Análise da Metafísica de Fernando Pessoa, I
“Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol, [1]
E não pode pensar em nada, porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas. [2]
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa. [3]
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas,
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem? [4]
“Constituição íntima das cousas”...
“Sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. [5]
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes. [6]
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, “Aqui estou!”
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. [7]
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus? [8]
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece com sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol. [9]
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?) [10]
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes.
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo, [11]
E ando com ele a toda a hora.“
(Alberto Caeiro – O Guardador de Rebanhos)
1) Podemos até imaginar algo sobrenatural, porém, sendo naturais, só podemos assimilar algo natural. Acabamos pensando algo muito dependente do natural.
2) Tentamos concluir algo pensando, porém é evidente a vitória das percepções em relação aos maiores pensamentos.
3) Utiliza a inocência como o motivo dos benefícios do Sol. Assim justificando a racionalidade como o meio para as maldades humanas.
4) Mostra que o sentido da vida é não ter sentido esclarecido nenhum, ou seja, são as dúvidas e os mistérios que fazem a vida ter alguma graça, são as incertezas que fazem as sensações conquistadas terem valor.
5) Procurar princípios e causas básicas para satisfazer a sede de conhecimento por algo acaba sendo uma perda de tempo, quando se pode ficar diante desse algo e contemplá-lo, deixando as sensações dominarem sobre qualquer necessidade de explicação.
6) Acaba sendo inevitável questionar-se metafisicamente, porém deve ser algo que vá sempre engrandecer e valorizar a complexidade do que se está questionando, servindo apenas para amar a existência, e não desvendá-la.
7) De forma simples e clara, mostra que não se pode separar tanto a vida natural da crença sobrenatural, como se respeitar e contemplar a todos e ao universo fosse diferente de respeitar e contemplar a mente que os planejou.
8) Numa forma de criticar o vocabulário, questiona sobre a denominação da palavra “Deus”, que nos dá a errada idéia de que seria algo diferente e segregado de todo o resto que se pode perceber.
9) Usa sabiamente o verbo “conhecer”, significando uma compreensão satisfatória. Mostrando que, se separarmos o natural e o sobrenatural, acabaremos tornando-os separados mesmo: o natural será conhecido e o sobrenatural será desconhecido. É a maneira mais fácil de tornar-se ateu.
10) Obedece amando o que está ao seu redor, pois a maior infelicidade é achar que pode ver e saber de Deus, o que já fugiria do próprio conceito de Sua superioridade.
11) Vive como deve ser vivido: não pára de viver para pensar em algo que não se pode pensar. Ama, sem pensar Nele, mas somente no que chega aos seus sentidos.
PS: Apesar de ser um texto do início do século passado, Fernando Pessoa mostra toda a inteligência e criatividade quando suas idéias se identificam muito com o momento em que vivemos: a ânsia do homem em desvendar tudo, como também a relação entre as descobertas científicas e a crença em Deus.