"ULISSES", DE JAMES JOYCE (continuação da tentativa de resumo dos episódios 4, 5, 6 e 7 da Parte II)

“ULISSES”, DE JAMES JOYCE

(RESUMO/continuação: episódios 4, 5, 6 e 7 da

ParteII)

Autoria: Prof. Dr. Sílvio Medeiros

EPISÓDIO 4 (CALYPSO)

Uma vez concluída o que se convencionou nomear de “Telemaquíada Joyeana”, o intróito que apresenta a entrada do personagem Leopold Bloom é bem diferente daquele verificado no início do romance. O presente intróito guarda distância da esfera transcendente observada na “Telemaquíada”, pois, ao contrário, penetra, violentamente, na esfera imanente, carnal. Nesse sentido, o personagem Leopold Bloom [o Odisseu moderno] surge como um complemento à excessiva espiritualidade já demonstrada pelo jovem artista Stephen Dedalus. “Leopold Bloom comia com gosto os órgãos internos de quadrúpedes e aves.” (“Mr Leopold Bloom ate with relish the inner organs of beats and fowls”).

Leopold Bloom - um agente de publicidade - encontra-se no cenário do seu lar, prestativo aos caprichos da esposa Molly Bloom [a Penélope moderna]- uma cantora lírica. Acompanhado por sua gatinha de estimação, Bloom prepara o desjejum para a mulher. Em seguida, deixa o lar para fazer algumas compras. Cruzando com inúmeros transeuntes pelas ruas de Dublin, Bloom reencontra velhos conhecidos: o assunto, entre eles, gira em torno da morte do amigo Dignam. Bloom compra, então, miúdos, junto a um porqueiro. Prosseguindo em sua caminhada, Leopold Bloom depara-se com um catálogo cujos caracteres propagandísticos anunciam o seguinte título: “Agendath Netaim”. O catálogo traz uma série de propagandas sobre terras distantes do Oriente - consideradas autênticos paraísos perdidos. Tais propagandas colocam-nas à venda:

“Retornava pela Rua Dorset, lendo atento. Agendath Netaim; companhia de plantadores. Para comprar extensos tractos arenosos do governo turco e plantá-los de eucaliptos. Excelentes para sombra, combustível e construção. Bosques de laranjais e imensas planícies de melonais ao norte de Jafa. Pagam-se oito marcos e planta-se-lhe uma dunam de eterra com oliveiras, laranjeiras, amendoeiras e limoeiros. (...) Seu nome fica registrado por toda a vida como proprietário nos livros da companhia (...) Assim na terra como no céu.” (p.49)

(“He walked back along Dorset street, reading gravely. Agendath Netaim: planter’s company. To purchase waste sandy tracts from Turkish government and plant with eucalyptus trees. Excellent for shade, fuel and construction. Orangegroves and immense melonfields north of Jaffa. You pay eighty marks and they plant a dunam of land for you with olives, oranges, almonds or citrons(...) Your name entered for life as owner in the book of the union(...) On earth as it is in heaven.” ) (pp.49-50)

Agendath Netaim: “_Que é que é?”, interroga Bloom.

Subitamente uma nuvem escura cobre o céu da cidade de Dublin. Bloom retorna, então, ao lar. Lá chegando, Leopold encontra as correspondências do correio na soleira da porta. A infiel Molly Bloom continua na cama; Leopold leva, para Molly, a correspondência do dia e, logo em seguida, põe-se a devorar rins contidos no desjejum da mulher.

Repentinamente, Molly pergunta a Leopold sobre o significado de uma palavra que ela encontrara num livro: “metempsicose”. Bloom responde, dando-lhe o significado da palavra, isto é, para os antigos gregos tratava-se da transmigração da alma após a morte.

Dentre as cartas recebidas pelo casal naquela manhã, havia uma endereçada a Leopold Bloom: era de sua filha Milly, agradecendo-o pelo presente de aniversário que Leopold havia lhe concedido, isto é, uma viagem. Então, de imediato, Leopold Bloom associa a distância temporária da filha à distância definitiva do filho morto - chamado Rudy. Leopold Bloom deixa-se abater por um estado temporário de melancolia. Entretanto, logo a seguir, Bloom localiza, no banheiro, um jornal, pondo-se a lê-lo já acomodado no assento do vaso sanitário:

“Calmamente ele lia, dominando-se, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. A meio, uma última resistência cedendo, permitiu que os seus intestinos se aliviassem de todo enquanto lia, lendo ainda pacientemente , toda ida aquela ligeira prisão de ventre de ontem... Lia adiante sentado calmo sobre o próprio odor montante...” (p.55)

(“Quietly he read, restraining himself, the first column and, yielding but resisting, began the second. Midway, his last resistance yielding, he allowed his bowels to ease themselves quietly as he read, readind still patiently that slight constipation of yesterday quite gone ...He read on, seated calm above his own rising smell...”) (p.56)

Finalmente, Leopold “rasgou rápido o conto premiado e com isso se limpou” (“ he tore away half the prize story sharply and wiped himself with it.”).

Os sinos da igreja bimbalam... Leopold Bloom prepara-se para acompanhar o enterro de um amigo: Dignam.

EPISÓDIO 5 (LOTUS EATERS)

O dia está quente. A cidade de Dublin e os cidadãos encontram-se mergulhados em estado de letargia. Leopold Bloom, tendo a impressão de estar caminhando numa espécie de paraíso perdido, dirigi-se rumo ao enterro do amigo Dignam. “O senhor Bloom parou na esquina, seus olhos errando por sobre anúncios multicores” (“Mr Bloom stood at the corner, his eyes wandering over the multicoloured hoardings.”). Bloom, flanando, interroga-se, repentinamente, sobre a razão da morte da personagem Ofélia no “Hamlet” de Shakespeare. Novamente aparece a figura do pai - mais uma vez o tema recorrente -, remetendo Bloom a se recordar dos episódios que culminaram no suicídio do próprio pai.

Bloom insiste em manter na memória a imagem do pai. Assim, temas bíblicos interferem em seu fluxo de consciência:

“_ A voz de Natan! A voz do seu filho! Ouça a voz de Natan que deixou seu pai morrer de mágoa e miséria nos meus braços, que abandonou a casa do seu pai e abandonou o Deus de seu pai.

Cada palavra é tão profunda, Leopold.

Pobre papai! Pobre homem! Estou contente de não ter entrado no quarto para ver seu rosto. Aquele dia! Meu Deus! Meu Deus! Uf! É, talvez tenha sido melhor para ele.” (p.60)

(“Nathan’s voice! His son’s voice! I hear the voice of Nathan who left his father to die of grief misery in my arms, who left the house of his father and left the God of his father.

Every word is so deep, Leopold.

Poor papa! Poor man! I’m glad I didn’t go into the room to look at his face. That day! O, dear! O, dear! Ffoo! Well, perhaps it was best for him.”) (p.62)

A eclosão dos ruídos provindos dos movimentos da população dublinense pelas ruas da cidade - no romance joyceano - tende a se tornar cada vez mais intensa. Eis, então, Leopold Bloom contemplando o dia-a-dia das massas e dizendo para si mesmo: “_ Curiosa a vida dos cocheiros à deriva, por todos os tempos, todos os lugares, à hora por combinação, sem vontade própria” (“_Curious the life of drifting cabbies. All weathers, all places, time or setdown, no will of their own.”).

As vozes de Dublin multiplicam-se junto ao fluxo da consciência de Bloom - agora associado a temas religiosos:

“Mesmo aviso à porta. Sermão do reverendíssimo John Conmee S.J. sobre São Pedro Claver e a missão africana. Salve os milhões da China. Pergunto-me como se explicam aos chinos pagãos. Preferem uma onca de ópio. Crua heresia para eles. Preces pela conversão de Gladstone fizeram também quando ele já estava quase inconsciente. Os protestantes a mesma coisa. (...) Ideia inteligente São Patrício o trevo. Comestipauzinhos?” (p.63)

(“Same notice on the door. Sermon by the very reverend John Conmee S. J. on saint Peter Claver S. J. and the African Mission. Prayers for the conversion of Gladstonethey had too when he was almost unconscious. The protestants are the same. (...) Clever idea Saint Patrick the shamrock. Chopsticks?”) (p.65)

Em seguida, Bloom comparece a uma missa:

“Viu o padre curvar-se e beijar o altar e então revirar-se e abençoar todo o mundo (...) O senhor Bloom observou ao redor e então se levantou (...) O padre desceu do altar, segurando bem na frente a coisa , e ele e o coroinha responderam um ao outro em latim. Então o padre se ajoelhou e começou a ler um cartão:

_ Ó Deus, nosso refúgio e nossa força...” (p.65)

(“He saw the priest bend down and kiss the altar and then face about and bless the people. (...) Mr Bloom glanced about him and then stood up (...) The priest came down from the altar, holding the thing out from him, and he and the massboy answered each other in Latin. Then the priest knelt down and began to read off a card:

_ O God, our refuge and our strength...”) (p.67)

Após o encerramento da missa, Bloom põe-se a caminho de uma farmácia. Lá, entre drogas e aromas, Bloom adquire um sabonete de cera limão-doce. A seguir, dependura o jornal no sovaco e dirige-se a uma casa de banho. “Goza de um banho agora (...) Este é o meu corpo. Antevia seu pálido corpo reclinado ali em cheio, nu, num ventre de quentura, ungido de odorante sabonete fundente, lavado suavemente ...” (“Enjoy a bath now ... This is my body. He foresaw his pale body reclined in it at full, naked, in a womb of warmth, oiled by scented melting soap, softly laved.”).

Leopold Bloom é, portanto, adepto do rito de Onan.

EPISÓDIO 6 (HADES)

Este episódio principia com um encontro entre Simon Dedalus (o pai de Stephen Dedalus) e Leopold Bloom, no interior de uma carruagem, que segue em direção ao cemitério da cidade. Eis, novamente, o tema recorrente do pai e do filho: o sr.Dedalus, em seus diálogos junto a Leopold Bloom [que não conhece, pessoalmente, Stephen Dedalus], faz menção às recentes e más companhias do filho Stephen Dedalus, notadamente a do jovem médico Buck Mulligan. “_ Ele anda com gente que é uma escória - rosnou o senhor Dedalus - Esse Mulligan é de cabo a rabo um imundo de danado de refião inveterado.” (“_ He ‘s in with a lowdown crowd, Mr Dedalus snarled. That Mulligan is a contaminatd bloody doubledyed ruffian by all accounts.”).

A carruagem avança rumo ao cemitério de Dublin; no pensamento de Bloom paira uma outra lembrança do filho morto, Rudy: “Se o pequenino Rudy tivesse vivido. Vê-lo crescer. Ouvir sua voz em casa. Andando ao lado de Molly vestido à Eton. Meu filho. Eu nos seus olhos. Raro sentimento sentia. Oriundo de mim.” (“If little Rudy had lived. See him grow up. Hear his voice in the house. Walking beside Molly in a Eton suit. My son. Me in his eyes. Strange feeling it would be. From me.”).

A carruagem percorre as ruas de Dublin. Dentre os elementos que fazem parte do fluxo da consciência de Bloom, retornam temas recorrentes, o do sabonete, por exemplo: “Ah, esse sabonete no meu bolso” (“Ah, that soap: in my hip pocket”); e os das meias: “... gostaria que a senhora Fleming tivesse cerzido melhor as meias” (“But I wish Mrs Fleming had darned these socks better”) [neste nosso resumo não apresentamos, anteriormente, tal detalhe, dentre mil outros, obviamente].

Carruagem e paisagens urbanas. Temas fúnebres procedentes, sobretudo, do campo da mitologia e os temas associados ao “Hamlet” de Shakespeare misturam-se numa estranha fusão na mente de Bloom. Os leitmotivs insistentes - nesta passagem do romance - estão relacionados à Moira, a Caronte, a uma Harpia desqueixada, ao coveiro de Hamlet, dentre outros que tais. Além disso, a atmosfera misteriosa propõe enigmas para o leitor do romance, alcançando outros espaços em momentos posteriores do desenvolvimento do romance: trata-se da figura enigmática do “Impermeato”, que ronda os túmulos do cemitério e passa a acompanhar o enterro de Dignam. Além disso, juntam-se outros enigmas, como por exemplo, Bloom lê as notas de falecimento e pergunta a si mesmo: “... Peake, que Peake é esse?” (“... Peake, what Peake is that?)

“_ E diga-me - dizia Hynes -, conhece aquele sujeito de, o sujeito que estava por lá de

Mirou à volta. (...)

_ Impermeável - disse Hynes, rabiscando - , não sei quem é. É esse seu nome?

Ele afastou-se, procurando-o.” (p.87)

(“_ And tell us, Hynes said, do you know that fellow in the , fellw was over there in...

He looked around.(...)

_ M’Intosh, Hynes said scribbling. I don’t know who he is. Is that his name?

He moved away, lookin about him.”) (p.92)

Novamente, o retorno do tema recorrente do pai e do filho perturba a mente de Leopold. E Bloom se põe a rememorar, lamentando o suicídio do pai:

“Pobre papai também. O amor que mata. E mesmo raspando a terra à noite com uma lanterna como no caso que li (...) Vou aparecer-te depois da morte. Verás meu espírito depois da morte. Meu espírito te perseguirá depois da morte. Há um outro mundo depois da morte chamado Inferno.” ( p.89)

(“Poor papa too. The love that kills. And even scraping up the earth at night with a lantern like that case I read... You will see my ghost after death. My ghost will haunt you after death. There is another world after death named hell.”) (p.94)

EPISÓDIO 7 (AEOLUS)

Após o enterro do amigo Dignam, Bloom dirige-se à redação do “Freeman’s Journal ” - um “local barulhento e ventoso”.

Neste episódio ocorre um choque explosivo entre temas que giram em torno da literatura clássica e da literatura popular. Elementos da literatura clássica são postos em contraste junto às manchetes que povoam as páginas do jornal, cuja data é 16 de junho de 1904. O resultado é uma profusão de temas que entrelaçam acontecimentos - verídicos ou não - de várias épocas, notadamente aqueles relacionados aos mundos moderno e antigo. A técnica aforística da escrita constrói todo o episódio.

Uma autêntica miscelânia, sobretudo, entre dados da literatura e da imprensa compõe um texto altamente intrigante. Além disso, temas recorrentes (nomes de personagens históricos, literatos, poetas, romancistas, fatos da história, dentre outros díspares elementos) misturam-se numa espantosa profusão ou numa orgia de títulos, sub-títulos, textos etc: necrológio de Dignam; charadas ortográficas (Bloom retira o sabonete do bolso); anúncio do Xaves; Império Romano; Gregos; Senhor Jesus; o latim; Egipto Antigo; Moisés; Judeus; Santo Agostinho; Tempestuosa Tróia; Górgias; Vergílio; Horácio; Deus Todo-Poderoso...

Dentre os aforismos, que compõem o referido episódio, o tema recorrente do sabonete ganha espaço, a ponto de aparecer, em determinado momento, isoladamente:

“SÓ UMA VEZ MAIS AQUELE SABONETE

(...) Limão-cidra? Ah, o sabonete que pus aí. É perdê-lo nesse bolso. Guardando o lenço, retirou o sabonete e aconchegou-o fora, abotoado no bolso traseiro das calças.” (p.95)

(“ONLY ONCE MORE THAT SOAP

(...) Citronlemon? Ah, the soap I put there. Lose it out of that pocket. Putting back his handkerchief he took out the soap it away, buttoned, into the hip pocket of his trousers.”) (p.101)

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BIBLIOGRAFIA

JOYCE, James. “Ulisses”. 8 ed. Tradução de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1993.

_____. Ulysses. New York: First Vintage Books Edition, 1986.

PROF DR. SÍLVIO MEDEIROS

verão de 2005