A INCONSTITUCIONALIDADE DA TRANSAÇÃO PENAL FRENTE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO CULPABILIDADE

1. DOS ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE O ESTADO DE INOCÊNCIA

1.1 O estado de inocência - avanços e retrocessos

O estado de inocência é, dentre outros princípios constitucionais do processo penal, norteador do devido processo legal, haja vista que é um garantidor penal.

O estado de inocência ou o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade foi trazido pelo Constituinte de 1988, sendo convertido em garantia fundamental do indivíduo pela Constituição Federal de 1988, no inciso LVII, do art. 5º, estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

Gomes Filho adverte que a redação do inciso LVII, do art. 5º, da Constituição Federal, foi inspirada na fórmula da Constituição Italiana de 1948: "I’ imputato non è considerato colpevole sino allá condanna definitiva", reconhecendo como sujeito "ninguém", permitindo, assim, a interpretação da garantia para além do acusado, possibilitando-se a sua aplicação em todas as fases do processo penal, inclusive no inquérito policial (GOMES FILHO, 1991, p.78).

Embora o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade no Brasil fora positivado apenas com o advento da Lei ápice de 1988, no entanto, já era bastante regular seu tratamento pela doutrina e jurisprudência brasileiras, mormente após a adesão do Brasil à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que em seu art. 11, nº 1, trazia o estado de inocência, “in verbis”:

“toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se prove sua culpabilidade, conforme a lei e em juízo público no qual sejam asseguradas as garantias necessárias à defesa.” Grifo nosso.

Vale frisar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica – traz em seu artigo 8º, que:

“toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não comprove legalmente sua culpa.” Grifo nosso.

Ressalte-se que a reconstrução do princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade não pode ser feita de forma dissociada do processo. Em verdade, é o que mais ampara as garantias do cidadão, em sede do devido processo legal. É dizer: garante ao cidadão a liberdade.

Não se esquecendo que nosso Código de Processo Penal, embora com as mudanças recentes, ainda continua afrontando o princípio básico da Lei ápice de 1988, que, sem dúvidas, privilegiou o sistema acusatório em face do inquisitivo que perpassa todo o diploma processualista. Mais um grande motivo de se pensar e agir, sempre, em prol dos princípios e das garantias constitucionais, dentre as quais, o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade.

Vale ressaltar o ensinamento de Coutinho:

“... a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo das duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitivo. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime. (COUTINHO, 2007, p. 11)

Percebe-se, portanto, os influxos autoritários do Estado Novo, a exemplo do que ocorrera na Itália fascista de Mussolini. Então, mais uma vez, há de se ter extrema primazia, hoje, quanto aos direitos e garantias constitucionais instituídos na Magna Lei de 1988, em face do direito processual, que como já ressaltado é arcaico e inquisitivo, sem nos esquecermos que a instrumentalidade é uma das formas de se chegar a um fim, e não um fim em si mesmo.

Daí a imprescindibilidade da revalorização do princípio da presunção da inocência.

2.1.1 O estado de inocência no Estado Democrático de Direito: revalorização

É imprescindível destacar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, traz em seu art. 5º, inciso LVII, a presunção da não-culpabilidade, in fine:

“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Grifo nosso

Está a privilegiar, em verdade, o estado de inocência, que, em tese, não seria o mesmo que o princípio da inocência. É bom frisar, neste primeiro momento, que o descrito no inciso garantidor não é que todo cidadão será inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, mas sim, que não lhe será imputado culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o que quer dizer, depois de se apurar em processo, com todas as garantias constitucionais, sem nos esquecermos que traz nesse bojo também o duplo grau de jurisdição, daí a necessidade de se ter o trânsito em julgado, ou seja, a possibilidade de que outros órgãos – colegiado - também avaliem se há realmente culpabilidade.

Embora esta questão semântica pudesse resvalar em real diferença, em verdade, houve uma unificação dos sentidos tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, ou seja: sendo sinônimo os princípios da não-culpabilidade com o princípio da inocência.

Para que seja ratificado o que estamos a defender, ou seja, a identificação plena e irrestrita do estado de inocência ou princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade, sendo inarredável do Estado Democrático de Direito, é que trazemos o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal – STF; in fine:

“I. Prisão por pronúncia de réu já anteriormente preso: pressuposto de validade da prisão cautelar anterior. 1. Em princípio, se tem dispensado a motivação, na pronúncia, da manutenção da prisão preventiva anterior; com maior razão, se tem considerado suficiente que a pronúncia se remeta no ponto aos motivos da prisão cautelar que mantém. 2. Essa orientação pressupõe, contudo, a validade da prisão cautelar antes decretada (precedentes): se é nulo o decreto originário da preventiva, a nulidade contamina a prisão por pronúncia que só nela se fundar. II. Prisão preventiva: motivação inidônea. O apelo à preservação da “credibilidade da justiça e da segurança pública” não constitui motivação idônea para a prisão processual, que – dada a presunção constitucional da inocência ou da não culpabilidade – há de ter justificativa cautelar e não pode substantivar antecipação da pena e de sua eventual função de prevenção geral”. (HC 82797/PR – Relator SEPÚLVEDA PERTENCE julgamento: 01/04/2003 – DJ 02-05-2003 – Primeira Turma – Unânime). Grifo nosso.

Noutro giro, necessário é salientar se realmente há uma presunção no inciso constitucional colacionado; para tanto, recorremos ao dicionário (Koogan / Houaiss, 2004, p. 676), “ipsis literis”:

“Presunção: Ato ou efeito de presumir. Suposição que se tem por verdadeira até prova em contrário. Opinião elevada de si mesmo; fatuidade; vaidade; afetação.” Grifo nosso.

Pode-se afirmar então que a presunção se trata de “júris tantum” e não “juris et júris”. Ao lhe ser questionada sobre se o estado de inocência consubstancia tecnicamente em uma presunção, a mestra Portuguesa Bolina assim assevera:

“A qualificação jurídica do princípio da presunção da inocência não parece revestir importância essencial. Ele não se justifica por questões de técnica jurídica, trata-se de um princípio estruturador do processo penal, baseado numa opção política, que resulta da convicção de que essa é a melhor forma de garantir o respeito pela dignidade humana, em sede de perseguição penal.” Grifo nosso. (BOLINA, 1994, p. 456)

E nesse viés é que a revalorização do princípio constitucional da presunção de não culpabilidade ou estado de inocência tem que ser, efetivamente, reiterado e consubstanciado em defesa do cidadão frente ao Estado punitivo.

Vale reiterar que ninguém é culpado e, antes do trânsito em julgado, considerado inocente. O sujeito é inocente até a coisa julgada. Por isso, estado de inocência.

2.1.2 Perspectiva da nova realidade de aplicação do estado de inocência, a partir do STF.

Já delineadas as etapas de consolidação do estado de inocência e sua positivação como garantia do cidadão, torna-se viável ressaltar que, hoje, em especial, no último ano de 2009, conforme o quadro colacionado abaixo, retirado do relatório anual do Supremo Tribunal Federal – STF abstrai-se que a fundamentação mais recorrente no pretório excelso para a concessão de Hábeas Corpus foi o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade.

Em outras linhas, não temos como negar que realmente o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade tenha que ter esse reconhecimento, em especial pela corte suprema do país, haja vista os horrores que ocorrem no judiciário em termos de afronta a tal princípio, quiçá então, nos juizados especiais criminais!

De modo geral, o tratamento que se tem que ter, considerando as exceções, também de cunho Constitucional, é que a regra é a liberdade e a exceção é a prisão, quando se ainda esta em tramite o processo penal.

Vamos ao exame dos fundamentos para concessão de Hábeas corpus no Supremo em 2009:

PRESTAÇÃO JURISDICIONAL 2009 - STF - Relatório de Atividades 2009

Fonte: e-Jud Criminal – Supremo Tribunal Federal

Dados atualizados até 30/11/2009

Em vista deste quadro que tanto demonstra a valorização pelo Supremo Tribunal Federal – STF - em face do princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade, não podemos nos afastar, também, do entendimento e porque não falar das permissões constitucionalmente previstas quando do cerceamento da liberdade do cidadão e que não afrontam tal princípio.

Moraes bem esclarece:

A consagração do princípio da inocência, porém, não afasta a constitucionalidade das espécies de prisões provisórias, que continua sendo, pacificamente, reconhecida pela jurisprudência, por considerar a legitimidade jurídico-constitucional da prisão cautelar, que, não obstante a presunção júris tantum de não-culpabilidade dos réus, pode validamente incidir sobre seu status libertatis. Desta forma, permanecem válidas as prisões temporárias, em flagrante, preventivas, por pronúncia e por sentenças condenatórias sem trânsitos em julgado. (MORAES, 2004, p. 133)

Um avanço espetacular que não podemos deixar de registrá-lo, bem como comemorar a revitalização do estado de inocência foi com a entrada em vigor da Lei 11.719, de 20-06-2008, que revogou o artigo 594 do Código de Processo Penal – CPP, que assim dizia:

“O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.”

Acredita-se que o intuito do legislador de 2008 foi e conseguiu avançar num ponto que já devíamos ter lançado uma pá de cal, é dizer: (re)valorizar o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade.

Gomes Filho sustenta que:

O denominado estado de inocência constitui princípio informador de todo o processo penal, concebido como um instrumento de aplicação de sanções punitivas em um sistema jurídico no qual sejam respeitados, fundamentalmente, os valores inerentes à dignidade da pessoa humana. (GOMES FILHO, 1991, p.37).

No curso do processo penal, o tratamento a ser dado ao imputado é o de inocente, pois este será assim considerado até sentença penal irrecorrível que o declare culpado. Dessa forma, há uma barreira a ser transpassada ante qualquer ato antecipado de juízo condenatório, e, ainda assim, ocorra, somente será possível se fundamentado nos elementos concretos de periculosidade do acusado, por exemplo, a análise de necessidade da prisão como medida cautelar. É dizer: o acusado somente será preso, antes de sentença condenatória definitiva, quando a medida cautelar for necessária e atender aos ditames legais. Neste aspecto do estado de inocência tem como finalidade, segundo René Ariel Dotti, dar garantia ao acusado do exercício dos seus direitos civis e políticos enquanto esses não forem direta e expressamente afetados por sentença penal condenatória com trânsito em julgado ou por medidas cautelares. (apud SOUZA NETTO, 2003, p. 155).

Seguindo, então, esse raciocínio, que não é outro a não ser o que perpassa todo pensamento, sentimento do Estado Democrático de Direito – a construção do princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade - inevitavelmente, depararemos com o outro aspecto, qual seja: o que diz respeito ao ônus da prova no momento da instrução processual, pois, devido ao estado de inocência, é inerente ao acusador o ônus da prova, não sendo, de forma alguma, imputado ao acusado tal incumbência.

Por derradeiro, insta-se esclarecer que, quando o magistrado, na avaliação das provas trazidas pelo acusador, em maior parte o Ministério Público, permanecendo a dúvida, caberá avaliar que não lhe é segura a sentença condenatória, inevitavelmente, terá que absolver. Neste sentido, havendo insuficiência de provas para a condenação, o magistrado deve prolatar sentença penal absolutória, pois no processo penal de um Estado Democrático de Direito, garantidor da liberdade, é infinitamente mais viável uma possível absolvição de um culpado a uma possível condenação de um inocente. Refere-se ao princípio in dubio pro reo que, segundo René Ariel Dotti, aplica-se "sempre que se caracterizar uma situação de prova dúbia, pois a dúvida em relação à existência ou não de determinado fato deve ser resolvida em favor do imputado." (apud SOUZA NETTO, 2003, p. 155).

3. O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

3.1 A imprescindibilidade do estado de inocência para a efetivação do devido processo legal

Vale ressaltar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 sedimentou o princípio do devido processo legal, como cláusula pétrea, no artigo 5º, inciso LIV, rememorando à “Magna Charta Libertatum” de 1215, de inarredável relevância no direito anglo-saxão. Da mesma maneira, torna-se imprescindível frisar que o artigo XI, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, garante que:

“todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

O estado de inocência é uma garantia penal que o devido processo legal penal seja conduzido de forma imparcial. Senão vejamos o que dizem os incisos constitucionais referenciados:

Diz o inciso LIV, do artigo 5º, da CRFB/88 que:

“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”

De igual forma é o inciso LVII, do mesmo artigo e diploma legal:

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”

Do primeiro inciso aqui colacionado trata-se de uma garantia processual – devido processo legal – já o segundo inciso, refere-se a uma garantia penal – estado de inocência.

É com a sintonia fina desses dois incisos do artigo 5º, da Lei Ápice de 1988, que há de se seguir o Processo Penal Constitucional, recaindo esse entendimento nos antigos brocardos: “Nulla poena sine judicio”. “Nullum iudicium sine accusatione”.

Moraes trabalha o conceito princípio do devido processo legal argumentando que:

“o devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV)...

Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.

(MORAES, 2004, pp. 124 e 125)

3.1.2 O contraditório e o estado de inocência como cerne do devido processo legal.

Para entender o devido processo legal é inarredável abarcar o conhecimento sobre o que seja o contraditório, dentro do escopo do estado de inocência, salientando o que preleciona Nelson Nery:

O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório.

(NELSON NERY, 1995, p. 122)

O estado de inocência, portanto, é um meio em que se poderá utilizar-se plenamente o contraditório, previsto no art. 5º, inciso LV, da CRFB/88, prima pela própria exteriorização da ampla defesa, resvalando na igualdade das partes em paridade de armas. Contraditório não é mera bilateralidade, é a oportunidade constante de influenciar na decisão judicial na qual será destinatário o réu, ou quando se tratar de Juizados Especiais Criminais – autor do fato.

3.1.3 O estado de inocência e a culpabilidade no devido processo legal.

O devido processo legal, sendo a garantia processual, há de trilhar e reconhecer os dogmas da culpabilidade.

A história demonstra que a culpabilidade foi inserida, paulatinamente, no Direito Penal, juntamente com a conscientização de haver necessidade de limitar o poder de punir, em face dos excessos sempre próprios de quem detém o poder.

Inevitável é compreender que o estado de inocência perpassa o princípio da culpabilidade, que assegura a não incidência da responsabilidade objetiva, no Direito Penal, como afirma Batista:

A culpabilidade enquanto princípio deve ser entendida como o repúdio a qualquer espécie de responsabilidade objetiva. Deve igualmente ser entendida como a exigência de que a pena não seja infligida, senão, em face da conduta do sujeito. (BATISTA, 2001, p. 103)

Ferrajoli também adverte:

O princípio assegura a afirmação da culpabilidade perante doutrinas e ordenamentos autoritários que tendem a debilitá-la, a integrá-la ou a substituí-la pela “periculosidade” do réu e por outros meios de qualificação global de sua personalidade, como são a capacidade de delinqüir ou a culpa do autor. [...] Num sistema garantista, não tem lugar qualquer tipologia subjetiva ou de autor elaboradas pela criminologia antropolítica ou ética, tais como a capacidade criminal, a reincidência, a tendência a delinqüir, a imoralidade ou a falta de lealdade. (FERRAJOLI, 2006, p. 448-458)

Gomes entende que a não incidência da responsabilidade objetiva, no Direito Penal, se deve ao princípio da responsabilidade subjetiva.

A doutrina (assim como a jurisprudência) ainda faz muita confusão entre o princípio da responsabilidade subjetiva e o princípio da culpabilidade. Entendida a culpabilidade no sentido puramente normativa, não mais como se conceber dolo e culpa dentro dela. Logo, se dolo e culpa foram descolados para a tipicidade, o princípio que rege essa exigência (de dolo ou culpa) é o da responsabilidade subjetiva, não mais o da culpabilidade. (GOMES, 2003, p. 114).

O autor entende que o Princípio da Culpabilidade como sendo o princípio que assegura a inexigibilidade de conduta diversa, ou seja, a vedação de punição àquele que não podia agir de modo diverso. Exemplifica que “aquele que adquire um veículo zero quilômetro e na primeira viagem quebra a barra de direção, causando morte, não pode ser responsabilizado penalmente”. Segundo ele “a simples participação material no fato não significa automaticamente responsabilidade penal”. (GOMES, 2003, p.112).

Vale ressaltar que, a culpabilidade funciona, também, como fator de graduação da pena, nos moldes do artigo 59 do Código Penal Brasileiro.

É viável perceber que tanto a culpabilidade, quanto os demais princípios tem como fio condutor o estado de inocência, e todos juntos dão consubstanciação ao princípio do devido processo legal.

4 A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS

4.1 Da transação penal

Ao enveredar-se pelo instituto da transação penal, previsto no art. 98, inciso I, da CRFB88 e também no art. 76 da Lei 9.099/95, percebe-se que, para os positivistas, apenas estar prescrito o instituto da transação penal na Constituição, leva à inviabilidade de se questionar sobre sua constitucionalidade.

Ocorre que, para deleite de muitos doutrinadores e contrariedade de outros tantos, houve na aplicação do art. 76, da lei 9.099/95, profunda ruptura de dogmas intocáveis, até 1988, no campo do direito e do processo penal. Isto devido à aplicação, reiterando, de dois institutos, ressaltando que: a transação penal, em especial, e a suspensão condicional do processo – o que diferia de tudo que havia até então.

Partindo pelo pressuposto de que o processo é instrumental e, por assim dizer, tudo que vier a operar nessa perspectiva há de se considerar a natureza e as características do direito material, em litígio pela via instrumental.

Barbosa Moreira adverte que:

... mesmo simplificada, a relação processual se desenvolve como atividade realizada, por assim dizer, intra muros, em grande parte a cargo de pessoas nas quais se presumem conhecimentos especializados. (BARBOSA MOREIRA, 1989, p.11)

Para tanto, vamos a analise do artigo 76, da Lei 9.099/1995, “in fine:”

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

§ 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I – ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II – ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente à adoção da medida.

§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.

§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

O instituto da transação penal está previsto como resultado de uma atividade iniciada pelo Ministério Público quando, conforme no artigo alhures citado, o caso for de infração penal de menor potencial ofensivo, de ação penal pública incondicionada ou condicionada (nesta hipótese se tiver havido representação e não se tiver conseguido a conciliação entre a vítima e o suposto autor do fato), não sendo situação de arquivamento, o juiz homologar proposta do órgão estatal, devidamente acatada pelo investigado, aplicando-se, por conseguinte, pena não restritiva de liberdade ou multa.

4.1.1 Da proposta efetivada pelo MP resulta em sentença condenatória ou

Homologatória?

Perfazendo o sentido inverso do procedimento que resultará na sentença a ser homologada pelo juiz, ou seja, partindo na primeira etapa do procedimento, abstrai-se que a qualidade de vítima ou de autor, no Termo Circunstanciado de Ocorrência – TCO -, quase sempre, advém de quem chegou primeiramente na Delegacia de Polícia. Daí, mais uma vez, nossa indignação, em dizer que, o agressor poderá, sim, constar como se vítima fosse, pois teve a iniciativa de primeiramente narrar sua versão ao Delegado de Polícia antes que a pessoa que realmente foi vítima o faça. O que beira a um absurdo! Mas na prática ocorre.

O juiz ao chegar à audiência preliminar, sem ao menos saber o que ocorreu, em verdade, irá passar a palavra para um membro do Ministério Público, o qual fará a proposta ao autor do fato, com todos os “ingredientes de felicitações”, contidos no artigo 76, que convenhamos: parece até uma dádiva a conceder ao autor do fato.

Rogério Lauria Tucci, (apud LEVADA, 1995), reitera que a sentença do artigo 76, da Lei nº 9.099/95, é declaratória. Assim, enxerga-se na decisão função ou efeito condenatório, a partir de então, pode-se argüir a sua constitucionalidade. Grinover diz que é “simplesmente homologatória, com ou sem eficácia de título executivo”. (GRINOVER et al, 1995, p. 134).

Prado afirma que:

Nosso pensamento é de que a sentença em questão é condenatória, de tipo sumário, e que emerge em seu devido processo legal, sem a objeção de inconstitucionalidade oposta pelos que defendem a sua não-aplicação. (PRADO, 1998, p.189)

Pelo artigo 162, § 1º, do Código de Processo Civil abstrai-se que a sentença é o ato pelo qual se põe fim ao processo, com ou sem julgamento do mérito. Podem ainda ser classificada de diversas maneiras, sendo as que meramente declaram, constituem e condenam.

Das sentenças declarativas é necessário e crucial trazer os ensinamentos de Couture, que assim nos ensina:

Sentencias declarativas, ou de mera declaración, aquellas que tienen por objeto la pura declaración da existência de um derecho. (COUTURE, 1988, p. 315)

Tem-se também a argumentação daquele relevante jurista uruguaio, Couture, que nos ensina sobre as sentenças constitutivas, dizendo que:

Em primer término,... cream um estado jurídico nuevo, ya sea haciendo césar el existente, ya sea modificándolo, ya sea sustituyéndolo por outro... Em segundo lugar, integran esta clase de sentencias aquellas que deparan efectos jurídicos de tal índole que no podrían lograrse sino mediante la colaboración de los órganos jurisdiccionales: el divorcio... etc. (COUTURE, 1988, p. 320).

Finalmente, Couture assevera sobre as sentenças de condenação, dizendo que: “todas aquellas que imponen el cumplimiento de uma prestación, ya sea em sentido positivo... ya sea em sentido negativo...” (COUTURE, 1988, p. 318).

O que bem se adere à sentença do artigo 76, da Lei 9.099/95, segundo ensinamentos esposados pelo nobre mestre Uruguaio é o de que a sentença seja realmente condenatória.

Há quem diga ainda, que seria uma sentença condenatória sumária, isto com fulcro no ensinamento de Dinamarco, é dizer:

Para se distinguir entre cognição exauriente e cognição sumária, a primeira destinada a provocar na convicção do julgador a certeza jurídica, enquanto à outra basta o convencimento sobre a probabilidade de existência dos fatos alegados pelas partes, dos quais são extraídas certas conseqüências jurídicas. (DINAMARCO, 1995, p. 144)

O problema é que nem mesmo se tem a cognição sumária nos juizados especiais criminais, no momento da sentença. O Ministério Público considera que seu ‘mister’ de oferecer uma proposta é, em verdade, uma “grande gentileza” ao autor do fato, impondo-lhe, penas que, em muitos casos são extremamente questionáveis em vista do estado de inocência.

Outro fato de que não podemos nos esquecer, vale reiterar, é que segundo a própria Constituição, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, inciso LIV), garantindo-se, assim, a jurisdicionalização da sanção penal, uma vez que, como bem sabemos, mas merece frisar que, é necessário o processo para que se imponha a pena. Nulla poena sine judicio.

Entrementes, necessário é reiterar que o Superior Tribunal de Justiça – STJ – tem entendimento de que a natureza da sentença que homologa a transação penal é condenatória, conforme se extrai do contido no REsp. nº 223.316/SP, relator: Ministro Fernando Gonçalves:

“A sentença homologatória da transação penal, por ter natureza condenatória gera coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo feito pelo autor do fato, a instauração da ação penal.” Grifo nosso.

Vale ressaltar, também, que grande parte dos juízes para que haja a homologação da sentença, exigem o cumprimento do acordo, em primeiro momento, justamente para que, não havendo a homologação, possa se instalar a ação penal. O que convenhamos: é um absurdo!

5 CONFLITO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

5.1 Princípio da consensualidade X Princípio constitucional da presunção de não culpabilidade.

Antes mesmo de adentrarmos ao conflito em si de tais princípios, ou melhor, saber se há ou não a sua existência, temos que reiterar as funções que os princípios constitucionais imprimem em nosso ordenamento jurídico, porque não falar em nosso viver, enquanto cidadãos que convivem dentro de um Estado Democrático de Direito.

Estamos a falar, em verdade, de princípios constitucionais que fazem parte de direitos e garantias fundamentais, portanto, temos que deixar bem claro qual sua destinação, é o que define Canotilho de forma bem coesa:

A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). (CANOTILHO, 1993, p. 541)

Não se pode olvidar que as constituições escritas estão diretamente ligadas a edição de declarações de direitos do homem. O que bem podemos abstrair de nossa Constituição Federal de 1988, tanto na construção dos direitos e garantias ali instituídos, quanto nos parágrafos do artigo 5º.

É de interesse maior que também esbocemos como a doutrina, hoje, classifica os direitos fundamentais, sendo de primeira, segunda e terceira gerações, pautando-se na ordem histórica temporal em que se sucederam e foram constitucionalmente reconhecidos.

O Pleno do Supremo Tribunal Federal – no MS nº 22.164/SP – Relator: Ministro Celso de Mello, em novembro de 1995, bem delineou a classificação dos direitos fundamentais, vale destacar:

“Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.”

Ferreira Filho tão bem sintetiza a matéria, argumentando que:

A primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. (FERREIRA FILHO, 1995, p. 57)

Neste viés não há como contrapor a ideia de que o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, inserido na Constituição Republicana de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVII, não esteja incluso nos direitos fundamentais de primeira geração. Ora, o princípio da presunção da inocência remete diretamente ao direito de liberdade, então, inevitavelmente estamos a tratar do primeiro ciclo de geração e quiçá, o mais importante direito fundamental frente ao Estado punitivo.

Vemos que o estado de inocência ou o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, em verdade, é um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia penal, uma vez que, não restam dúvidas, que é a tutela da liberdade pessoal.

Não há como afirmar que seja oportunizado ao autor do fato a garantia do inciso LVII, do artigo 5º, da Lei ápice de 1988, quando deparamos com o instituto da transação penal, com fulcro no artigo 76, da lei 9.099/95, adentrando-se ao mérito, indiscutivelmente, não há o mínimo de efetivação do devido processo legal.

Isto porque de imediato, já é ofertado “de bom grado e com todas as pompas” ao acusado, melhor dizendo, ao autor do fato, se aceita ou não a proposta efetivada pelo Ministério Público.

Embora, com a devida vênia, há quem defenda que exista aí, no momento da transação penal, efetivada pelo Ministério Público ao autor do fato, perante o Estado-juiz, fundamentando no artigo 98 da Constituição Federal, o princípio da consensualidade.

Prado argumenta sobre o princípio da consensualidade na transação penal, asseverando que:

Não deve assustar a idéia de transação sobre a sanção, partindo-se do correto pressuposto de que, se é pena, não cabe negociar a sua aplicação. O que ocorre, a nosso juízo, é que se transaciona tendo por objeto a qualidade e a quantidade de determinadas sanções, nunca se as penas serão ou não aplicadas, pois em se tratando de infrações de ação penal pública, cumpre ao Ministério Público propor a ação penal “tradicional”, em não havendo acordo.

O PRINCÍPIO DA CONSENSUALIDADE, de magnitude Constitucional, resolve a questão, possibilitando assim a convergência de vontades exclusivamente sobre a sanção, pois que não se negocia a realidade de se exigir a sua imposição.

(...) O PRINCÍPIO DA CONSENSUALIDADE opera em certa medida, fazendo valer – ainda que com restrições a nosso juízo indevidas – a vontade dos principais autores: o acusador oficial e o (suposto) autor do fato. (PRADO, 1998, pp. 194 e 195)

Entrementes, ainda que não concordemos que possa existir conflito entre tais princípios (princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade X princípio da consensualidade), haja vista que o primeiro, além de ser princípio fundamental de primeira geração, é ainda, uma garantia do cidadão frente ao estado penal, conquanto, não podemos admitir que haja o devido processo legal na consensualidade.

Coelho assevera que:

Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de outros que, prima facie, reputem igualmente utilizáveis como norma de decisão, o interprete fará uma ponderação entre os standards concorrentes – obviamente se todos forem princípios válidos, pois só assim podem entrar em rota de colisão – optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, lhe pareça mais adequado em termos de otimização de justiça.

Em outras palavras de Alexy, resolvese esse conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das peculiaridades do caso, em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa. (COELHO, 2002, p. 363)

Outro detalhe do qual não se pode deixar de descrever é que o princípio da consensualidade sequer é prescrito na Constituição Federal de 1988, sendo, como apontado pelo Professor Geraldo Prado que tem sim magnitude constitucional. Daí, portanto, não falar em colisão de princípios, mas sim, uma alternativa.

5.2 Aplicação de pena na transação penal

Tanto a multa como as penas restritivas de direito são consideradas sanções penais, portanto, deveria ser garantido o estado de inocência ao possível autor do fato.

Entende-se à luz da Lei Magna de 1988 que, ainda que o suposto autor do fato queira submeter-se à multa, sem o processo não poderá fazê-lo e a própria relação processual, sem requisitos mínimos para a sua eficiência e validade – prova da existência da infração penal e indícios de autoria – não será instaurada por falta de justa causa.

Para consolidação de nosso entendimento, torna-se viável trazer os ensinamentos de Mirabete:

É necessário que o agente aja com culpabilidade para que lhe seja aplicada pena.

(...) Para Luiz Vicente Cernicchiaro, a pena pode ser encarada sobre três aspectos: substancialmente consiste na perda ou privação de exercício do direito relativo a um objeto jurídico; formalmente está vinculada ao princípio da reserva legal, e somente é aplicada pelo Poder Judiciário, respeitando o princípio do contraditório; teleologicamente mostra-se concomitantemente, castigo e defesa social. (MIRABETE, 1999, p. 246)

De igual sorte, Bitencourt também nos ensina conceitos fundamentais para o entendimento da culpabilidade, em direito penal, sob três aspectos, quais sejam:

Primeiro, a culpabilidade como fundamento da pena. Há três elementos específicos no conceito dogmático de culpabilidade, sendo eles a capacidade de culpabilidade, a consciência da ilicitude e a exigência de conduta diversa. Sem um desses elementos, não se pode aplicar a pena ao sujeito. Segundo, a culpabilidade como elemento de determinação da pena, ou seja, para sua medição. Funciona como limite da pena a ser imposta, de modo que impede sua dosimetria além ou aquém do justo, demonstrando-nos a necessidade de proporção entre o delito cometido e a sanção. E, em terceiro, a culpabilidade como conceito contrário à responsabilidade objetiva. Analisa-se a existência de culpa e dolo para responsabilização penal do sujeito. (BITENCOURT, 2003, p.327)

Há, entrementes, o que os idealizadores da Lei 9.099/95, dizem sobre a pena e a culpabilidade a ser aplicada na transação penal:

“A aceitação da sanção penal não importa em reconhecimento da culpabilidade penal...”

“... a aceitação da imposição imediata da pena não corresponde a qualquer reconhecimento de culpabilidade penal...” GRINOVER et al, 2002, pp. 39 e 41)

Com o devido acatamento ante os idealizadores da Lei 9.099/95, conquanto, persiste a inquietude, de que não há o mínimo do devido processo legal no arbitramento da pena a ser aplicada na transação penal.

5.3.1 Uma nova perspectiva para aplicação da transação penal

Partindo pelo pressuposto de que muitos doutrinadores de peso, quando admitem que no instituto da transação penal haja o respeito ao estado de inocência e, por assim dizer, também ao devido processo legal, trazendo como defesa que tal instituto está instituído na Constituição Federal, em seu artigo 98, inciso I, necessário então é colacioná-lo, “ipsis literis:”

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; Grifo nosso.

É interessante observar, mais uma vez, que não está prescrito na Constituição Federal de 1988, em qual momento se dará à transação penal. E muito menos no inciso I, do “suso” descrito artigo, que poderá haver a transação sem observar os princípios e garantias constitucionais, como o estado de inocência, que serve de base para o devido processo legal.

Uma forma de se aplicar o instituto da transação penal seria dar oportunidade para se instaurar o procedimento em contraditório, ou seja, o processo e a instrução criminal, quando a defesa escolheria qual melhor opção para o réu, se aceita a proposta, ou parte para uma sentença absolutória.

6 CONCLUSÃO

A justiça penal é um mal necessário, mas se supera os limites da necessidade, resta só o mal. (ROXIN, 2002, p. 63)

Quando se está a aplicar a transação penal, a Jurisdição na verdade está impingindo ao autor do fato, por intermédio do Ministério Público que “generosamente” faz a proposta, de penas restritivas de direitos ou multas, em que, sequer é garantido ao autor do fato o estado de inocência, por conseguinte, rompendo todas as garantias constitucionais, em especial, a devido processo legal.

Como haverá paridade de armas entre as partes, no instituto da transação penal, sendo que não é oportunizada ao possível autor do fato a exteriorização da ampla defesa, resvalando no contraditório, um dos sustentáculos do devido processo legal?

No momento da transação penal não é sequer trabalhada a questão da culpabilidade do possível autor do fato e, de imediato, lhe é oferecida “com todas as pompas” a barganha de penas restritivas de direito ou multa, em face do possível cometimento de uma infração. Onde está nesse momento o estado de inocência?

Se a sentença que homologa a transação penal tem caráter condenatório, conforme alhures definido pelo próprio STJ, como então dizer que houve o devido processo legal, de um lado garantindo o processo e de outro o estado de inocência garantido o autor do fato?

Por derradeiro, tudo isso tem uma resposta: FALÁCIA!

O que serve de fundamentação para os que não vêem dessa forma a aplicação de penas com fulcro no instituto da transação penal é a positivação do instituto na Constituição Federativa de 1988, em seu artigo 98, inciso I. Entretanto, permanece a nítida e clara certeza de não exaurimento da questão.

Ora, ser operador do direito será que é somente ver a norma positivada, não lhe cabendo nenhum tipo de raciocínio interpretativo?

O jurista não deve ser somente um frio e destacado comentador de leis vigentes, deve ainda denunciar as deformações do sistema positivo e desnudar situações onde permanecem poderes extrajurídicos, e que perpetuam desigualdades, que tem recebido o nome sugestivo de “poderes selvagens”. (BOBBIO, citado por FERRAJOLI, 2006, p. 12).

Não restam dúvidas de que o instituto da transação penal como hoje é aplicado resvala, também, nesse sugestivo nome: “poderes selvagens”.

A sociedade a partir da década de 90, seja por alarde da mídia aterrorizadora ou porque realmente a criminalidade foi tomando novas dimensões assustadoras, aderiu-se a novas sistemáticas de juristas de plantão, qual seja: direito penal máximo. Solução dos problemas sociais pelo aumento de penas, tal foi o objetivo da famigerada Lei dos Crimes Hediondos, nº 8072/90, em contrapartida tivemos uma mitigação dos direitos e garantias fundamentais.

Fato idêntico ocorreu com o advento da Lei 9.099/95, em especial com o instituto da transação penal, que ao arrepio de mitigar por completo as garantias fundamentais, em especial, dando um estrangulamento no princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade.

O que vimos de ver, hoje, em muitos casos, é o Judiciário, quando da aplicação do instituto da transação penal, fazer uma parceria com o Ministério Público, fomentando a antecipação da pena aos possíveis autores dos fatos. Com isso engordam os relatórios e estatísticas tão densamente demonstradas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o que importam são os números! E as garantias constitucionais?

Portanto, como aceitar a constitucionalidade do instituto da transação penal, tendo em vista conforme demonstrado no quadro alhures do Supremo Tribunal Federal – STF – no ano de 2009, a fundamentação maior de concessão de HABEAS CORPUS foi fincada no princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade ou estado de inocência.

Por outro ângulo, sequer esse princípio tão valorizado pela corte maior do país – STF – é utilizado nos juizados especiais criminais, então, como podemos entender que haja o devido processo legal?

Como vimos de ver, no cap 3, deste trabalho, o cerne do devido processo legal é a garantia processual, enquanto o estado de inocência é a garantia penal, que juntas dão aparato necessário ao Estado Democrático de Direito. Então, se na aplicação do instituto da transação penal sequer é cogitado a efetivação do devido processo legal, como dizer que seja constitucional tal aplicação?

Ao que parece, a filosofia é simplesmente uma só. Após a autoridade policial gerar o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), remetendo-o, em seguida aos Juizados Especiais Criminais, dá-se à oportunidade para o possível autor do fato em “barganhar” a pena com o Ministério Público, é pegar ou largar. Se pega carrega consigo o autor do fato, todas as “benesses” com “fogos de artifícios”. Se não pega, ou melhor, se não aceita a proposta, terá que enfrentar os “duros e escuros” caminhos do processo. Como se isso não fosse uma garantia do cidadão, do possível autor do fato.

Nesse afã de buscar uma resposta rápida para a sociedade, que muitas vezes se alimenta do sensacionalismo e dos “faz de conta”, que o Ministério Público vai transacionando e o Judiciário homologando, e levando para as ruínas as sagradas garantias constitucionais, em especial, o estado de inocência que perpassa todo o devido processo legal. É dizer: a garantia penal no devido processo penal.

Tudo em nome de uma pseudo-justiça. Pseudo, pois não traz em seu bojo, o mínimo das garantias que o cidadão teria frente ao Estado punitivo.

Vale ressaltar que em relação à culpabilidade do autor do fato sequer é verificada. Há situações de inexigibilidade de conduta diversa e que, levados aos Juizados Especiais Criminais, faz-se a “competente” transação penal. Quiçá quando se tratar de crimes de perigo presumido. Nesse viés tem-se a jurisprudência do STJ. Acórdão relatado pelo Ministro do STJ, Vicente Cernichiaro:

A infração penal não é só conduta. Impõe-se, ainda, o resultado no sentido normativo do termo, ou seja, dano ou perigo ao bem juridicamente tutelado. A doutrina vem, reiterada, insistentemente renegando os crimes de perigo abstrato. Com efeito, não faz sentido punir pela simples conduta, se ela não trouxer, pelo menos, probabilidade (não possibilidade) de risco ao objeto jurídico. [...] A relevância criminal nasce quando a conduta gerar perigo de dano. Até então, a conduta será atípica. (REsp 34.322-0, 6ª RE. Caso de contravenção penal – art. 32 – falta de habilitação para dirigir veículo em vias públicas, publicado em 02/08/1993. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA)

E quantas são as propostas aceitas, pelos possíveis autores dos fatos, quando do instituto da transação penal, em que os fatos foram tão somente condutas, sem portanto, a configuração de uma infração penal?

Ressalta-se, mormente, que quando se trata da positivação do instituto da transação, tem-se que levar em conta que a Constituição não previu quando seria o momento da aplicação da Transação Penal. Daí, nós que temos a pretensão de não somente ver e ler a lei pura e simplesmente, mas tentar interpretá-la sob os dogmas constitucionais garantidores do cidadão em face do Estado opressor, indagamos que: diante do que ocorre hoje, é uma FALÁCIA dizer que o instituto da transação penal é constitucional.

Não é que cada crime tenha que ter um processo, mas que cada processo penal seja perpassado pelo estado de inocência e, por conseguinte, dentro do devido processo legal.

Dias Salienta que a atitude de legalidade, que delimita os contornos do direito penal, não significa “exigência de que a cada crime cometido e esclarecido corresponda, por necessidade, um processo penal”. (DIAS, 2000, p. 25)

Bem de se ver que o fio condutor da exposição do pensamento acima tem como soluções que representem a assunção do papel do direito punitivo como “ultima ratio”, consagrando o princípio da mínima intervenção.

Entretanto, há de se ter uma diferenciação entre intervenção mínima e minimizar as garantias em prol da rapidez na solução dos conflitos penais, e mais: não se pode coadunar com tal assertiva de que para punir minimamente o Estado possa mitigar e aniquilar as garantias constitucionais do processo. O que beira a um tremendo retrocesso.

Em outras palavras: quando não há uma avaliação da culpabilidade, quando há um total cerceamento do contraditório, quando há uma total falência do estado de inocência, aí sim, estamos a falar de transação penal.

Portanto, acreditamos que a aplicação do instituto da transação penal foi e está sendo mitigadora das garantias do cidadão, haja vista as incompatibilidades frente ao estado de inocência e aos princípios norteadores do devido processo legal.

Sedimentando o conceito de processo apregoado por Fazzalari que é o procedimento em contraditório (FAZZALARI, 1992, p.437). Então, no instituto da transação penal sequer é oportunizado o contraditório, conquanto, não se pode dizer em processo. Daí a sua total inconstitucionalidade!

Outrora, também, a lição do eterno mestre do direito – Rui Barbosa – nunca foi tão propícia aos presentes desses dias tumultuosos da justiça brasileira - Juizados Especiais Criminais – Rememorada por Jardim que tão bem recordou do antigo (atualíssimo) mestre:

O paciente pode, até, não requerer a liberdade; pode, resignado ou indignado despreza-la.

É indiferente. A liberdade não entra no patrimônio particular, como as cousas que estão no comércio, que se trocam, vendem ou compram; é um verdadeiro condomínio social; todos o desfrutam, sem que ninguém o possa alienar; e se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica. (JARDIM, 2001, p. 211).

O que diria Rui Barbosa sobre a transação penal em face do princípio da presunção constitucional da não culpabilidade... com a coragem que lhe era inerente, certamente defenderia o estado de inocência e, em contrapartida diria que não vislumbrava nenhuma constitucionalidade na forma como hoje é praticada a transação penal.

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Clovis RF
Enviado por Clovis RF em 02/09/2010
Código do texto: T2475254
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