O Direito e a Sociedade

O Direito, como ciência do espírito que é, germinou na consciência do homem porque este vive em sociedade.

Mas, por que, diferentemente das sociedades de outras espécies animais, a humana teve necessidade de fazer surgir o Direito? Certamente porque na humana há fatores que inexistem nos outros tipos de sociedade animal.

Infelizmente, o que mais nos tem diferenciado das outras espécies animais é também o que mais nos distancia da racionalidade.

Embora sempre nos orgulhemos em proclamar que somos seres que nos destacamos de todo o resto do reino animal, não só por possuirmos um sistema nervoso mais desenvolvido, mas - principalmente - por dispormos de um raciocínio muito mais apurado que qualquer outra espécie - justificando, assim, ser a nossa sociedade a mais evoluída e organizada; o fato é que temos nos destacado mais pela irracionalidade, pela dificuldade em não se deixar dominar por sentimentos inferiores, como o egoísmo, a ganância, a inveja.

Sim, nenhum outro gênero animal transformou em fontes de disputas intermináveis, cruentas e perigosamente desestabilizadoras de toda a sua própria sociedade - a terra, o ouro, o petróleo. Nenhum outro animal cria formas inumeráveis, intermináveis, inimagináveis de fraudar o seu semelhante. Também nenhum outro gênero animal mata com tamanha avidez: o homem, não raro, mata sem necessidade, sem motivo; e, pior, mata não só seres que julga inferiores, mas também seres de gênese biológica semelhante à sua - seus próprios irmãos em espécie. Sim, muitos foram dentre o gênero humano que se esmeraram em construir artefatos para matar com maior eficácia, para eliminar um número cada vez maior de vítimas - e se regozijar com isso, e se sentir mais poderoso com isso. Aliás, entre os homens, freqüentemente se mede o poder pelo número de vítimas que se é capaz de produzir. Felizmente, por um lado, e, infelizmente, por outro, só o homem fabricou e lançou uma bomba como a atômica, aniquilando, em poucos segundos, centenas de milhares de seres de sua mesma espécie; só o homem se orgulha de ter construído - e utilizado - "a mãe de todas as bombas"; e ao ver a destruição resultante se sentiu detentor de super poderes, e creu ter ali cumprido a sua missão...

Não raro, parece estar ficando cada vez mais distante a compreensão de que dependemos do outro para evoluir. Senão, imaginemos o planeta Terra inteiramente desabitado: que valor teriam as jazidas de petróleo, de ouro, de diamantes etc.; que valor teriam as vastas extensões de terra? Imaginemos, agora, uma outra situação: a de um único ser humano habitando solitariamente a terra: ainda que se tratasse de um egoísta, um invejoso, um arrogante - a quem poderia ele se julgar melhor, de quem desejaria os bens, contra quem oporia a sua pretensa superioridade? Mesmo fosse ele imortal, se isolado vivesse, a sua evolução seria limitada, porque é vivendo em sociedade que o homem molda o seu caráter, desenvolve as suas habilidades, descobre as suas preferências, experimenta as mais variadas e contraditórias emoções, se surpreende com reações insuspeitadas, como heroísmo - ou covardia -, que desenvolve as boas e más qualidades: a da paciência, por exemplo, complexa por excelência, só pode ser desenvolvida e testada no convívio com outros homens - pois é muito fácil ser paciente, sozinho, no cume de um longíquo monte; difícil, para muitos - dificílimo -, é ser paciente num trânsito caótico, por exemplo. Por outro lado, a desonestidade não se revelaria se o homem vivesse solitariamente.

Infelizmente, é a nossa excessiva beligerância, o nosso apego extremado aos bens materiais, o nosso arraigado egoísmo por acumulá-los - e, principalmente, a nossa inveja, esse desejo violento de possuir os bens alheios, raríssimamente confessado - que faz surgir em nossa sociedade problemas que, em outras, ou inexistem, ou existem em escala muitíssimo reduzida. Sim, sabemos que nas várias sociedades animais existem disputas por poder, por demarcação de território, por parceiras para acasalamento, por comida etc. Mas não com a gravidade, com a escalada verificada entre os humanos.

Somos seres eminentemente sociais, e viver em sociedade tem sido crucial para todo o gênero, até porque o homem ao nascer é o mais indefeso dos animais, necessitando, por um período longo, se comparado aos outros seres, de muitos cuidados e proteção para que possa sobreviver. Mas a nossa convivência tem sido bastante marcada por graves conflitos, que clamam por solução.

Naturalmente, o estudo das personalidades que marcaram a história humana, nos dá exemplos, à saciedade, de que se há homens vis, também há os de nobres sentimentos; se há os eternos trogloditas, há os que, na vanguarda, em todos os séculos, trazem verdadeiro progresso para toda a humanidade. Destarte, exatamente por ser o homem capaz de ações extremadas - seja de impiedade, seja de misericórdia; por ser ele capaz de desenvolver idéias complexas, tanto para o bem quanto para o mal; exatamente por existir personalidades que se antagonizam - egoístas e altruístas, por exemplo - que, desde tempos remotos, o homem, esse ser pensante, vem desenvolvendo várias formas de, senão extinguir os conflitos, pelo menos diminuir a sua ocorrência ou dar-lhes uma solução que pacifique as relações sociais. As tentativas são muitas, seja através das normas da religião, da moral - seja através do Direito.

Não há discutir que o objetivo maior - primeiro e último - do Direito é o ser humano. Não seria exagerado afirmar mesmo que o homem poderia viver sem o Direito, mas o Direito jamais teria razão de existir sem o homem. Sim, pois se deve haver defesa aos bens patrimoniais é porque a um ser humano eles pertencem, visto que se a ninguém pertencessem, relegados ao abandono ficariam.

A existência do Direito depende indissociavelmente do homem. Conseqüentemente, é à proteção deste que deve sempre visar, seja no que concerne à sua existência física - compreendida aí a defesa de seu corpo, de sua liberdade, de sua integridade psíquica, de sua honra, de sua crença, de sua criatividade, de seu patrimônio; seja relativamente à sua existência ideal - que abrangeria a defesa do nascituro, e também daquele que expressou sua última vontade em testamento. Ou seja, para justificar a sua existência, o Direito deve, cada vez mais, buscar proteger, amparar o homem, numa amplitude mesmo metafísica - pois buscando a essência do ser mais ligado a ele estará e mais diretamente atenderá as suas necessidades.

Mas para atingirmos tal desideratum, urge que evoluamos, individual e coletivamente.

Evoluir é preciso, mas a evolução do universo de cada ser humano se dá na inter-relação com o universo de outro ser humano. A nossa evolução depende desse contato com a diversidade do outro. E é por essa diversidade que o novo nos é trazido pelo outro - que é nosso semelhante. E aí está o que é mais maravilhoso em toda a Criação: o outro é de nós diverso, mas é também nosso semelhante. Somos, assim,ao mesmo tempo, tão diferentes - mas tão iguais.

E é exatamente ao admitir essa igualdade, que o homem começa a admitir ao outro direitos que quer para si próprio. E, ao entender que os direitos reconhecidos ao outro beneficiariam também a ele mesmo, o homem começou a desenvolver a idéia dos direitos humanos, dos quais se originam os direitos da personalidade.