A problemática do feto anencéfalo

Neste semestre o STF analisa diversos casos polêmicos, como já divulgou a mídia. Um deles trata da possibilidade do aborto do feto anencéfalo.

A questão não se resume num simples debate entre ciência e religião, entre dogma e pesquisa, entre luz e escuridão. O questionamento deita raízes mais profundas.

Uma delas é saber se o feto anencéfalo por não “ter cérebro”, que o qualificaria como um ser racional, deve ter direito à vida garantido.

A questão é: por não ter consciência, por não ter os mecanismos do que se compreende por racionalidade, pode o feto anencéfalo ser considerado um ser vivo? Será que não tem seu modo de viver, que deve ser respeitado? Como se caracteriza um ser vivo?

Para uma resposta, lembra-se que em meados de 1940, Schödinger analisou o tema a partir da reunião de conceitos de física e biologia. O trabalho permitiu adotar a noção de sistema, a qual veio superar a de evolução por seleção natural. Para se conhecer um organismo é preciso estudar sua unidade sistema que é dinâmica e contém duas propriedades: estrutura e organização.

Estrutura é a relação presente nos componentes de um sistema. Organização é modo de tais relações estarem dispostas produzindo o próprio sistema. Num sistema, os seus elementos relacionam-se e, assim, adquirem uma organização, uma totalidade que revela a regra do sistema.

Para os seres vivos, a característica básica é a auto-organização (autopoiese) a permitir uma rede contínua de interações. Para se descobrir se um ser é vivo basta observar seu padrão de organização, o qual terá por característica básica a continuada produção de si mesmo. Pode se concluir que o ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, porque a rede viva constantemente cria a si própria.

Tem-se aí a diferença entre um sistema vivo e um sistema não-vivo. Em ambos há o ser e o fazer. Todavia, no primeiro, o ser e o fazer são realizados autonomamente pelo próprio ser, enquanto se faz a si mesmo. No sistema não-vivo, embora haja o ser, o fazer ocorre por força externa, ou seja, o sistema não-vivo precisa ser construído. A unidade sistêmica viva é um ser que se faz e a não-viva é um ser que é feito.

O ser vivo tem a faculdade de se fazer a si mesmo, ou seja, o sistema vivo, ao fazer-se, acaba por realizar um processo de trocas consigo, com o outro e com o ambiente.

Ao realizar as respectivas trocas, o ser vivo recebe elementos externos, cuja função é formativa e/ou informativa para si mesmo, porque o ser recebe material de natureza física ou abstrata que irá, de alguma maneira, alcançar sua organização, mantendo ou alterando seu padrão relacional, influenciando sua interação cognitiva consigo mesmo.

Na natureza, o ser humano constitui a unidade sistêmica mais complexa existente. É ele que consegue maior possibilidade de se apropriar de sua interação consigo e com o meio, enquanto se faz a si mesmo. O ser humano é o ser que tem a possibilidade de compreender sua autopoiese. É o ser “compreensional” e não somente racional. A racionalidade é um das dimensões do compreender e não a mais perfeita, nem a mais completa. A idéia de racionalidade ou de ser racional não é a melhor para qualificar a vida como humana.

Em resumo, cada ser vivo tem uma modalidade específica de vida natural, um modo próprio de existência, um modelo respectivo de vivência. O ser humano caracteriza-se pela compreensão.

A vida natural não pode ser confundida com a vida qualificada. Na antiguidade grega, não havia um termo único para expressar o que se diz com a palavra vida, mas dois termos distintos. O primeiro deles era zoé, o qual exprimia o simples fato de viver, aquele viver inerente a todos os seres vivos, a vida natural de todo ser vivente sem nenhum predicado nem qualquer qualidade. O outro era biós, o qual por sua vez indicava a forma de viver qualificada de um indivíduo, a vida com um atributo ou qualificação, fosse civil, político, nacional, cultural, social, jurídico ou econômico.

Antes de ser um indivíduo, uma pessoa, um cidadão, antes de ocupar um espaço social ou político, o ser humano é um ser vivo e, por isto existente. E o mesmo ocorre com o feto, pois também interage com o meio em que vive, embora seja limitado em sua capacidade de compreensão. Todos têm vida natural.

Todos os seres vivos possuem uma só finalidade: viver; existir no modo respectivo a ele. É por isto que a constituição diz ser inviolável o direito à vida e depois apresenta as diversas qualificações possíveis, nas diversas dimensões decorrentes.

E aí se chega ao foco do problema: qual dos direitos deve prevalecer, o direito à vida, mesmo irracional e incerta quanto à sua duração, ou o direito de interromper a gravidez porque o feto anencéfalo não é um ser racional, logo não humano e fatalmente condenado à breve morte? Não somos todos nós, apesar de nossa tão decantada racionalidade, seres condenados à morte?