Tortura institucionalizada vale o boi?

História

A domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves.

Depois, quando o homem se curvou aos deuses do Olimpo e aos santos das Escrituras, a concepção de mundo tornou-se mítica, relacionando criador e criatura à guisa de imagem e semelhança, respectivamente,de modo a sacramentar a hegemonia de nossa espécie em detrimento das outras.A era das conquistas territoriais e das grandes navegações permitiu aos países colonialistas não apenas a subjugação dos povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais visando ao lucro ou seu aprisionamento para servir a cortejos exóticos, circos e zoológicos. O cão, lobo domesticado, tornaria-se o mais fiel companheiro do homem, enquanto que o gato carregaria em si o estigma das superstições medievais. Originalmente esporte da nobreza, a caça difunde-se pelas classes sociais e firma-se como um dos mais pusilânimes entretenimentos humanos. Os costumes da cultura popular, como a secular tourada espanhola e os rituais de matança coletiva de carneiros nas festividades muçulmanas, transformam martírio em tradição.Até o início do século passado cavalos e jegues eram utilizados, de maneira impiedosa, nos serviços de tração e transporte de pessoas, enquanto que os bovinos moviam, no campo, o sistema agropastoril de produção alimentar. Após a Segunda Guerra Mundial,o avanço da industrialização e as descobertas tecnológicas romperam, de vez, com o modelo tradicional de criação de animais, quando o modelo campestre cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria do agronegócio, na qual vacas, bois, porcos, patos, galinhas, carneiros e outros tantos animais destinados ao consumo humano padecem em silêncio. Na área científica, igualmente,a experimentação animal atinge níveis assombrosos, submetendo milhões de animais a tormentos inomináveis, sob a cômoda justificativa de servir ao progresso da humanidade.

Foi no século XX, apenas, que se firmaram pelo mundo as leis de proteção aos animais. No Brasil, especificamente, a vedação à crueldade proclamada no decreto federal 24.645/34, tornou-se contravenção penal (art. 64 da LCP) e, depois, crime ambiental (art. 32 da Lei 9.605/98), ganhando respaldo constitucional em nossa atual Carta Política (art. 225 § 1o, VII). Não obstante isso, a situação da chamada fauna doméstica ou domesticada, em plena era da globalização, é desoladora. Afora a pequena parcela de animais de estimação que, na companhia de seus donos, tem uma vida digna e sem sobressaltos, a restante é criada sob o signo do sofrer.

Do ponto de vista religioso

A Bíblia Sagrada, no livro de Gêneses, Velho Testamento, 2:15 nos ensina: “ O senhor Deus tomou o homem, e o pôs no jardim do Édem para o lavra e o guardar “ (grifo nosso), e ao homem, concomitante com o versículo 20 do mesmo capítulo, foi ordenada sua primeira obrigação. O termo “guardar” não deixa dúvidas, significa cuidar, zelar.

O próprio sacrifício de animais, que outrora era exercido para agradar a Deus, fora por Jesus, o Cristo, abolido veementemente conforme 1 Co 5.7 e HB 10.8 a 10 no Novo Testamento.

Seguindo um discernimento das passagens descritas, fica notório que é um ato anti-cristão, a tortura e o sacrifício de um animal, principalmente para saciar uma sede de sadismo disfarçada de tradição cultural.

O uso econômico dos animais e as leis

O uso econômico dos animais e a chamada finalidade recreativa da fauna e práticas culturais, embora atividades contrárias à moral e à ética, buscam respaldo em diplomas permissivos de comportamentos cruéis, como por exemplo na lei do Abate Humanitário, na lei da vivissecção (dissecação de animais ainda vivos para estudos), na lei dos Zoológicos, no Código de Caça e de Pesca, na lei da Farra do Boi, na lei dos Rodeios e principalmente das Vaquejadas. Acima de todas elas, porém, está a Constituição Federal, cujo artigo 225 §1o, VII obriga o poder público a coibir a submissão de animais a atos de crueldade. Um preceito que, longe de vincular a proteção à fauna apenas enquanto bem ambiental, estende sua tutela a todos os animais, indiscriminada e individualmente, sejam eles silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados, terrestres ou aquáticos.

As normas

O Brasil é um dos poucos países do mundo a tratar do tema da crueldade para com os animais em nível constitucional. A norma protetiva inserta no art. 225 § 1o, inciso VII, de nossa atual CF, que incumbe ao poder público "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade", inspirou o legislador ordinário ambiental a criminalizar, no artigo 32 caput da Lei 9.605/98, todo aquele que "praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". A maioria das constituições estaduais, por sua vez, já havia acolhido a orientação suprema, como se vê na Carta Política paulista, cujo artigo 193, inciso X, estabelece que cabe ao Estado, "assegurada a participação da coletividade, proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade". Conclui-se, diante disso tudo, que o nosso repertório legislativo é mais do que suficiente para, em tese, proteger os animais da maldade humana.

Importa definir, desde já, o que vem a ser essa conduta capaz de ocasionar dor, angústia ou sofrimento ao animal. Do ponto de vista lingüístico, a terminologia em questão – crueldade - reporta-se àquele que se compraz em fazer mal, em atormentar, em ser desumano, pungente, doloroso, sanguinolento (in Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1993).Segundo o professor Ernesto Faria, crudelis, -e, em seu sentido próprio, é aquele que se mostra ‘cruel, desumano, insensível’. Crudelitas, - tatis, por suja vez, significa ‘crueldade, desumanidade’(in Dicionário escolar latino português, FAE, Rio de Janeiro, 1985).

Não é à toa que, para o Direito Civil, o animal é coisa ou semovente; no direito penal, objeto material; no direito ecológico, bem ambiental de uso comum do povo. No jargão do agronegócio, bois e vacas perdem sua condição natural de seres sencientes para se tornarem rebanho, plantel, cabeças, peças ou matrizes; no circo, leões, macacos, tigres e ursos adestrados são protagonistas do triste espetáculo da dominação humana; nos depósitos municipais os cães recolhidos das ruas, mesmo sendo dóceis ou sadios, acabam sendo sacrificados em razão de seu risco potencial à saúde pública; nas mesas dos centros de pesquisa científica, coelhos, camundongos, rãs, cães e hamstes são considerados, todos eles, simples cobaias; nas vaquejadas, muito apreciada pelo povo tocantinense, muitos animais são cruelmente utilizados para satisfazer uma espécie de masoquismo disfarçado. E assim por diante, a dialética da opressão faz com que os animais permaneçam sempre curvados às vicissitudes históricas, culturais, políticas e econômicas dos povos, sofrendo violências atrozes e desnecessárias. A lei ambiental brasileira, tida como uma das mais avançadas do planeta parece ignorar o destino cruel desses milhões de animais que perdem a vida nos matadouros, nos laboratórios e nos galpões de extermínio, que tanto sofrem nas fazendas de criação, nos picadeiros circenses e nas arenas públicas ou, então, que padecem em gaiolas ou em cubículos insalubres, para assim atender aos interesses do opressor.

Há mais de dois séculos, na Inglaterra, o jurista Jeremy Benthan já afirmava não ser a razão ou a linguagem que tornam os seres dotados de sensibilidade dignos de nossa consideração ética, mas sim a sua capacidade de sofrimento (in ‘Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação’, 1879).

Já o filósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu que a piedade, princípio de toda a moralidade, não depende de idéias preconcebidas, de religiões, de dogmas, de mitos, de educação ou da cultura, tomando os animais sob o seu manto protetor: "Insistir na suposta inexistência de direito dos animais,como se nossa conduta para com eles não tivesse importância moral, porque deveres humanos em relação aos animais inexistem, é agir de modo preconceituoso e comum a ignorância revoltante" (in‘Dores do Mundo’, Rio de Janeiro, Ediouro). O professor Cesare Goretti, que lecionava Filosofia do Direito na Universidade de Ferrara, Itália, observou que os animais, quando domesticados, participam do ordenamento jurídico humano, surgindo daí nosso dever legal e moral, principalmente, de não tratá-los com brutalidade: "Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade (companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da moral? (in ‘L´animale quale soggeto di diritto", Rivista di Filosofia, n. 19, Itália, 1928).

Nosso Direito Ambiental, ao contrário do que possa parecer à primeira vista,não se limita a proteger a vida do animal em função dos chamados bons costumes, do equilíbrio ecológico ou da sadia qualidade de vida. A noção de crueldade, longe de permanecer afeita apenas à saúde psíquica do homem, é universal.Ações agressivas e dolorosas recaem sobre um corpo senciente, não sobre um conceito abstrato relacionado ao bem-estar da espécie dominante. Afinal, para os seres desprovidos capacidade de abstração ou esperança, o universo da dor torna-se amplo, contínuo, permanente. Sua sensação é traduzida pela angústia e pelo sofrimento, ainda que não possamos compreendê-la em plenitude. Ao dispor expressamente sobre a vedação à crueldade, o legislador pátrio erigiu um dispositivo de cunho moral que se volta, antes de tudo, ao bem estar do próprio animal e, secundariamente, da coletividade. Apesar de sua acentuada feição antropocêntrica, a Constituição da República tem o propósito de conciliar o desenvolvimento econômico, o bem estar humano e o meio ambiente sadio, assumindo – sob certos aspectos – caráter biocêntrico. Há, assim, uma limitação ao princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais. Outros princípios constitucionais informam a política brasileira de proteção à fauna que as poucas linhas nos restringem a citar.

Da responsabilidade do Ministério Público

Incumbe ao Ministério Público, como guardião do meio ambiente e curador dos animais, zelar pela fiel aplicação desta norma protetora suprema, lutando para que nenhuma lei infraconstitucional legitime a crueldade, que nenhum princípio da ordem econômica justifique a barbárie, que nenhuma pesquisa científica se perfaça sem éticae que nenhum divertimento público ou dogma religioso possam advir de costumes desvirtuados ou de rituais sanguinolentos. Porque toda criatura tem o direito de viver dignamente e sem sofrimentos inúteis, como já o sabiam Pitágoras, Plutarco, Montaigne, Jeremy Benthan, Arthur Schopenhauer, Cesare Goretti, Piero Martinetti e tantos outros pensadores cujo legado de benevolência e compaixão aos animais que sofrem inspirou, na atualidade, as idéias filosóficas de Peter Singer, Tom Regan, Jane Goodall, Silvana Castignone, Leonardo Boff, etc. Contra a injustiça, a hipocrisia social, as tradições cruentas e os subterfúgios jurídicos que permitem esse autêntico massacre de seres inocentes, deve o Ministério Público insurgir-se. Os instrumentos legais da ação civil pública e do inquérito civil, assim como dos procedimentos verificatórios, das peças de informação e dos termos de ajustamento de conduta, surtem bons efeitos no campo preventivo, reparatório e pedagógico. Caso o delito já se tenha consumado, de modo irreversível, medidas penais transformadas em transação penal, suspensão processual ou prestação de serviços à coletividade,mediante atividades ressocializadoras e/ou educativas,podem contribuir para que a Justiça encontre seus verdadeiros fins.

Da ética

Em auspicioso ensaio científico-filosófico tratando da dor em animais, o professor Bernard E. Rollin, que leciona Filosofia na Universidade do Colorado/EUA, chegou a uma conclusão desoladora: 99% do sofrimento animal provém da crueldade deliberada. Isso significa, a contrario sensu, que apenas 1% das situações de crueldade para com os animais acabam sendo coibidas pela lei.

A maquiavélica desculpa do jargão de que “os meios justificam os fins” não pode continuar imperando no século XXI, ela é muito ultrapassada. Estudos científicos já comprovaram que até mesmo o sacrifício de animais para fins de experimentos científicos podem ser substituídos por meios mais éticos e não menos eficazes.

Na barbárie no setor dos espetáculos públicos, para fins meramente de diversão, o sofrimento dos animais acaba sendo também respaldado pela lei, que pune não o uso, mas o abuso. É o que se vê nas práticas relacionadas aos rodeios e as vaquejadas, em que provas de laço e de montaria submetem bovinos e eqüinos a verdadeiro tormento. Sob o efeito compressivo do sedém – seja ele uma cinta de couro, seja uma corda americana, independentemente do material pelo qual é confeccionado – touros e cavalos alteram seu comportamento normal, pulando na arena para tentar se livrar daquilo que os oprime.

A impressionante reação dos animais está associada à inflição de estímulos dolorosos em seus órgãos internos (genitália, sistema digestivo, nervos e glândulas vesiculares). O sedém provoca, portanto, dor e sofrimento, sem necessariamente causar lesões na pele ou esterilidade no animal. Da mesma forma as esporas, utilizadas para estocar os animais durante a montaria, mediante seguidos golpes aplicados pelo peão no baixo-ventre e no pescoço do animal, implica em maus tratos. Quanto às provas de laço, e a derrubada do boi típica das vaquejadas, na maioria das vezes ocasionam deslocamento de vértebras, rupturas musculares e fratura de ossos dos animais perseguidos e derrubados em um brutal espetáculo de sadismo humano condenando o animal ao sacrifício de morte. A questão, enfim, não é apenas jurídica, mas de ordem filosófica, ética.

Enquanto se continuar ensinando às crianças que os animais existem para servir ao homem e que, como seres inferiores, merecem ser utilizados ou escravizados, dificilmente essa triste situação mudará. O filósofo norte-americano Tom Regan, cuja teoria ética em defesa dos animais considera-os como legítimos detentores de direito, enxergou – como ninguém –aquilo que os homens não querem ver: "Os animais não existem em função do homem… eles possuem uma existência e um valor próprios. Uma moral que não incorpore esta verdade é vazia. Um sistema jurídico que a exclua é cego".

Conclusão

Existe um inegável conteúdo ético no art. 225 § 1o, VII, da CF, que se direciona não apenas ao equilíbrio das espécies e/ou aos chamados bons costumes da coletividade, mas aos animais enquanto seres sencientes, capazes de vivenciar dores e sofrimentos, mesmo porque a Moral deve sempre estar acima do Direito;

O modelo econômico capitalista e o ritmo industrial de produção faz com que 99% das hipóteses de crueldade para com os animais seja deliberada, como se vê nos matadouros, nos espetáculos públicos de rodeios, circos e vaquejadas, nos centros de controle de zoonoses, nas competições de caça amadora e, principalmente,nas atividades relacionadas à experimentação animal e ao agronegócio;

Leis como uma do Estado de São Paulo, a de nº 10.470/99, permissiva da jugulação cruenta nos matadouros que servem ao mercado judaico e muçulmano, assim como a lei estadual catarinense de nº 11.365/2000, que regulamenta a farra do boi em mangueirões, carecem de ética e de moralidade, uma vez que nenhum dogma religioso e nenhum costume ou tradição podem se legitimar com base na tortura e na crueldade;

O Ministério Público é a instituição melhor preparada para exercer a tutela jurídica dos animais, cabendo-lhe, no exercício desse mister, instaurar inquéritos civis e procedimentos verificatórios, celebrar termos de ajustamento de consuta, propor ação civil pública, oferecer denúncias e, se o caso, sugerir transações penais ou medidas pedagógicas que suscitem, no infrator,o respeito pela natureza e pela vida.

* Publicado pelo autor no Jornal Chico em 04.04.2006.