A DIGNIDADE DA DOR - Literatura africana - Poesia

RESUMO

O que me tocou mais fundo no estudo da poesia africana foi a dor. Vi, através da lupa do texto poético, uma dor que minha pele branca mal consegue imaginar. Conhecer a terrível história, ter lido Navio Negreiro, ver e ouvir mil exemplos de preconceito claro ou velado é suficiente para se tomar partido, mas não para saber o fundo dessa dor. “Exprimir o real é árduo” e percebê-lo na leitura de quem o viveu é avassalador. Os poemas que doem me jogaram contra a parede, expuseram minha impotência, minha incapacidade de dizer. Sofri uma dor que de nada vale se não for gritada. Esse trabalho é meu grito.

 

A DIGNIDADE DA DOR

Quando estudante li sobre a conquista da África, da Ásia e das Américas, nos textos escolares. Lá, essas conquistas vinham caracterizadas como uma série de acontecimentos que abrem na história da Europa um novo período chamado Renascimento, ou Grandes Navegações. É o fim da Idade das Trevas, do domínio totalitarista da Igreja que queimava pessoas em praça pública. É o homem descobrindo que é capaz de feitos que essa Igreja afirmava impossíveis, é a superação do medo do desconhecido, o heroísmo da ousadia de ir “além da Taprobana”. É o Antropocentrismo, o homem como centro do universo. Eu ficava tocada com tal audácia e heroísmo.

No princípio o outro lado da história não me foi dado nem mesmo à suspeita, não tive informações suficientes para ver e sentir que para outras pessoas (porque sim, eram pessoas!), para as pessoas dos povos submetidos e exterminados, esse período significa o fim da história. O fim da história de seu povo, o fim da história de seus antepassados; o fim da história da sua terra, da sua casa, de si mesmo como ser humano.

Eu e os demais alunos, com nossos livros escolares abertos sobre as carteiras, não conseguimos ter ideia de que estávamos lendo uma história cujo sentido consiste no triunfo do poderoso saqueador, na espoliação da terra e no enterro real e simbólico das suas vítimas. Hoje me pergunto qual dos dois enterros é o simbólico e qual é o real. Aquele que coloca sob a terra escavada o cadáver de uma pessoa torturada e assassinada como animal de carga ou aquele que coloca sob uma espessa camada de indiferença, desprezo e invisibilidade toda uma civilização?

“O Branco matou meu pai

Pois meu pai era ativo

O Branco violou minha mãe

Pois minha mãe era bela

O Branco dobrou meu irmão sob o

sol das estradas

Pois meu irmão era forte

Depois o Branco virou-se pra mim

Suas mãos vermelhas de sangue

cuspiu Netro seu desdém no meu

rosto

Doeu em mim descobrir a dor do negro, descobrir que “o negro sofre em seu corpo diferentemente do Branco” porque ele sofre por ser. Sua dor tem a dignidade profundamente melancólica do injustiçado impotente. O profundo da sua dor está na aparência da qual ele não tem como fugir, no visível que não se esconde, que não é crime mas pelo qual o negro responde todos os dias como se por crime fosse. A dor que o negro leva no corpo é tão digna que me põe humilde e me envergonha porque sou parte dessa dor e não me sei capaz de tanta dignidade.

“Aqueles que não inventaram nem

a pólvora nem a bússola

Aqueles que nunca souberam domi-

nar o vapor nem a eletricidade

Aqueles que não exploraram nem

os mares nem o céu

Mas conheceram em seus mínimos re-

conditos o país do sofrimento

Aqueles cujas únicas viagens foram

de desarraigamento

Aqueles que se humilharam

Aqueles que foram domesticados e

cristianizados

Aqueles a quem se inoculou a bas-

tardia...”

Graças à maldade pura do branco, os negros se tornaram aqueles que “conheceram em seus mínimos recônditos o país do sofrimento”. A ganância, a cegueira e a hipocrisia do branco disseram ao negro que “O negro é um animal, o negro é ruim, o negro é malvado, o negro é feio”. O branco negou ao negro o direito de ser humano e o espancou e o matou por esse crime de ser negro. A pele do negro brilhou de suor e sangue e a voz do negro foi calada porque não lhe era permitido ser gente.

O sol golpeia as costas do negro

e rios de suor ficam correndo.

Ardor!

O machim golpeia o pau

e rios de seiva escorrendo.

Ardor!

Os olhos do branco

como chicotes

ferem o mato que está gritando...

(Tenreiro)

E com espanto e susto o negro se descobre coisa “me descubro objeto no meio de outros objetos”. O negro descobre que existem homens superiores e homens inferiores, e que ele, negro, não é nenhum dos dois: “Sentimento de inferioridade? Não, sentimento de inexistência”. Tudo que o negro aprende - pelo chicote, pelo chumbo, pelo ferro em brasa e pela humilhação da palavra cuspida - o branco é quem ensina.

GRITO NEGRO

Craveirinha

Eu sou carvão!

E tu arrancas-me brutalmente do chão

e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!

E tu acendes-me, patrão,

para te servir eternamente como força motriz

mas eternamente não, patrão.

Eu sou carvão

e tenho que arder sim;

queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão;

tenho que arder na exploração

arder até às cinzas da maldição

arder vivo como alcatrão, meu irmão,

até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão.

Tenho que arder

Queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!

Eu sou o teu carvão, patrão.

E o negro sente dor! O “crime” de ser negro dói na pele; foi condenado a tudo perder, menos a dor. Sua humanidade lhe foi roubada, sua história foi apagada, seus antepassados viraram cinzas e sua casa desmoronou. O negro dói porque foi jogado para fora do direito de ser parte de uma família, foi roubado do acalanto e das histórias de seus avós, do colo de sua mãe, da cumplicidade de seus irmãos. O branco que o tornou coisa não lhe deu chance de sequer falar. Apenas a dor geme, mais ainda por dentro do que por fora. O negro sem voz ficou sem futuro, sem sonho, sem esperança, sem pátria. E cada perda é uma dor.

O CERCADO

Ana Paula Tavares

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe

feito pelas tuas mãos

e fios do teu cabelo

cortado na lua cheia

guardado do cacimbo

no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe

a das três pernas

e asa partida

que me deste antes das chuvas grandes

no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe

quando anunciava a manhã junto à cascata

e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe

se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera

p'ra lá do cercado

Em lugar de sua língua roubada, ao negro foi dada, imposta, outra língua que era a do branco e que não tinha palavras suficientes para dizer a dor. O negro tomou essa língua, tornou-a sua e usou-a para gritar e para levantar alto sua dignidade. Em lugar de seus deuses roubados ao negro foi dado, imposto, um deus que era do branco e que não sabia sua dor. O negro tomou esse deus e esses santos para si, fez de ébano suas imagens e deu a eles os nomes de seus deuses para que esses deuses, sincretizados, levantem alto sua dignidade.

VIGILÂNCIA

Multimati Barnabé João

Este missionário está muito claro por dentro

Anda muito bem como um homem na mata

E tem um sorriso de quem está tudo perfeitamente

E chegou agora de estar no serviço de Jesus da Nazaré

Que é um sócio católico romano e compadre.

Está tudo perfeitamente claro fora deste missionário

Com sol ou com chuva ou com noite

Está tudo perfeitamente claro

Claro!

Só o que está um pouco na confusão

E este verniz raspado com o meu nome completo

Nesta carteira escolar da 4ª. classe adiantada

E eu aqui incomodado com a arma entalada na porta

Não me lembrar de ter estado dentro da pessoa

Que escreveu o meu nome completo no verniz

Nem me lembrar de ter estado fora.

Há com certeza um pormenor que me subtraiu

E que explica haver tantos dentes neste missionário.

Vou sair no cuidado sem virar costas

Acho muito escuro nesta clareza

São muitos dentes todos na mesma pessoa

O branco demorou muito para começar a ouvir o que o negro tentava dizer na sua língua feita de dor e perda - e muitos ainda não ouvem nada - mas aos poucos alguma coisa chegou à sua razão de branco e então “Os cientistas, após muitas reticências, admitiram que o negro era um ser humano”. Essa constatação científica não foi, é claro, o fim da dor porque o branco, quando lhe é conveniente e lucrativo, não costuma se importar muito com o que diz a ciência. Mas foi um progresso porque alguns

LÁGRIMA DE PRETA

Antônio Gedeão

Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para analisar.

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

Quando domina a língua que foi obrigado a aprender e finalmente pode falar, o negro grita poesia e seus poemas doem em mim porque ouço uma pessoa gritando “eu sou gente” quando sei que nunca deveria existir um mundo onde uma pessoa precisasse dizer “eu sou gente”. Ouvir o outro dizer o óbvio com essa dor tão digna e pungente desestrutura tudo que pensei ter aprendido e mostra a mim mesma que minha infância estava lendo a história errada e que meus heróis eram vilões.

A dignidade do negro mostra que “A questão não é ser negro, mas sê-lo diante do Branco”. Eu vejo isso porque vejo o preconceito hoje ainda e aqui a meu lado. E eu tomo partido, mas não posso me aliar completamente porque não posso mudar minha cor. Eu sou o vilão e isso me dói no branco da pele. Queria dizer mais, queria participar mais, queria lutar com mais força ao lado dessa dignidade, mas não posso sentir a dor do negro. Só o que consigo é imaginar, e sei que a imaginação é muito restrita e pobre e que a dor sentida é real. A dor imaginada não consegue ser real e não consegue alcançar a profundidade que só o que é verdadeiro tem. E, quando leio os poemas feitos de dor, a dor que não sou capaz de sentir me toca e me comove porque se transforma em beleza.

KARINGANA UA KARINGANA

José Craveirinha

Este jeito

de contar as nossas coisas

à maneira simples das profecias

― Karingana ua Karingana ―

é que faz o poeta sentir-se gente.

E nem

de outra forma se inventa

o que é propriedade dos poetas

nem em plena vida se transforma

a visão do que parece impossível

em sonho do que vai ser.

― Karingana!

 

EPÍLOGO

E para terminar esse meu trabalho, grito tímido de uma dor incompleta, desejando que seja uma homenagem a todos os que sofreram e ainda sofrem pelo crime de serem vítimas de quem olha a cor da pele como se esta fosse designativo de humanidade, escolho uma música que conheço há décadas e que nunca consegui ouvir sem chorar:

PAI JOÃO

Ruy Maurity

Pai João na capoeira entoava cantos dos tempos de Zambi

Foi escravo na fazenda, mão e pé dos senhores da Casa Grande

Negro é bicho não é homem, quando o couro come, fica sossegado

Lua cheia, noite clara, nego na senzala vira cão danado

Pai João sentado em toco, cachimbo, marafo, velho curandeiro

Pros soldados nos terreiros conheceu o mais cruel dos cativeiros

Conta do amor de Catarina pelo valente negro Mateus

Sabe o quanto a dor magoa, mesmo assim perdoa todos filhos seus

Pai João então se cala, limpa uma lágrima, estende a mão

Bate asas como um pássaro, desaparece na escuridão.

Pai João então se cala, limpa uma lágrima, estende a mão

Bate asas como um pássaro, desaparece na escuridão.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano I. Lisboa: Plátano Editora, 1989

Vários poemas de: http://eumulherpreta.blogspot.com.br/ - 25/03/2013

Vários poemas de: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/poesia_africana.html - 25 a 28/03/2013

FANON, Franz. “A experiência vivida do negro”. Pele negra, máscaras brancas. RJ, Fator, 1983.

Ruy Maurity – Coleção Sucessos – Som Livre - 1991

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 11/11/2020
Reeditado em 30/01/2021
Código do texto: T7109516
Classificação de conteúdo: seguro
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