ESTRATO FÔNICO: SIMPLES NOÇÔES



“No princípio era o Verbo”... está em João (.....). O Verbo feito carne trouxe o verbo, o som deu origem à palavra. Pelo menos é assim que eu entendo. Não poderia ser o contrário!

Então, comecemos a casa pelo alicerce. Nunca dei muita importância para o alicerce. Achava tão natural! Quando abria a gramática, pensava, mas isso é tão óbvio! Entretanto, o aparelho fonador é importante porque transforma o ar em sons, entre eles os sons da fala. Entre os sons da fala estão os fonemas que permitem diferenciar uma palavra da outra. Os fonemas são objeto de estudo da Fonética e têm valor distintivo. Podemos ter mais de um som para um mesmo fonema. Em se tratando da Gramática, o estudo dos fonemas que distinguem vocábulos de significação diferente chama-se FONOLOGIA.

Temos as vogais e as consoantes (dentro do grupo, as semivogais).

As vogais classificam-se de acordo com quatro critérios: zona de articulação; timbre; ressonância nas cavidades bucal e nasal; intensidade.

As consoantes classificam-se, também, de acordo com quatro critérios: tipo de obstáculo oposto à corrente de ar; zona de articulação; ação das cordas vocais; ressonância nas cavidades bucal e nasal.

Essa é uma introdução bastante resumida do que pode ser encontrado em qualquer Gramática. Basta consultar uma para ter acesso aos detalhes (importantes, hoje reconheço).

Esses são os fatos que nos levam à explanação sobre as sílabas e a classificação dos vocábulos quanto ao número delas (de sílabas): monossílabos, dissílabos, trissílabos e polissílabos.

Em seguida temos os monossílabos átonos e os tônicos e a classificação em oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas de acordo com a sílaba tônica.

Banal ainda, exceto pelo fato de que existe o conceito de uma língua que é viva e de um falante que a utiliza atuando sobre ela.

Quem consultar a Gramática ou mesmo se observar como falante (enquanto fala),  perceberá que há sons referentes a fonemas mais facilmente articuláveis do que outros.
Há posições mais cômodas e outras menos, no momento da emissão de um som. A nossa tendência é buscar o menor esforço... embora nem todas as palavras envolvam uma posição cômoda e um esforço mínimo de pronúncia.






“ O haikai é uma forma de canto. O canto existe desde o início do céu e da terra. Quando a deusa e o deus desceram do céu a Onokoro-jima, a deusa disse primeiro:
“Ah, que homem encantador!” E então o deus disse: “Ah, quie mulher encantadora!”
Isso ainda não era canto. Mas como o canto é a expressão em palavras do que sente o coração, vê-se aí a origem do canto.”

“(...)Estes são os primeiros parágrafos do Livro Branco, de Hattori Tohô, um discípulo de Bashô.” ( FRANCHETTI, Paulo et alii : 1990 . Editora da UNICAMP.p.09)




No começo era a música. O poema nasceu para ser cantado, mas outros destinos o aguardavam.

Com a chegada da “lírica trovadoresca” ocorre a gradual separação entre poema e música. O poema passa a ser lido ou declamado. Esse era seu destino. Dante e Petrarca foram os primeiros a utilizar (magistralmente) a passagem de “cansó” para “canzone”. Por toda a Europa houve essa alteração, essa passagem. A “Ode”, poesia para ser lida ou declamada chegou a Portugal no século 16.

Se aí está a origem da poesia, através de várias transformações (ocorridas nas várias literaturas), essa forma poética chega até nós nos versos e estrofações livres, além das formas estruturadas (formalmente rígidas).

Creio ser muito difícil separar a fala da música. A fala tem melodia própria. Diz-se que alguém fala cantado (muito ou pouco). O mesmo é verdade para a poesia. Até mais.

São muitos os elementos que contribuem para a composição de uma obra poética.

A palavra “estrato” é usada para referimento das camadas do solo. Esses estratos fornecem informações geológicas, históricas e culturais. São camadas que se acumulam, se sobrepõem através dos séculos, das épocas. Os sambaquis foram exaustivamente estudados. Hoje se fazem “cortes” (verticais) no solo para pôr a descoberto as camadas e estudá-las. Esse estudo é feito das camadas mais superficiais, mais próximas, mais detectáveis, até outras mais profundas, com informações não acessíveis de outro modo.

Na criação lingüística poética, observam-se também vários estratos, camadas. Há camadas mais superficiais “estruturas de superfície” e mais profundas “estruturas profundas”.

Os vários estratos contribuem para a criação de uma unidade, mas podem coexistir e  mesmo contribuir para a plurissignificação.

Pensemos na elaboração de um filme. Há um roteiro ao qual o diretor imprime a sua marca (sua visão de mundo, inclusa a mensagem que deseja transmitir). Os atores estudam seus papéis e as cenas são gravadas “a seco”, isto é, sem música e muitas vezes sem cenário. Quando chega a fase de montagem, a música é juntada e ajustada às emoções e às intenções das cenas, do enredo, do drama (ou da trama). Ao conjunto de “indicações musicais”, dá-se o nome de “trilha sonora”. A escolha do nome "trilha" não deve ter sido gratuita. A trilha sonora é um caminho, um mapa para reforçar o repasse das emoções que o filme contém ou pretende transmitir. Um filme é constituído de partes justapostas (com cortes) que são montadas de acordo com uma visão, uma intenção. Isso é de entendimento corrente. Para finalizar um filme, contribuem várias ações e intervenções.

Um poema é um todo que em geral nasce pronto. Produção e direção vêm de uma única fonte. O Poeta é o diretor, os atores são as palavras; as palavras e as frases que definem tanto o drama como o cenário. Entenda-se nesse caso que aí estão presentes todas as figuras, as formas de composição, os tipos de poemas, as formas de versificação e estrofação; toda a gramática, toda a sintaxe e todo o vocabulário. Falta a trilha sonora. O estrato fônico é a trilha sonora do poema. Ele é definido pelo pé, pelo metro, pelo ritmo, mas não exclusivamente. Na verdade é algo mais, menos simples no sentido de que há outros elementos em combinação. Metro e ritmo associados à “musicalidade das palavras” (ou não) aos fonemas escolhidos (consoantes surdas ou sonoras, vogais abertas ou fechadas, palavras com intercalações de fonemas ou não, palavras cuja pronúncia é fluida, pausada, lenta, rápida; aquelas que pronunciamos com os órgãos da fonação quase em repouso, emendadas umas nas outras sem obstáculos; aquelas que induzem a pausas, dificuldades de pronúncia, rimas, aliterações...). De acordo com o tipo de escolha, consciente ou não, intencional ou não, um determinado conteúdo semântico, portador de uma emoção, intenção, é colocado em evidência ou é obliterado. O conteúdo semântico é o drama, o estrato fônico é a trilha sonora.

Um poema, durante a leitura ou declamação é como o filme projetado na tela. Um conjunto significante. Para chegarmos ao significado, no caso do filme, analisamos o conteúdo das cenas, o foco narrativo, o cenário, o diálogo, o silêncio, as tomadas (ângulos), a trilha sonora (sem esquecer que a música inclui pausas). No caso do poema, para aprofundarmos o entendimento dos seus possíveis significados, analisamos o vocabulário, a gramática, a sintaxe, a versificação, a extensão, a estrofação, as figuras e o “estrato fônico”, isto é, a trilha musical, a parte sonora do mesmo. Essa parte é formada por fonemas que vão combinar-se em sílabas, por sua vez combinadas em palavras, frases, orações, versos estrofes.... A seleção ocorre quer de forma intuitiva, quer de forma intencional e irá compor as rimas, os pés, o ritmo. Com isso haverá certo favorecimento ou dificuldade na leitura. A música poderá ser lenta, suave, vibrante, ritmada, etc., dependendo do significado oculto (profundo) ou estendido, aquilo que está além da impressão superficial, da conotação pura, adentrando o campo da denotação.

A riqueza de uma obra decorre de um conjunto de muitas variáveis em feliz combinação. Ademais o mesmo vale para qualquer manifestação artística.

No caso do texto poético, a boa realização, a riqueza da peça depende da combinação apropriada, insisto, intencional ou não de vários elementos. Isso porque há casos em que uma composição é inspirada, quer dizer, o autor não a elabora mentalmente e formalmente, conceitualmente. Há belas obras que são sentidas pela mente ou pensadas pelo coração e são concretizadas sem muita interferência teórica (da mente concreta). O autor não trabalha nelas com planejamento e por longo período de tempo; são composições quase instantâneas (porém não ingênuas, pois todo cabedal do conhecimento, toda experiência do autor estarão presentes e serão ao mesmo tempo o móvel e o filtro da criação).

O valor de uma obra decorre do conteúdo estético, da mensagem mais facilmente perceptível, do domínio da técnica pelo autor, do domínio da língua e dos recursos lingüísticos e estilísticos disponíveis, inclusive o estrato fônico. Decorre também de algo mais além, de sua universalidade decorrente da plurissignificação, da abrangência dos aspectos temáticos, uma amplitude não sofisticada, mas sim, singela. A expressão que nos leva a refletir sobre os aspectos fundamentais da vida.

Quando uma obra desse tipo é escrita, todos os seus componentes formais, bem utilizados, bem combinados reforçam o conteúdo semântico, sua mensagem.

E, voltando mais uma vez ao nosso exemplo, assim como a trilha sonora é fundamental para dar o tom da intensidade dramática (cômica, épica, trágica, romântica....) do filme, o estrato fônico desempenha o mesmo papel no caso do poema.


Bandeirantes, 20 de março de 2008.
Nilza Aparecida Hoehne Rigo

*Sobre Pé, Metro, Ritmo, há um excelente trabalho da autoria de Paulo Camelo, em sua escrivaninha.*