu livro o mesmo valor de verdade e despreza muitas afirmações contidas nos outros. Cada um desses três deuses – que é um único Deus mas que não é visto dessa forma – é descrito como bom. Essa divisão, por todos os horrores que fomentou, é um dos maiores males da história da humanidade e não faz jus, portanto, ao que logicamente se esperaria de um Deus bom, “apenas está por saber quem há de perdoar a Deus ou castigá-lo” (MC: 177).

A aversão à intolerância religiosa é marca tanto no Saramago escritor quanto no Saramago homem, “A literatura de José Saramago é uma declaração contundente contra todos os tipos de intolerância” (SANT’ANNA, 2009, p. 167), daí que é comum ver críticos como que “tirando o peso do ateísmo” das costas do grande narrador português: “o ateísmo de José Saramago, mais que uma declaração acerca da inexistência de Deus, revela seu inconformismo diante da sociedade injusta que insiste em negar, pelos seus atos, a existência de seu divino criador” (SANT’ANNA, 2009, p. 53). Essa tentativa não faz muito sentido uma vez que indignar-se com a intolerância não torna ninguém religioso. Ou ateu.

O tempo em que se passa o enredo de Memorial do Convento é fator aparentemente escolhido com muita propriedade para o propósito crítico de Saramago, “Em Memorial do Convento, Saramago retrata a presença agressiva e inibidora do Santo Ofício em Portugal, em plena organização e atuação” (SANT’ANNA, 2009, p. 199). Essa era a época em que o Santo Ofício, em nome de Deus, vigiava os movimentos e pensamentos de todos e explorava o pobre como argamassa na construção de sua grandeza, um tempo em que ateus como Saramago se calavam, “porventura um deles pensando secretamente que o mundo está louco desde que nasceu” (MC: 28), ou queimavam nas fogueiras dos espetaculares autos de fé. “ouvido e cheiro da solene cerimônia, tão levantadeira das almas, ato tão de fé, a procissão compassada, a descansada leitura das sentenças, as descaídas figuras dos condenados, as lastimosas vozes, o cheiro da carne estalando quando lhe chegam as labaredas e vai pingando para as brasas a pouca gordura que sobejou dos cárceres” (MC: 47)

O tempo, o enredo, o clero mostrado no Memorial confirmam que embora as igrejas costumem se eximir de qualquer acusação de intolerância atribuindo os desmandos a membros isolados que, segundo dizem, não seriam “verdadeiros fiéis” o fato é que a história das religiões é escrita com muito sangue, “As Cruzadas, a Inquisição, a imposição da conversão forçada dos povos [...]? não é uma simplificação filosófica [...] o fato de atribuí-los simplesmente a uns homens que os cometeram em seu nome, ao passo que ela ficaria, continuaria sendo a Igreja infalível, continuaria sendo a Igreja pura?” (LERNER, G. (em) Deus existe?, 2009, p. 48). O que Saramago vê é que Deus estaria coberto desse sangue, caso existisse, “Domingo é o dia do Senhor, verdade trivial, porque dele são todos os dias, e a nós nos vêm gastando os dias se em nome do mesmo Senhor não nos gastaram mais depressa as labaredas por duplicada violência, que é a de me queimarem quando por minha razão e vontade recusei ao dito Senhor ossos e carne, e o espírito que me sustenta o corpo, filho de mim e de mim, cópula direta de mim comigo mesmo, infuso do mundo sobre o rosto escondido, igual ao mostrado e por isso ignorado. No entanto, é preciso morrer” (MC: p. 52).

Saramago não exime de culpa o povo, o homem comum, “nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores, se disto, se das touradas, mesmo quando só estas se usarem” (MC: p. 480). Mas, através de Blimunda e de Baltasar, talvez também nos aponte exceções, afinal, esses personagens estão presentes e não fazem nenhum gesto de protesto, mas também não participam da “alegria pelo espetáculo oferecido”. Quantas pessoas estavam ali como estava Blimunda, como estava Baltasar? Sem participar da “alegria” do espetáculo, mas também sem coragem de manifestar qualquer desagrado por saber que poderiam, em troca, ser protagonistas do próximo show?

Talvez com respeito aos dois principais espaços em que se passa a história contada no Memorial se possa dizer que não são escolhas aleatórias. Primeiro temos Lisboa como o centro onde tudo começa, onde o poder clerical e o poder secular se aliam como ao longo da história tantas vezes fizeram – e em tantas outras capitais –, ambos usando de subterfúgios, hipocrisias e meias verdades. E essa aliança resultará nos anos de trabalho em Mafra, o lugar onde o fator Deus, o homem comum, a morte, a dor e o medo se unem e se misturam, tanto para ficarem entranhadas nas paredes como parte da argamassa como também para figurar pelos séculos afora como obra de arte. Essa mistura da terra, dos homens e da lama de Mafra é acrescida da fantasia, da crítica e da arte narrativa de Saramago para criar o imponente símbolo de um poder opressor e vigilante que nos dias de hoje e para a maioria de nós se converteu em atração turística.

Os personagens de Saramago “falam” com os leitores. Blimunda nos diz que nem todas as “bruxas” foram queimadas, que as “bruxas” não eram más e que, se a religião pode inventar histórias de pessoas comuns com poderes fantásticos um romancista também pode. O padre Bartolomeu de Gusmão nos diz que a sede e o desejo de conhecimento pode levar uma pessoa à loucura se a insanidade dos “donos da verdade” impedirem sua livre expansão, “bem sabem que, querendo o Santo Ofício, são más todas as razões boas, e boas todas as razões más” (MC: p. 184/185). E Baltasar nos diz que o homem comum, iletrado e simples pode compreender mais e saber mais sobre o que é bom e justo do que papas e reis.

Uma marca do estilo de Saramago é sua ironia finíssima, que por vezes beira o sarcasmo e que “alfineta” de forma bastante dolorosa qualquer teísta mais convicto, “que o Santo Ofício, podendo, lança as redes ao mundo e trá-las cheias, assim peculiarmente praticando a boa ação de Cristo quando a Pedro disse que o queria pescador de homens” (MC: p. 93), outra marca saramaguiana é o uso que o escritor faz de seu conhecimento da história da religião para mostrar o quanto as pessoas se enganam quanto às “verdades” que pregam, “também em lugar certo vêm S. Domingos e Santo Inácio, ambos ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isso ofender o demônio, se não seria justo, afinal, dizer que só um santo seria capaz de inventar a inquisição e outro santo a modelação das almas” (MC: p. 310).

Sobre São Domingos ser criador da Inquisição, isso se confirma no blog heróis medievais que, inclusive, defende a inquisição como prática necessária e benéfica, como se pode ver por esse trecho que mostra bem o quanto Saramago não se enganava sobre a necessidade de combater o Fator Deus, que é essa crença insana que leva ao radicalismo e à intolerância, mesmo nos dias atuais e nos países do chamado “mundo civilizado”:

“Além das conjunturas históricas que deram origem à Inquisição, devemos pôr em relevo que essa instituição existe de modo natural e necessário, embora com nomes diferentes, em toda sociedade que deseja sua própria conservação. Como acentua Rohrbacher, toda sociedade, a menos que espose um liberalismo suicida, vigia e persegue aqueles que conspiram ou trabalham pela subversão de sua estrutura. As próprias constituições dos Estados modernos cominam penas para quem tentar derrubar a forma de governo existente, em geral a republicana.

Ora, a constituição da humanidade cristã se baseia nos princípios de que é guardiã e alma a Igreja Católica. Os povos vitalmente cristãos, impérios, reinos, repúblicas, são membros vivos dessa Igreja e vivem de sua vida. Lei fundamental da sociedade cristã — disso a que se dá o nome de Cristandade — tanto para a sua existência quanto para a sua conservação e aperfeiçoamento, é a lei católica. E se não há verdadeira civilização sem a verdadeira Religião, como diz Pio X, é claro que, defendendo a verdadeira Religião, os cristãos estão defendendo a própria causa da verdadeira civilização.

Estas verdades estavam arraigadas no espírito da sociedade medieval, sincera e coerentemente católica. Não passam, portanto, de pura declamação as acusações violentas que são freqüentemente dirigidas à Igreja a este propósito. Provam apenas a ignorância e a paixão de seus autores, que transformam em mártires da liberdade de pensamento os hereges que, por seu fanatismo, desencadearam as piores desordens na sociedade de seu tempo”.

O ateu afirma, e Saramago bem sugere nos seus livros, que Deus, por ser onisciente, saberia o que é o mal; por ser bom, não criaria – a partir do nada – nem o mal nem outra coisa qualquer que pudesse gerar ou causar a existência do mal; por ser onipotente, poderia criar um mundo sem o mal ou a possibilidade do mal – ainda que conservando o tão valorizado livre-arbítrio, que os céticos não conseguem ver mas que os teístas afirmam e reafirmam com tanta ênfase. “Saramago denuncia a incapacidade que o homem demonstra quando precisa lidar com as diferenças, e aponta as contradições da fé cristã, cujo dogmatismo separa os seres humanos, ao invés de uni-los, e animaliza-os a ponto de se trucidarem uns aos outros em nome de Deus. Para Saramago, o cristianismo com suas graves contradições históricas é, ele mesmo, a prova irrefutável da inexistência de Deus: ‘Permitiria Deus, se existisse, que em seu nome se criassem essas confusões e esses conflitos, esses ódios absurdos, estas vinganças dementes, estes rios de sangue derramado?’” (SANT’ANNA, 2009, p. 300). Esse Deus-Todo-Bondade, se existisse, teria usado seu infinito poder para criar um mundo em que não houvesse possibilidade da existência do mal. Ou não teria criado nada.

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 10/11/2020
Reeditado em 30/01/2021
Código do texto: T7108710
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