16 - O Romance no século XX e a Técnica Narrativa

Hoje interrompo a sequência das matérias gramaticais, porque tenho constatado algumas dificuldades na interpretação das obras literárias que vamos lendo e comentando na “comunidade de leitores” que frequento.

Esta comunidade de leitores é integrada por leitores com diferentes tipos de formação, um leque amplo que abrange leitores com a escolaridade mínima até leitores com diferentes formações universitárias.

Esta diversidade na formação dos Leitores proporciona diálogos muito ricos, mas constato que há, por vezes, dificuldades em interpretar uma obra literária.

Há um ponto fundamental a que é preciso atender: uma obra literária é FICÇÃO.

Há ainda os romances de “não-ficção”, mas deixaremos esse tema para mais tarde! Do ponto de vista pedagógico, não é conveniente misturar assuntos.

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Entender um “grande romance” não se reduz à interpretação da ACÇÃO das diferentes PERSONAGENS: o que elas FAZEM, e o como se COMPORTAM; como eram no INÍCIO da história e COMO são no FINAL ou seja, como terminam.

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De facto, LER um romance não é, apenas e simplesmente, ler uma história.

Esta consideração aplica-se sobretudo quando se trata daqueles grandes autores que transpõem as fronteiras das suas Línguas maternas, autores que interessam ou apaixonam públicos de diferentes origens e diferentes épocas, autores que transpõem fronteiras de Tempo e de Espaço! Ao “contarem uma história” os grandes autores estão a COMUNICAR-nos a sua visão sobre a complexidade de uma época – a complexidade da vida social e da natureza humana.

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Costuma-se dizer que desde a Antiguidade, os “contadores de histórias” têm funcionado como os grandes observadores e analistas da psique humana. Diz-se mesmo que foram os primeiros “psicólogos”. Daí o grande interesse de que se revestem as histórias contadas na Literatura Tradicional, também designada (com algum sentido pejorativo) como Literatura Popular. Este tipo de Literatura resulta, de facto, da observação da natureza humana, e vem desde os primórdios da Humanidade. Já focámos este tema nos capítulos 4 (até 4.3), e referimos a colectânea de contos do Panchatantra (que chegaram até nós através das rotas comerciais (VER o capítulo 7) e guerras da Antiguidade, por intermédio dos antigos Gregos) além de contos das tradições indiana ou persa, ou céltica ou árabe.

Mas em Literatura, essa acuidade de observação não chega para fazer uma obra literária, apesar de autores como o próprio Shakespeare aí terem colhido alguns temas como, por exemplo, “Romeu e Julieta”, ou “O Rei Lear”.

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Então, como deveremos nós, leitores, observar uma obra literária? Por outras palavras:

De que “ferramentas” precisamos nós, os leitores, para apreciarmos uma “história”?

Podemos formular esta questão ainda doutro modo:

De que conhecimentos teóricos de Teoria da Literatura, devemos dispor para apreciarmos devidamente um “grande romance”?

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Para respondermos a esta questão, será útil observarmos comparativamente a TÉCNICA NARRATIVA que aprendemos na escola, e a TÉCNICA NARRATIVA praticada pelos autores actuais.

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Primeiro que tudo, para termos LITERATURA, é preciso termos presente que estamos perante uma FICÇÃO. E que para termos uma NARRATIVA, é óbvio que precisamos de um NARRADOR.

Ora esta figura do NARRADOR é uma figura IMAGINÁRIA, que vem sendo configurada de diferentes modos, na Literatura Europeia, desde o século XIX até ao nosso presente. Mesmo quando o Narrador se nos apresenta na 1ª pessoa (do singular), mesmo quando vemos um Narrador que nos diz que presenciou tudo, essa figura é IMAGINÁRIA:

é FICÇÃO.

Mesmo quando um Narrador como o narrador de “Os Cus de Judas” (de António Lobo Antunes) nos conta como viveu todos os horrores da Guerra Colonial em que a Ditadura de Salazar envolveu Portugal contra os movimentos de libertação das Colónias, e começa assim:

“Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico”... – este NARRADOR é IMAGINÁRIO!

Mesmo quando o escritor se serve da sua experiência pessoal para enriquecer a sua narrativa, esse NARRADOR é IMAGINÁRIO, pois o Autor é livre de incorporar na sua Narrativa todo o somatório de observações que ele considerar úteis para o enriquecimento da Personagem.

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Ou seja:

Mesmo quando o NARRADOR diz, logo no início do 1º capítulo de “O Vento”, de Claude Simon (1913-2005):

“é que aprendi qualquer coisa nos vinte anos que passei neste escritório”... isso não quer dizer que o NARRADOR seja o AUTOR! Claude Simon, o autor de “O Vento”, era vinicultor!

O autor de “Os Cus de Judas” tinha sido médico psiquiatra. Numa entrevista ao jornal espanhol El País, em 2015, ele diz: “Não me interessa escrever romances de guerra por respeito aos mortos. Interessam-me as pessoas em circunstâncias extremas.”

Então, os escritores escolhem a TÉCNICA NARRATIVA que mais convém ao efeito e atracção que desejam produzir sobre os Leitores.

Porque, não o esqueçamos, na Literatura como na Arte em geral, há esta SEDUÇÃO que a obra exerce sobre o seu Leitor / Observador!

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No século XIX, a partir da Revolução Industrial, impõe-se uma corrente literária que designamos de REALISMO. Segundo esta corrente, a REALIDADE deve ser retratada com OBJECTIVIDADE.

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Observemos autores como Stendhal (1783-1842), da Literatura Francesa, ou Eça de Queirós (1845-1900), da Literatura Portuguesa, que são autores que representam o REALISMO – a corrente literária donde deriva toda a Literatura subsequente.

Em “Le Rouge et le Noir” (O Vermelho e o Negro), que tem como subtítulo “Crónica do século XIX” ou ainda “Crónica de 1830”, há um Narrador, INVISÍVEL e ANÓNIMO que nos conta a vida do protagonista principal, Julien Sorel, desde o seu início até à sua morte:

As personagens são-nos apresentadas primeiro sumariamente, numa INTRODUÇÃO. Mas depois as suas personalidades vão sendo analisadas cada vez em maior detalhe à medida que a obra vai avançando. O mesmo se passa, por exemplo, em os MAIAS, de Eça de Queirós: a vida do PROTAGONISTA, Carlos da Maia, é-nos contada desde os seus antecedentes (o Avô e o Pai) até ao final do seu infeliz romance com Maria Eduarda.

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Ora, como consequências desse desenvolvimento técnico iniciado em meados do século XIX, temos, na transição do século XIX para o século XX, um repensar das manifestações artísticas, e grandes modificações foram surgindo tanto nas Artes Visuais, por exemplo a Pintura, como na Música, como na Literatura:

Assim, na transição entre o século XIX e o século XX, surgiu o MODERNISMO, de que em Portugal é grande expoente Fernando Pessoa.

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Segue-se o tremendo momento da Primeira Grande Guerra, a guerra de 1914-18:

Já no fim da guerra, jovens poetas refugiados na Suíça, juntam-se em torno de TRISTAN TZARA (1896-1963), e nasce a corrente que eles denominaram de DADA, ou DADAISMO:

Os jovens Poetas deste grupo diziam que após tão grande destruição, a Linguagem passava a ser impotente para exprimir a trágica Realidade, ou o absurdo da Vida... E passaram a criar textos bastantes aleatórios, com uma Linguagem desintegrada.

Não podemos interpretá-los como criadores de uma Linguagem “alienada”; mas antes como um grito de revolta para com a profunda destruição a que tinham assistido...

Isso quanto à Poesia.

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Quanto ao Romance, VIRGINIA WOOLF (1882-1941) publica, em 1925, o famoso romance “Mrs. Dalloway” (que até foi brilhantemente levado ao cinema por Marleen Gorris em 1997 e interpretado por Vanessa Redgrave):

Este romance tem a particularidade de se passar apenas durante um dia da vida da sua Protagonista! Mas durante esse dia em que ela prepara uma recepção em sua casa, ela vai RECORDANDO, no seu MONÓLOGO INTERIOR, os diferentes episódios da sua vida. Esses diferentes episódios vão-se articulando na sua mente através de ASSOCIAÇÕES de IDEIAS!

Curiosamente, um outro escritor, este Irlandês, absolutamente contemporâneo de Virginia Woolf, JAMES JOYCE (igualmente 1882-1941) teve igualmente grande impacto na evolução dos processos narrativos da Literatura posterior.

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Outras grandes influências na “arte da escrita” da Literatura do século XX, são MARCEL PROUST (1871-1922) e FRANZ KAFKA (1883-1924).

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Então, perguntaremos:

Em que medida estes escritores foram tão determinantes na evolução da “Arte de Contar”?

Em todos eles há um RECURSO à MEMÓRIA.

Mas em Franz Kafka há um processo ainda mais radical: temos uma grande DESINTEGRAÇÃO da Personagem, em “A Metamorfose”, e um “retrato” do ABSURDO do funcionamento da sociedade, em “O Processo”.

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A par da evolução do modo de contar histórias – a ARTE da NARRATIVA – houve ainda o grande salto provocado, na Poesia, pelo SURREALISMO, uma forma de expressão poética que surge pela acção do poeta ANDRÉ BRETON (1896-1966):

A partir do MOVIMENTO DADA, André Breton propõe um processo mais radical de fazer Poesia: o SURREALISMO:

No seu “Manifesto do Surrealismo”, em 1924, André Breton porpõe uma escrita poética igualmente nascida dos movimentos da consciência – a “escrita automática”! Um grande grupo de poetas se reúne em sua volta. Mas André Breton, ao mesmo tempo que preconizava essa liberdade de expressão característica da “escrita automática”, era tão dogmático quanto às regras que adoptava que alguns poetas abandonaram o movimento!

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Com todos estes antecedentes, a seguir à II Guerra Mundial, vamos encontrar grandes alterações nos MODOS de EXPRESÃO, quer na POÉTICA, quer na NARRATIVA.

Para falarmos desta alteração, vou distinguir entre:

= a técnica narrativa

e

=a técnica literária:

Quanto à TÉCNICA NARRATIVA:

Assistimos a uma narrativa na linha da “corrente da consciência”:

Há um NARRADOR, na “primeira pessoa”, que vai contando a sua história:

Os diferentes episódios sucedem-se por associação de ideias, e discorrem entre o Passado e o Presente. Isto é, deixa de haver uma observação da “cronologia”.

Quanto à TÉCNICA LITERÁRIA:

Num mundo ABSURDO, onde imperam a vontade do poder político que desenvolve as guerras destruidoras e a vontade do poder económico que produz o consumo massificado e a poluição, e onde os bens são efémeros – a vida humana individual tem pouco valor... A CONSCIÊNCIA desintegra-se:

A narrativa discorre caótica:

Então, assistimos à desintegração da Frase. Simbolizada pela quase ausência de pontuação, vemos as frases muito longas – é sintoma dessa desintegração psicológica.

Por outro lado, a “história” começa ALGURES, num TEMPO indeterminado, a meio ou no fim da vida da PERSONAGEM: a história começa como se, num encontro fortuito, alguém começasse a contar-nos a sua própria história! Isto é:

Como se de repente, ligássemos o rádio ou o televisor e começássemos a ouvir o que aí se diz:

O NARRADOR dirige-se directamente ao LEITOR.

Este modo de contar impôs-se a partir da década de ’50 do século XX. Ficou denominado como NOUVEAU ROMAN.

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A concluir, o que quero deixar claro é o seguinte:

Mesmo quando o NARRADOR nos diz ...EU... – isso é fantasia: é IMAGINAÇÃO!

A não ser que um Autor nos informe que uma dada obra é mesmo auto-biográfica, um romance contemporâneo, mesmo quando escrito na 1ª pessoa do singular, é uma obra de FICÇÃO.

Para os meus pequenos alunos, entre os 11 e os 13 anos, eu costumava propor um exercício em trabalho-de-grupo, que, por sinal, até os divertia:

Propunha-lhes uma Banda Desenhada mínima, só com duas ou três vinhetas:

Num primeiro tempo, eles tinham que contar a história na 3ª pessoa do singular!

Depois, os diferentes trabalhinhos eram lidos para a turma e comentados.

Num segundo tempo, a mesma Banda Desenhada tinha que ser contada na 1ª pessoa (do singular, bem entendido):

Finalmente, os trabalhinhos eram igualmente lidos e comentados.

A questão final era a seguinte:

– Isto aconteceu consigo?

– Não, Professora, isto é imaginado!

– Mas Você escreveu: “Eu acordei cedo...”

– Professora, isto é inventado!

Exactamente! Uma história, elementar ou altamente elaborada, é uma história criada por um Autor:

O Narrador é uma FICÇÃO através da qual o TEMA, as PERSONAGENS, o AMBIENTE, a ÉPOCA – são transmitidos ao Leitor!

O pormenor de se contar a história na 1ª pessoa é determinante para operar essa IDENTIFICAÇÃO, essa ADESÃO entre o Leitor e a Obra, que todo o Autor deseja! E essa IDENTIFICAÇÃO acontece muito mais naturalmente, com uma história contada na 1ª pessoa do singular!

E depois, para que nem tudo sejam rosas, surge essa aparente barafunda de andar para trás e para a frente na cronologia!

E surge essa coisa abstrusa das frases muito longas, como se o Narrador fosse a fugir de qualquer coisa, como se estivesse em risco de vida ou como se tivesse que ir apanhar o comboio! Como se o narrador estivesse “à bout de souffle”, a perder o fôlego!

Muito interessante quanto a este pormenor, seria ver o filme de 1962, da realizadora Agnès Varda – “Cléo de 5 à 7”:

A história passa-se apenas entre essas duas horas entre as 5 e as 7 da tarde: A protagonista, Cléo, artista de variedades, tem uma vida desengraçada. É mantida por um realizador, que a vai empatando com promessas de sucesso... Entretanto, ela sai, e vai buscar o resultado de uma biópsia, pois está sob a suspeita angustiante de ter câncer. Num passeio sem sentido, passa por um jardim, onde encontra um soldado, igualmente num momento angustiante, pois vai regressar à frente de batalha, na Guerra da Argélia... E esses dois seres, sem esperança, encontram um no outro, apoio recíproco...

A NOUVELLE VAGUE, a corrente cinematográfica que surgiu em França nos anos ’50, correspondente ao NOUVEAU ROMAN, da mesma época, na Literatura.

Penso que a Literatura actual deriva, em muitos aspectos, do NOUVEAU ROMAN dos anos 50-60 do século passado...

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SOBRE o tema - ROMANCE e NARRATIVA,

poderá rever os capítulos:

cap. 3 e 3.1

cap. 8

cap. 9

cap. 10

cap. 11.

Myriam

Outubro de 2021

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 20/10/2021
Reeditado em 22/05/2022
Código do texto: T7367685
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