WALTER BENJAMIN, CRÍTICO LITERÁRIO: poética, melancolia e alegoria

WALTER BENJAMIN, CRÍTICO LITERÁRIO: POÉTICA, MELANCOLIA E ALEGORIA

Saturno é o planeta da revolução mais lenta, o planeta da melancolia. Olhar para dentro de si é encontrar dúvidas e desespero. A conquista do objeto pelo melancólico por meio da meditação morosa é sempre insatisfeita, pois não existe nenhuma certeza consoladora na esfera da indistinção do sujeito e do objeto. Meditação e melancolia...

A dúvida corrói o espírito do narrador de “Dom Casmurro” : “... nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa...” (Machado de Assis: 1985). Príncipes, reis, imperadores... onde está o cetro, está o medo! A melancolia mora nos palácios. Neles reina o frio e a estação é sempre o inverno, porque o sol da justiça está distante. O melancólico é invejoso, triste, avaro, desleal, medroso... (1)

“Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos (...) Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.” (Assis 1995, p.14)

Campos de ruínas, caos de metáforas. “Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?” (Assis: 1995). Primavera, Verão, Outono, ‘Inverno’; César, Augusto, Nero e ‘Massinissa’ ... Humor “melancholicus” :

“Característica e inesperada é a tentativa, em ‘Sophonisbe’, de refutar o ‘Ciúme’ como figura alegórica, descrevendo seu comportamento segundo a imagem do melancólico demente. Se a refutação alegórica do ciúme nessa passagem é bastante estranha, tendo em vista que o ciúme de Syphax com relação a Masinissa é mais que justificado, é altamente surpreendente que no início a sandice do ‘Ciúme’ seja caracterizada como uma ilusão dos sentidos (...) No conjunto, portanto, não se trata da descrição de uma paixão, mas de uma perturbação mental. Albertinus recomenda literalmente que os melancólicos sejam postos a ferros, ‘para que não surjam, desses excêntricos, tiranos como Wüttrich, ou assassinos de jovens e mulheres’”.

(Benjamin 1984, p.168)

“Apateia” (2) ou ausência de paixões:

“A teoria da melancolia está estreitamente associada à doutrina das influências astrais. Entre essas influências, a mais fatídica era a exercida por Saturno, que governava o melancólico. (...) Surgem detalhes exóticos, como a inclinação do melancólico para longas viagens - daí o mar no horizonte da ‘Melencolia’, de Dürer...” (Benjamin 1984, p.171)

A transitoriedade do mundo e a inércia no coração de Ulisses (ou Odisseu) melancólico:

“E ali estava o engenhoso Ulisses, depois de tantas andanças, ancorado na sua ilha, a bocejar a alma, enfarado de felicidade e repouso merecido. (...) Sentia musgo nas juntas e um gosto de mofo na boca. Sufocava nas sendas e veredas do seu reino, com inveja dos cabritos. (...) Desatinado parecia-lhe o esforço daqueles vinte anos sacrificados à ânsia de voltar (...) Perdera a cada instante uma oportunidade que não se repete. Agora, sim, repetiam-se as horas, pesadas e iguais, e o tédio era eterno. Pensar que ele , o tíbio Ulisses, com fama de aventuroso, ordenara que o amarrassem ao mastro, para não ceder ao apelo das Sereias! Pois, que dizia a voz das Sereias? (...) A verdadeira sabedoria - cantavam as Sereias - era alimentar o espírito de inquietação, não perder o dom divino do anseio insatisfeito que não pára nunca e põe todo o amor na procura do amor. (...) Indigno do seu alto destino, tapara os ouvidos à sedução da sabedoria. (...) Foi assim que um belo dia, sem despedir-se de Penélope e Telêmaco, o redivivo Ulisses partiu para a sua última aventura. (...) acenou aos companheiros com a glória de navegar cada vez mais para o Ocidente misterioso, desprezando os périplos do mundo conhecido, a descobrir novos céus e mares, terras sem nome, que só eles veriam surgir da linha do horizonte.” (Mayer 1986, pp.427-8)

Walter Benjamin lutou em toda a sua obra contra o mito e o irracional; em sua interpretação do texto de Franz Kafka “O silêncio das Sereias”, Ulisses aparece como a força da razão e da astúcia, que derrota o poder diabólico do mito e, só assim, os poderes do mito deixaram de ser invencíveis. O herói Odisseu (ou: Ulisses) é inequivocamente um “Aufklaerer” (esclarecedor) a serviço de uma humanidade livre do terror e da superstição:

“Uma coisa é certa: Kafka não cedeu à sedução do mito. Novo Odisseus, livrou-se dessa sedução graças ‘ao olhar dirigido a um horizonte distante’... ‘as sereias desapareceram literalmente diante de tamanha firmeza, e , no momento em que estava mais próximo delas, não as percebia mais’ ...” ( Benjamin 1985, p.143)

Neste ponto de vista, Benjamin se distingue claramente de Theodor Adorno e Max Horkheimer, pois ambos, na “Dialética do Esclarecimento”, vêem a astúcia de Odisseu como antecipação pré-histórica da repressão burguesa: o arquétipo do pensamento iluminista é Ulisses, que a cada episódio da “Odisséia” representa o sujeito racional em conflito com a natureza. Ademais, para Adorno e Horkheimer, é no interior desse conflito que Ulisses é obrigado a renunciar à própria liberdade.

Nesse sentido, conforme a apreciação de Benjamin, a obra de Kafka mostra-se realista em seu aspecto desmistificador, porque ela, reinventando o mito, reconstrói no interior da narrativa uma realidade bárbara, indicando para o leitor, talvez, um caminho que o conduza a se libertar do peso das situações opressoras.

Numa carta endereçada ao amigo Gerschom Scholem, datada de 12 de junho de 1938, Benjamin compara a obra de Kafka à descrição do mundo feita por um físico. A exemplo do físico, Kafka, segundo Benjamin, seria o narrador de um mundo no qual a tradição da escrita, que tem como pressuposto básico a descrição organizada do universo, surpreendentemente, não dá mais conta de explicações completas. Nesse sentido, Kafka, na qualidade de narrador moderno da negatividade do mundo, apresenta a morte da sabedoria tradicional:

“A obra de Kafka é uma elipse cujos pontos centrais são bastante afastados um do outro; constituem, por um lado, a experiência mística (que é sobretudo a experiência da tradição) e por outro a experiência do homem das grandes cidades modernas. E ao me referir à experiência do moderno habitante das metrópoles, incluo diferentes aspectos. Por um lado falo do cidadão moderno, entregue a um aparelho burocrático interminável (...) Por outro lado, quando falo do habitante moderno das grandes cidades, refiro-me aos físicos contemporâneos. Quem ler (...) ‘Weltbild der Physik’ [Visão Mundial da Física], de Eddington, acreditará que está ouvindo Kafka. (...) A obra de Kafka representa um adoecimento da tradição...” (Benjamin e Scholem 1993, pp.301-3)

A literatura moderna, diante do sujeito clássico em escombros, narra, principalmente, essa metamorfose da subjetividade, ativada pelo recesso da experiência e pela sabedoria esvaziada. Mudança da imagem do universo, se antes tudo era um todo, agora, nas palavras de Octávio Paz:

“... o espaço se desagrega e se expande; o tempo se torna descontínuo; e o mundo, o todo, se desfaz em pedaços. Dispersão do homem (...) errante em sua própria dispersão. Em um universo que se desfia e se separa de si, totalidade que deixou de ser pensável exceto como ausência ou como coleção de fragmentos heterogêneos, o eu também se desagrega.” (Paz 1972, p.101)

Inegavelmente, todas essas considerações têm seu correspondente no breve e notável ensaio “Experiência e Pobreza” (1933), no qual Benjamin, de forma otimista, propõe um “conceito novo e positivo de barbárie”. Essa tarefa implica não só encontrar, mas também renovar a história mediante o estoque de fragmentos de experiências e de memórias, visando fomentar uma nova escritura da história, pois

“... o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir um pouco (...)” (Benjamin: 1985)

As análises críticas da obra de Franz Kafka efetuadas por Walter Benjamin confirmam esse procedimento quanto à narrativa moderna.

Cabe, portanto, remetermo-nos, então, à interpretação de Kafka sobre o “Canto das Sereias”, na qual a comunicação mítica kafkiana vai num sentido radicalmente diferente da tradição clássica:

“Prova de que inclusive meios insuficientes, até mesmo infantis, podem servir para a salvação:

Para se precaver contra as sereias, Odisseu encheu os ouvidos de cera e fez-se amarrar ao mastro. Naturalmente, desde sempre todos os viajantes poderiam ter feito algo semelhante, exceto aqueles que as sereias já de longe seduzissem, mas no mundo inteiro se sabia que era impossível que isso pudesse ajudar. O canto das sereias transpassava tudo e a paixão dos seduzidos teria arrebentado mais que correntes e mastro. Mas Odisseu nem pensou nisso, embora talvez tenha ouvido falar disso. Confiava plenamente no punhado de cera e no emaranhado de correntes e, em inocente alegria quanto a seus meiozinhos, navegou em direção às sereias.

Ora, as sereias possuem, no entanto, uma arma ainda mais assustadora do que o canto: o seu silêncio. Embora isso nunca tenha acontecido, talvez se possa pensar que alguém tenha se salvo de seu canto, certamente não porém de seu silêncio. À sensação de tê-las vencido com a própria força, à arrasadora arrogância daí decorrente, não há nada terrestre que se possa contrapor.

E, de fato, quando Odisseu chegou, as poderosas cantoras não cantavam, seja porque acreditassem que a esse adversário só o silêncio saberia enfrentar, seja porque o olhar de felicidade no rosto de Odisseu, que não pensava senão em cera e correntes, fez com que esquecessem todo canto.

Mas Odisseu não ouviu, por assim dizer, seu silêncio, acreditou que cantavam e que somente a ele seria dado ouvir (...) formalmente as sereias desapareceram diante de sua pertinácia e, justamente quando mais junto a elas estava, já não sabia mais nada delas (...) só Odisseu delas escapou (...) Aliás, quanto a isso a tradição nos acresce um adendo. Diz-se que Odisseu era tão astuto, era uma raposa tal, que mesmo a Deusa do Destino não conseguia penetrar em seu íntimo. Embora isso já não possa mais ser entendido pela razão humana, talvez ele realmente tenha notado que as sereias silenciavam (...).” (3)

(Franz Kafka. “O silêncio das Sereias”)

Noutro projeto audacioso da ficção contemporânea - por querer encerrar todas as narrativas em um só livro -, as sereias, que tentaram Odisseu, ao contrário, no universo joyceano (referimo-nos ao “Ulisses”, de James Joyce), transformam-se em ruidosas sirenes que agitam o tráfego da cidade moderna:

“Bronze com ouro ouviram os ferrocascos , açoferritinindo.

Impertxnentx txnentnentx

Taliscas, taliscando taliscas da polegunha crostuda, taliscas. Hórrido. E ouro enrubesceu mais.

Uma vibrinota pífana assoprou.

Assoprou. Azul afloração ficou sobre.

O pináculo da cabeleira de ouro.

Uma saltitante rosa no acetinado peito de cetim, rosa de Castela.

Trilando, trilando: Eudolores.

Pipi! Quem está no ... pipidouro?

Tlim tiniu a bronze em pena.

E em apelo, puro, longo e latejante. Lentimorrente apelo.

Engano. Palavra doce. Mas olha! As estrelas brilhantes fenecem. Ó rosa!

Notas cricricrilando resposta. Castela. Rompe a manhã.

Ginga sege ginga seginha.

Vintém tilintou. Ponteiro apontou.

Confissão. Sonnez. Eu podia. Ricochete de liga. Não te deixar . Estalada. La cloche! Coxa. Estalada. Confissão. Quente. Minha doçura , adeus!

Ginga . Flô.

Ribombo de acordes colidentes. Quando o amor absorve. Guerra! Guerra! O tímpano.

Um veleiro! Um véu vagando sobre as vagas.

Perdido. Um tordo atordoou. Tudo perdido agora.

Corno. Cocorno.

Quando ele viu primeiro. Ai, ai!

Todo investida. Todo palpitação.

Gorjeio. Ah, imã! Imantante.

Martha! Vem!

Plaqueplaque. Plaquepacpac. Palcplocplac.

Deusmeu nuncaê leouviu tudinho.

Surdo calvo Pat trouxe forro faca levou.

Um noctapelo licilunar:longe : longe.

Me sinto triste. P.S. Florescendo tão só.

Escuta!

O aguilhado e espiralado maricorno frio. Tem você o? Cada um e para o outro esparrinhamento e silente bramido.

Pérolas: quando ela. Rapsódias de Liszt. Hisss ...” (Joyce 1993, pp.193-4)

(“ Bronze by gold heard the hoofirons, steellyringing.

Imperthnthn thnthnthn.

Chips, picking chips off rocky thumbnail, chips.

Horrid! And gold flushed more.

A husky fifenote blew.

Blew. Blue bloom is on the.

Goldpinnacled hair.

A jumping rose on satiny breast of satin, rose of Castile.

Trilling, trilling: Idolores.

Peep! Who’s in the ... peepofgold?

Tink cried to bronze in pity.

And a call, pure, long and throbbing. Longindying call.

Decoy. Soft word. But look: the bright stars fade . Notes chirruping answer.

O rose ! Castile. The morn is breaking.

Jingle jingle jaunted jingling.

Coin rang. Clock clacked.

Avowal. Sonnez. I could. Rebound of garter. Not leave thee. Smack. La cloche! Thigh smack. Avowal. Warm. Sweetheart, goodbye!

Jingle. Bloo.

Boomed crashing chords. When love absorbs. War! War! The tympanum.

A sail! A veil awave upon the waves.

Lost. Throstle fluted. All is lost now.

Horn. Hawhorn.

When first he saw. Alas!

Full tup. Full throb.

Warbling. Ah, lure! Alluring.

Martha! Come!

Clapclap. Clipclap. Clappyclap.

Goodgod henev erheard inall.

Deaf bald Pat brought pad knife took up.

A moonlit nightcall: far, far.

I feel so sad. P. S. So lonely blooming.

Listen!

The spiked and winding cold seahorn. Have you the? Each, and for other, plash and silent roar.

Pears: when she. Liszt’s rhapsodies. Hissss...”) (Joyce 1986, pp.210-1)

Como já notara com acerto, para Benjamin, as galerias, o “grand magasin” ou “a casa comercial é a última grande molecagem do flâneur” (Benjamin: 1989). O “magasin” é o derradeiro passeio do flâuner, pois, a partir desse momento, a massificação se consuma. O flâuner, absorvido pelo mercado, perambula como passante desmemoriado no meio da massa, da ruidosa multidão.

Diante desse quadro, constatamos que a perda da memória, da experiência, da aura; enfim, alguns dos elementos pertencentes ao panorama da modernidade benjaminiana expressam-se nas várias passagens do “Ulisses” joyceano, pois, vagando pela cidade de Dublin, Leopold Bloom (o Ulisses metamorfoseado de Joyce?), o “herói” da odisséia joyceana, condenado à mera vivência do cotidiano da cidade, além de desprovido de qualquer tipo de experiência que implique numa relação com a tradição, narra a sua própria desorientação.

Nesse sentido, James Joyce foi o primeiro romancista a conferir ao desimportante homem urbano uma dimensão heróica. Contemplando as ruínas da Dublin do início do século XX, nelas Joyce encontrou Ulisses. A partir daí, o romancista moderno confere à vida cotidiana - mediante uma narrativa que se constrói, essencialmente, por relações subjetivas - uma dimensão metafísica sem precedentes.

Benjamin, ao redigir um “Curriculum Vitae” (4), chegou a se posicionar em relação à obra de James Joyce, sublinhando a sua importância para a literatura moderna nos seguintes termos:

“... j’ai toujours eu en projet le plan d’un livre sur les trois grands métaphysiciens parmi les écrivains contemporains: Franz Kafka, James Joyce, Marcel Proust.” (Benjamin: 1981)

O espólio joyceano, por querer ser completo, ser total, ser toda a memória do mundo, nas palavras de Hermann Broch - que tomou a obra de Joyce como objeto de estudo durante quase quinze anos -, explorando-a por diversos ângulos, nota que em “Ulisses”:

“Aparecem todas as formas de estilo [o épico, o lírico, o dramático, o expressionismo, o dadaísmo, o futurismo... ] (...) A aglomeração de estilos joyciana é, do ponto de vista técnico, um procedimento que empurra o objeto de um estilo para o outro, a fim de esgotá-lo totalmente e conseguir para ele o maior grau de realidade, uma realidade sobrenatural. (...) Pode-se caracterizar tal procedimento como esotérico-alegórico (...) a caminhada de M. Bloom pela cidade de Dublin é uma odisséia (...) [ é uma alegoria ] pela qual responde Homero. É uma estrutura e superestrutura alegórica (...) uma cosmogonia alegórica, na qual, além disso, a Irlanda e sua História são elevadas à alegoria do mundo ...” (Nestrovski 1992, pp.120-3)

De outra parte, um dos temas mais recorrentes na obra de Walter Benjamin trata do declínio da arte de narrar. Em seu ensaio “O Narrador”, Benjamin explica que, uma vez substituída pelas novas formas de expressão, como o romance e a informação jornalística moderna, a arte de contar histórias declinou, chegando quase às vias da extinção. Com o conjunto de transformações promovido pelo sistema capitalista, a arte de contar a mesma história, de geração em geração, cedeu lugar às novidades, pois no mundo moderno o declínio da experiência (relacionada com a memória, com a tradição) corresponde a uma intensificação da vivência (relacionada apenas com a mera vivência individual). Com o gradativo empobrecimento da memória, o homem moderno perde o contato com a tradição.

Nesse caso, as “piruetas” do narrador proustiano, para Benjamin, constituem-se na possibilidade de um resgate da memória. “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, distancia-se da concepção consagrada do romance como forma literária acabada, cuja história se dissolve num fim determinado ansiosamente aguardado pelo leitor, para que, a partir daí, ele (o leitor) possa conferir um sentido à história narrada.

Partindo do pressuposto de que num texto literário todo significado pode tornar-se significante, gerador de múltiplos significados, ao iniciar seu ensaio “A imagem de Proust”, Benjamin afirma que:

“Os treze volumes de ‘A la recherche du temps perdu’, de Marcel Proust, são o resultado de uma síntese impossível, na qual a absorção do místico, a arte do prosador, a verve do autor satírico, o saber erudito e a concentração do mono-maníaco se condensam numa obra autobiográfica.” (Benjamin 1985, p.36)

Indo ao contrário dos romances tradicionais, na referida obra proustiana não se encontra uma ação comum, que sirva de fio condutor do primeiro ao último volume, nem mesmo um desfecho, coroando as soluções dos fatos encontradas no percurso da narrativa. Navegando nesse “Nilo da linguagem” (consoante palavras de Benjamin – tradutor de Marcel Proust para o idioma alemão), o narrador proustiano, movido pela memória involuntária, acionada pelo acaso, é capaz de resgatar as memórias significantes compostas de elementos inacabados, atualizando-as. Nessas “ressureições da memória”, Proust procura ressaltar a importância da interferência do acaso no momento em que a memória involuntária se manifesta:

“É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto (...) só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” (Proust 1995, p.48)

As referidas “ressurreições da memória” dependem, na verdade, de um acaso providencial, como a visão de um bolinho ensopado em chá. A irrupção de toda uma série de lembranças, acionada por um toque de sirenes - ou pelo canto das sereias que tentaram Ulisses – traz, impetuosamente, para o presente, todo um passado, que jazia no esquecimento e já não tinha significado algum:

“Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas de bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento o que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de causa. (...) Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? (...) E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (...) minha tia Léonie me oferecia (...) (Proust 1995, p.48)

Reapropriação de fragmentos de uma história esquecida,

“...quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.” (Proust 1995, pp.48-5l)

Enfim, como já pudemos constatar, Walter Benjamin ama os escritores do passado. Com seu espólio de caráter fragmentado e interdisciplinar, Benjamin transita com ardor crítico e sem constrangimentos pelo interior da crise da cultura moderna. Em seus ensaios sobre Charles Baudelaire, Franz Kafka, Marcel Proust, sobre o “Drama barroco alemão” e, principalmente, sobre as suas teses “Sobre o conceito de história”, palpitam questões a respeito da alegoria, da memória, da história, da literatura, da filosofia e outras áreas do saber, que se dirigem para uma tensão/concepção da modernidade. Longe de acentuar tons melancólicos e nostálgicos, o espólio crítico benjaminiano apresenta-se, na verdade, propenso a organizar no interior do nosso tempo de barbárie a “horrível mixórdia de estilos e concepções” em que se converteu o nosso patrimônio cultural, quando a experiência não mais o vincula a nós.

NOTAS

1. Cf. BENJAMIN, Walter. ‘Drama barroco e tragédia III’. In “Origem do drama barroco alemão”. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984, pp.161-180.

2. Cf. idem, p.163.

3. KAFKA, Franz. Org. Flávio R. KOTHE. Nas galerias. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp.51-2.

4. Escrito entre 1928 e 1933, nada se sabe sobre as razões que levaram Walter Benjamin a redigir tal documento.

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Revistas:

1. Revista USP: Dossiê Walter Benjamin. n.15. São Paulo, 1992.

2. Revue d’Esthétique. Walter Benjamin: n.1, Privat, C.N.R.S., 1981.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

verão de 2006