O aborto é crime no direito brasileiro?

Devido ao debate político, veio à tona mais uma vez a discussão sobre a descriminalização do aborto. Um dos candidatos fez questão de apresentar como uma das propostas a intenção de modificar o Código Penal para retirar o crime do quadro dos delitos, legalizando-o. A principal justificativa apresentada parece residir nos altos índices de mortalidade de gestantes não adequadamente atendidas quando em situação de abortamento. Se o aborto não constituísse crime, tudo seria resolvido. Todavia, vendo a repercussão negativa de seu gesto para a campanha, imediatamente voltou atrás.

Que demonstra isso? Que o Brasil e seus integrantes são contra o aborto? Será que o mau atendimento de gestantes se refere especificamente ao aborto? Qual tipo de aborto é proibido pela lei?

Diante de tais questões, ao que parece, o tema tem de ser tratado com bastante cautela.

Em primeiro lugar, é preciso delimitar o tipo de aborto que é previsto como crime no direito brasileiro. Talvez seja questionável a idéia de que o aborto é crime em nosso ordenamento jurídico.

A afirmação parece loucura, mas antes de mais nada, deve-se classificar o aborto conforme sua motivação, uma vez que o dolo faz parte integrante do tipo penal.

Dentro de tal perspectiva, pode-se verificar que existem, no aspecto legal, quatro modalidades de aborto: o natural; o necessário; o sentimental e o ilícito.

O aborto natural é aquele que ocorre por circunstâncias biofisiológicas, sendo involuntário à gestante, que, na maior parte dos casos, pretendia a continuidade da gravidez. Este caso por óbvio não tipifica o crime de aborto.

Necessário é o aborto assim chamado quando praticado se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, a não ser com o sacrifício do feto. Embora a lei diga simplesmente que não será o fato punido, na verdade, se está diante de uma causa excludente de antijuridicidade, a qual implica dizer que não há crime, pela ausência de um de seus elementos constitutivos.

A interrupção da gravidez é realizada visando-se salvar a vida da gestante, ou melhor, preservar a saúde da gestante, o que hoje implica em condições físicas e psicológicas. Um exemplo disto, dado por interpretação mais ampla da lei, é o caso do chamado aborto do anencéfalo, cuja justificativa pode ser fundada em tal circunstância. Aqui pode estar presente uma excludente de ilicitude, pois a intenção não é prioritariamente interromper a gravidez, mas fazê-lo motivado pela preservação da integridade da gestante. O aborto necessário, denominado ainda terapêutico ou curativo, não configura crime por expressa previsão legal.

O aborto sentimental é aquele que pode ocorrer quando a gravidez tiver origem num ato de violência contra a mulher, vítima neste caso de crime contra sua liberdade sexual, configurado basicamente pelo estupro. A lei penal em consideração a integridade psicológica da mulher permite o aborto, dizendo que ele não é punível. Verifica-se ainda a ausência de antijuridicidade como no caso anterior e o fato não é considerado criminoso. É possível também se considerar a justificativa quanto ao dolo, pois a motivação não é a interrupção isolada da gravidez, porém antes, a preservação da estrutura sentimental da gestante, a qual não pode ser submetida, como regra, a um profundo esforço de manutenção de uma vida cuja origem é espúria e indesejável. O aborto sentimental recebe a denominação de humanitário, moral ou ético, em face de tentar diminuir os reflexos negativos da violência à recuperação da mulher. E não constitui crime.

As três modalidades acima não tipificam qualquer ilícito penal e, assim, podem ser atendidas as gestantes que se apresentarem para socorro em situação de abortamento, sem qualquer implicação de natureza penal.

O único tipo ilícito de aborto é aquele provocado pela gestante ou por terceiro, seja médico ou não, com ou sem consentimento, motivado por outra circunstância que não as acima tratadas. Criminoso é o aborto provocado sem finalidade terapêutica ou sentimental, sem visar proteção da vida física ou moral da gestante. Ele é gerado pela insegurança, pelo medo, pela irresponsabilidade, pela falta de informação e pela falta de apoio individual e social. Enfim, sua causa não é natural, terapêutica ou humanitária, mas de natureza sócio-econômica.

A gestante, nesta situação, encontra-se isolada, sem amparo, sem perspectivas, sem horizontes, abandonada mesmo pelo companheiro que, em momentos anteriores, sob a proteção da intimidade, mediante suaves carícias, prometia-lhe a luz das mais distantes estrelas.

Diante de tal quadro não sabe ela qual resposta oferecer e busca a irresponsável via criminosa, porque ser responsável não é comportar-se de acordo com um quadro ético-jurídico predeterminado, mas sim saber qual resposta apresentar diante de uma dada situação. Porém, a gestante em sua posição de abandono não enxerga caminhos. E a saída mais simples é eliminar a inocente vida potencial que se apresenta como a fonte do problema. Então se tem o aborto sócio-econômico. Este é o aborto criminoso.

Neste caso, o aborto é praticado justamente por faltarem condições de atendimento à gestante, não porque o aborto é proibido, mas porque faltam condições de amparo social a uma possível futura mãe.

Falta o que todos os governos falsamente dizem que pretendem fazer: falta o respeito ao cidadão, no caso cidadã, que na condição de gestante não tem suporte assistencial algum dos entes públicos, para poder decidir o que fazer de seu futuro, com uma nova vida em seu ventre.

Ausente está uma estrutura de formação que aponte horizontes para a mulher que foi abandonada em sua situação de gravidez. Falta amparo social para demonstrar que existem outros recursos e que o amanhã não será obscuro.

Falta vergonha do governo e da sociedade para estender a mão a quem efetivamente precisa de apoio, duas vidas em jogo num só corpo.

Cercada de todas as condições, a mulher teria efetiva liberdade para tomar decisões ponderadas. Aí haveria a possibilidade do exercício de uma escolha. Então a mulher seria livre.

Sem qualquer condição de amparo e de futuro, a liberdade é uma desculpa para mascarar instrumentos perversos de dominação da nossa sociedade. Afinal, é sempre mais fácil varrer a sujeira para debaixo do tapete – mesmo que seja um feto num depósito de descarte.