Aborto e excomunhão

A declaração de excomunhão pelo arcebispo de Olinda e Recife gerou bastante polêmica e trouxe à tona duas discussões principais: a relativa à liberação do aborto e a referente à separação do Estado laico e da Igreja.

Há um hábito ruim, ao se discutir questões como a do aborto, de incorretamente polarizar as posições dos debates. Assim, aqueles que são favoráveis ao aborto são também defensores do Estado laico e do modelo científico de conhecimento, ao passo que os que são contrários defendem o Estado religioso e o modelo fiducial de acesso à verdade. Seria um debate entre ciência e religião ou entre fé e razão.

Isto não é verdade. Em primeiro lugar porque o debate sobre a existência de um Estado laico se iniciou por volta do século XII, em pleno período medieval do pensamento filosófico-político e se assentou definitivamente no século XVIII, com o Iluminismo. O Estado é laico na doutrina política e jurídica há mais de 200 anos, logo, as estruturas legais de um país não se formam, em locais que adotam o constitucionalismo de origem iluminista, por força de ordenações religiosas.

A religião se encontra separada do Estado, volto a insistir, há três séculos. Além disto, a laicidade do Estado não é uniforme, havendo variações nos modelos jurídicos, não só entre os países, mas dentro do próprio sistema de um Estado.

Dentro do nosso sistema jurídico, como a moderna teoria do direito ensina, as discussões para alterações de lei são de ordem política. Aqui política refere-se ao conjunto de conceitos que formam um modelo de se enxergar as relações entre indivíduo e Estado, entre espaço público e cidadão.

Quanto ao aborto, já afirmei em outra oportunidade que ele não deve ser considerado crime no Brasil. Explico. Com relação às motivações de quem o pratica (normalmente é a intenção que configura o crime) há quatro possibilidades: aborto natural, necessário, sentimental e socioeconômico.

O primeiro ocorre por causas biológico-fisiológicas e, por razões obvias não é punido pela lei. O necessário é aquele autorizado pela lei, quando se trata de salvar a vida da gestante. O sentimental ocorre quando a gravidez resulta de violência contra a mulher e não há necessidade da vítima correr risco de vida. Este último retrata o caso da menina de 9 anos, assim, os médicos estavam autorizados mesmo que a vida dela não corresse risco algum.

O último caso é o proibido pela lei penal. A motivação dele é socioeconômica por exclusão, uma vez que a lei já protege a integridade física ou psíquica e a integridade moral da gestante nos casos anteriores. O aborto criminoso somente ocorre quando a conduta da gestante ou de quem a auxilia tem fundamentação social ou econômica, pois se acredita que a mãe naquela situação não terá condições de cuidar da criança. Ou seja, tal aborto ocorre porque a estrutura social não apóia a mulher em seu momento de maior necessidade: ao ter de cuidar de um ser humano além de si. O problema em temos de política criminal é este.

Hoje em dia, contudo, há uma tendência de se criar princípios jurídicos para tudo, supostamente a fim de se proteger melhor certos direitos subjetivos. Haveria então um conflito de direitos individuais: direito à vida do feto versus direito de escolha da mãe.

O grande problema da teoria do direito hoje é compreender a oposição destes “princípios”. Há uma tendência a se crer que quanto mais direitos considerados sociais são opostos a direitos considerados classicamente individuais, maior possibilidade de limitações da ação estatal, protegendo-se melhor o indivíduo.

Não há espaço para discussão de tais teorias aqui. Contudo, se pensarmos que, no caso do aborto, quanto mais isolarmos a mulher, deixando-a supostamente livre para exercer decisão, mais longe deixamo-la da estrutura comunitária essencial à construção de uma sociedade justa. Ou seja, quanto mais cedemos à atraente idéia de exercício aparente de pleno direito, mais acentuamos o individualismo que um sistema injusto precisa para sobreviver. Vale dizer, luta-se por um direito social que, em sua essência, é mascara para isolar o indivíduo da comunidade, facilitando-se a manutenção de um direito individualista.

Não há confronto de direitos na verdade. O que deve haver é uma investigação sobre o conteúdo semântico dos direitos subjetivos para se encontrar resposta mais concreta a fim de combater os problemas da sociedade pós-moderna. Por exemplo, o direito à vida. Qual seu conteúdo num ambiente do século XXI? Qual a extensão e profundidade de seu significado? Esta deveria ser a pergunta.

Em relação ao direito canônico, um sistema totalmente diferente do nosso e que deve ser analisado dentro de sua lógica própria, o direito à vida é absoluto. Por isto, há regra que permite a excomunhão latae sententia, ou seja, automática. Com efeito, se há num dado sistema somente um único princípio absoluto, este se sobrepõe a todos os outros. A lógica interna do sistema é correta e coerente, pois há previsão legal para a pena.

Comparações devem respeitar a organização e a estrutura do respectivo ordenamento jurídico estudado. Além disto, se o nosso sistema fosse perfeito, somente pela existência do devido processo legal, não ocorreriam tantas injustiças que frequentemente observamos pela mídia.

Finalmente, no site do Vaticano, não há o Código Canônico em português. Porém, nele estão o Catecismo e o Compêndio, que são os textos básicos da doutrina católica. Um exame permite àqueles interessados e que desejem efetivamente conhecer a religião tomarem contato com ela com bastante segurança.

Mesmo tendo que ler o Código Canônico em espanhol, não me senti na Idade Média ou no ambiente da Inquisição. Até porque o espanhol é língua rica também. Enxergar o espanhol como a língua de Torquemada é deixar de lado seu real valor, esquecendo-se de que ela é a língua de Cervantes, como o alemão não é a língua de Hitler, mas a de Goethe; como o italiano não é a língua de Mussolini, mas a de Dante, como o latim não é a língua de Nero, mas a de Cícero, como o português (brasileiro) não é a língua dos que mal nela se expressam – mascarando sob populismo propósitos de dominação – mas a língua em que se expressou Machado.

A língua é o universo de um povo, exprimindo sua cosmovisão; ela representa o modo como foi dada unidade a um conjunto de pessoas, por fazer comum a totalidade de sua existência. E nela, por ela e com ela é que podemos aprimorar nossos institutos jurídicos.