ESTADO ASSASSINO: Da Institucionalização da Violência Letal no Brasil

Ao longo do desenrolar histórico do Estado e das classes sociais foi possível destacar a complexa e contraditória relação existente entre estes dois fenômenos. Assim, à medida que a sociedade se dividiu em classes antagônicas e essa divisão se solidificou, a história demonstrou igualmente a existência de uma Instituição especial: o Estado. Foi assim na sociedade gentílica, com a transformação e substituição parcial dos órgãos de constituição gentílica em novos órgãos com poderes verdadeiramente governamentais, desfez-se aquela sociedade, em conseqüência do choque das classes sociais recém formadas, iniciando, por conseguinte, uma categoria especializada em governar os outros, assim como, no afinco de governar, disposta a utilizar sistemática e permanentemente aparelhos de coerção e violência.

A primeira importante divisão social foi a dos proprietários de escravos e escravos. Na seqüência, à medida que surgiam mudanças na forma de exploração do homem pelo homem a escravatura evoluiu para a servidão e passou-se ao modelo feudal de Estado. Tanto na escravatura como no feudalismo, recorrer à coerção foi o meio mais eficiente para que uma minoria de pessoas pudesse dominar a larga maioria. Desta forma, verificou-se nas primeiras formas de Estado independentemente de serem monarquia, república ou democracia, o papel fundamental na manutenção das relações sociais.

Com o desenvolvimento do comércio e do intercâmbio de mercadorias, houve a formação de uma nova classe, a dos capitalistas. Da mesma forma, foi possível verificar o nascimento do Estado moderno. De acordo com a lei, a sociedade, passou a ser formada por indivíduos iguais, não importando o capital que possuíssem, fossem eles proprietários de terras ou homens contando apenas com sua força de trabalho. A sociedade capitalista, marcada pela concentração da propriedade da terra e da indústria nas mãos da burguesia, assim como, pelo grande êxodo rural, resultado da acumulação primitiva do capital, viu os conflitos coletivos explodirem colocando em risco a ordem pública burguesa. Esta situação exigiu a formação de instituições especializadas, com tarefas de prevenir e controlar qualquer desordem, e disciplinadas à autoridade política do Estado. Assim, o Estado, caracterizado pela existência de um conjunto de instituições e funcionários administrativos e judiciários a serviço do poder político, bem como, pelo monopólio da força, especializou-se no controle e opressão das classes trabalhadoras e pobres.

Sendo assim, o presente trabalho destacou duas categorias inerentes ao modo de produção capitalista: a violência estrutural e a violência institucional. A primeira atrelada principalmente aos meios de produção, à força de trabalho, às formas de propriedade, à organização das classes sociais e ao sistema de distribuição de rendas, contribui fundamentalmente na determinação da segunda. Esta última, por sua vez, encontra-se vinculada à atuação das superestruturas do poder político e jurídico do Estado, sendo praticada pelos aparelhos ou órgãos encarregados da aplicação da política social, dentre os quais faz parte o aparelho policial, como um dos órgãos responsáveis pela repressão.

O aparelho policial surgiu na sua forma moderna (um corpo organizado com base na hierarquia e na disciplina pelo poder político burguês) para informação, prevenção e controle das desordens públicas, direcionando sua atuação às camadas populares da sociedade. Desta maneira, a função da polícia passou a ser a de manutenção da ordem pública burguesa, da liberdade, da prosperidade e da segurança, o que se seguiu com o decorrer do tempo.

Este aparelho do Estado, aliás, mostrou-se intrinsecamente ligado à manutenção e reprodução da ordem social burguesa criada e mantida pelas formas jurídica e política do Estado capitalista, por vezes, diretamente atuando contra os marginalizados do mercado de trabalho, noutras, indiretamente, agindo contra a força de trabalho ativa explorada nos processos de produção e reprodução do capital, comumente em situações de greve, protestos, manifestações, reivindicações, etc.

Da mesma forma, o aparelho policial brasileiro que, desde o seu surgimento, a partir da chegada de Dom João VI e a elevação do Brasil a vice-reino, passando pelo período da criação das polícias militares até o momento atual com a implantação de batalhões especializados, jamais pôde ser qualificado pela neutralidade. Portando, desempenhando importante papel ao longo da história da opressão de classe promovida no Brasil, estabelecendo através da violência oficial, a lei e a ordem que conforma as relações sociais de exploração e submissão das classes trabalhadoras e marginalizadas.

A pesquisa demonstrou também, diversos elementos comprovadores da institucionalização da violência letal em prol de um controle social direcionado e perverso. Historicamente, destacou-se o surgimento Polícia Militar no contexto da ideologia da segurança nacional como uma força militar auxiliar preparada para combater aqueles que enfrentavam a ditadura através da luta armada. Porém, mais revelador ainda, foi o reaproveitamento deste aparelho, que, com o fim da guerrilha, passou a enfrentar o crime convencional, empregando as mesmas técnicas de guerra, e mesmo com a “reabertura política” permaneceu dessa forma sem alterações significativas. Ou seja, a ditadura acabou oficialmente, porém, para os trabalhadores pobres e para os marginalizados as práticas repressivas continuaram e até se aperfeiçoaram.

A escalada da incorporação da violência contou ainda com a formação dos Esquadrões da Morte. Estes grupos eram constituídos por policiais contratados por comerciantes para executarem suspeitos de terem praticado algum delito. A conivência oficial ficou visível no estímulo à impunidade dos crimes praticados pelos Esquadrões da Morte. Afinal, o Estado, no intuito de proteger às ações destes grupos, passou à Justiça Militar a competência exclusiva sobre crimes de policiamento e no policiamento. Ademais, os Justiceiros, outro grupo especializado na “limpeza social”, foi apoiado implicitamente ou explicitamente pelas Polícias brasileiras, havendo inclusive a utilização de veículos oficiais pelos mesmos.

Contudo, com a formação de batalhões especializados no uso da violência letal, treinados para desenvolver táticas de guerra contra civis, o Estado desvelou de uma vez por todas a incorporação da eliminação de suspeitos como política de controle social.

Com intuito de aperfeiçoar este aparelho de guerra urbana, dando mais eficiência à eliminação de suspeitos, o Poder Público passou a aceitar e, até mesmo, a incentivar a utilização de armamentos e veículos altamente letais, como o “Caveirão”. Este, aliás, devido a sua estrutura e configuração, por si só comprova a política de extermínio instituída e promovida pelo controle social.

Ultimamente as chamadas mega-operações têm se tornado cada vez mais comum. Essas operações, extremamente militarizadas e letais, geralmente causam mais prejuízos do que benefícios. Quando ocorrem, transformam os locais em verdadeiras praças de guerra, as crianças não vão à escola, diversos moradores ou transeuntes são humilhados, achincalhados e, até mesmo, torturados, sem esquecer é claro do alto número de execuções de suspeitos. Ou seja, desde que estes abusos ocorram em bairros pobres, o desrespeito à integridade física e psíquica, à liberdade e, inclusive, à vida, é estimulado pelo Poder Executivo e permitido pelo Poder Judiciário.

No plano Judiciário, a pesquisa demonstrou diversos fatores facilitadores e, consequentemente, incentivadores à utilização da violência letal pelas Polícias, seja através da permissão da distorção de instrumentos jurídico-legais, permitindo um processo absurdo de criminalização da pobreza, seja por meio do desinteresse em apurarem os casos de abusos policiais, fazendo reinar a impunidade.

Ademais, a impunidade tem fundamental influência na questão em tela, combatê-la iria interferir diretamente no número de Execuções Sumárias. Medidas simples seriam capazes de diminuir o número de vidas perdidas de forma desnecessária, por exemplo: permitir e possibilitar o controle externo das Polícias; maior transparência das atividades policiais; acabar totalmente com a Justiça Especializada quando se tratar de abusos policias; etc. Entretanto, a questão especifica da impunidade é, sem sombra de dúvidas, assunto suficiente para um futuro e longo trabalho.

O estudo revelou ainda, que o Poder Público no intuito de criar uma aparência de legitimidade e legalidade às ações abusivas das Polícias iniciou um processo de criminalização da pobreza brasileira. Para tanto, o Estado não só empregou instrumentos ideológicos, como jurídico-legais também. No plano ideológico, implantou a noção de guerra no combate ao crime, criando o “inimigo interno”, um verdadeiro monstro desprovido de qualquer sentimento emocional que não seja a raiva e ódio, sem qualquer ligação com a sociedade, por isso mesmo, passível de ser eliminado. Ligou, ainda, a noção de eficiência policial à letalidade, ou seja, polícia eficiente é a que mata o “criminoso”. Já no plano jurídico-legal, para instituir a criminalização da pobreza e, com isso, criar uma aparência de legalidade às operações policiais abusivas e truculentas, o Poder Público contou com a distorção ilegal de alguns instrumentos (“autos de resistência”, crime de associação para o tráfico e o mandado de busca e apreensão) criando verdadeiras aberrações jurídicas. Desta forma, além de criar a ilusão de que segurança pública se faz com o emprego indiscriminado da violência, o Estado brasileiro promoveu o etiquetamento penal das comunidades carentes deste país. Ou seja, no Brasil o aparelho estatal associou a pobreza à criminalidade.

Revelando o interesse estatal de manter a política de extermínio, há ainda a falta de transparência das ações públicas na área de segurança e a inexistência de órgãos de monitoramento que atuem com independência e autonomia. A falta de autonomia e o baixo investimento no IML (Instituto Médico Legal), bem com, a ausência de um banco de dados oficial confiável, são apenas alguns exemplos desta política cruel.

Desta forma, os casos de Execuções Arbitrárias, a maioria delas cometidas por agentes do Estado, destacando-se os policiais no exercício da função, espalham-se pelo território nacional, atingindo cifras cada vez maiores. A Polícia Militar é sem dúvidas um dos protagonistas desta cena de desrespeito à vida.

Durante o andamento da pesquisa diversos indicadores, bem como, alguns casos reais trazido pela pesquisa, revelaram a intenção de matar das Polícias, porém, mais do que isso, desvelou-se uma política de segurança alicerçada na repressão e eliminação de pessoas, em sua larga maioria, residentes nas periferias, que conta com a omissão oficial para alastrar-se.

Os números trazidos apresentam um aparelho policial embuído em matar. Em média cerca de 10% dos homicídios dolosos cometidos no Brasil são atribuídos às Polícias. Em muitas cidades o número de suspeitos mortos em operações policiais supera o número de feridos. Além do mais, um índice muito alto de mortos pelas polícias apresentam elevado número de tiros na cabeça, pelas costas, bem como, lesões adicionais aos ferimentos à bala, sem esquecer de mencionar o número demasiado de disparos à queima-roupa.

Desta maneira, diante da necessidade de controle social, o Poder Público, reforçando-se à medida que se agravam os antagonismos de classe no interior desta organização social, bem como, incapaz de suplantar as contradições inerentes a uma sociedade estratificada em classes inconciliáveis, elevou a repressão oficial a padrões inaceitáveis.

Portanto, o aparelho estatal especializado na repressão popular, extravasando os limites da própria autorização legal, estendeu a violência institucional às formas criminosas e covardes de violência, destacando-se o crescente número de Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais ocorridos, principalmente, em comunidades pobres.

Isto é, diante da inerente crise do Estado burguês, repleto de contradições insuperáveis, tornou-se útil ao poder político alargar a violência institucional à violência letal. Afinal, de que outra maneira uma minoria poderia subjugar milhares de pessoas a condições precárias de vida, de trabalho, de renda, de educação, de saúde, etc., senão pela opressão.

Desvelando, por fim, o Estado brasileiro como uma organização do poder político do bloco de classes dominantes, mantenedora da ordem social vigente por meio de seus aparelhos de poder, desempenhando papel fundamental na submissão das classes oprimidas à ordem social vigente, principalmente no que diz respeito à reprodução e acumulação do Capital.

Portanto, cabe às próprias classes oprimidas (operários, proletários, marginalizados dos processos produtivos, etc.), através da transformação revolucionária, abolir todas às distinções e antagonismos de classe, bem como, o próprio Estado burguês, fazendo florescer um novo modelo de organização social verdadeiramente livre e popular. Afinal, como escreveu Karl Marx: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”.