A Linguagem Jurídica

Prólogo:

Atribui-se a um filósofo ter dito: “Até com um tolo podemos aprender. Como? Fazendo o contrário”.

Por estranho que pareça já encontrei nos autos de uma ação penal, o seguinte passo: “O acusado agiu com requinte de perversidade. Além dos golpes com que perfurou várias vezes o corpo da vítima, ainda lhe decapitou a cabeça” (SIC).

Se quem escreveu isso tivesse estudado Latim, ou, se o estudou, tivesse boa memória, ou fosse menos descuidado, saberia que “caput”, “capitis” significa a parte superior do corpo, a cabeça. Logo, saberia que decapitar é cortar a cabeça. Esse fenômeno em que se vê o esquecimento etimológico ocorre noutros casos, como em “caligrafia bela”, “ortografia correta”, “hemorragia de sangue”, “erro ortográfico”, “acordo amigável” (esse erro é comuníssimo e altamente reprovável, de lascar).

Ora, caligrafia já quer dizer grafia bonita, bela; ortografia significa grafia correta; hemorragia não poderia ser de outra coisa senão de sangue. Erro ortográfico é paradoxo, pois significaria erro de escrever ou grafar corretamente. Acordar é concordar, harmonizar, resolver consensualmente uma divergência de propósitos ou de interesses.

NÃO EXISTE e NUNCA VI acordo inamistoso! Ah! Os que falam ou escrevem desse modo poderão dizer: "Não estou errado, pois reforcei o que quis dizer". Essa defesa é frágil e não deverá prosperar entre os mais dedicados estudantes, bacharéis, advogados, promotores, juízes etc.

Outra grande confusão se faz (estudantes fazem) com os termos "Citação", "Intimação" e "Notificação". Vejamos o sentido próprio de cada uma: Citação é o chamamento do réu (ré) a juízo para vir responder aos termos da ação, ou da execução; intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo; notificação é o ato pelo qual se leva ao conhecimento de alguém o despacho ou decisão do juiz, pelo qual este ordena que faça, ou deixe de fazer alguma coisa.

Claro que para o leigo e povão isso não tem a menor importância, mas para um operador do direito não fica nada bem ser tão descuidado a ponto de comprometer sua (dele) formação acadêmica e competência funcional fazendo confusão quando fala ou escreve seus arrazoados. Quando promotores, juízes e escritores se reunem em uma tertúlia a zombaria com esse ou aquele profissional desidioso é assunto não postergável.

Conheço excelentes advogados que relutam em se reciclar. Não fazem cursos. Não participam de simpósios. Não estudam. Não compram livros. Não atualizam seus conhecimentos por meio de pesquisas na internet por desídia ou falta de dinheiro para fazer "upgrade" (atualização) de um computador, impaciência, ou decisão malsinada.

Esses e demais graduados de outros cursos superiores quase sempre mantêm os diplomas afixados às paredes de seus escritórios, consultórios ou residências, e se ufanam dessa conquista gloriosa de um passado morto.

No entanto, desmotivados, decepcionados, infelizes ou sem o devido interesse no próprio aperfeiçoamento profissional, facilmente caem no descrédito dos familiares, amigos e assemelhados quando se vêem e se atrapalham diante de uma exposição de razões, argumentos que apelam para o senso comum, alegações necessárias, justificativas eficazes. Isso é lamentável e improficiente!

Observa-se hoje, em flagrante contraste, petições, requerimentos, arrazoados, sentenças, acórdãos, inçados de erros crassos, palmares de grafia, de concordância, de regência, de colocação etc., e, ao mesmo tempo, recheados, de forma pedante, de neologismos e estrangeirismos dispensáveis.

Esses profissionais normalmente NÃO SÃO capazes de identificar as diferenças existentes entre muitas expressões parecidas (quase iguais). Quer um exemplo? Frequente é o confundir “despercebido” com “desapercebido”. Todavia, embora alguns filólogos defendam a não existência de diferença, não são sinônimos. DESPERCEBIDO quer dizer - Desatento, distraído, desacautelado, DESAPERCEBIDO significa: que não foi percebido, notado.

Esses mesmos profissionais dizem entre risos zombeteiros que os juízes apenas lêem, em uma petição, sumariamente, os sete incisos do artigo 282 do CPC (Dos requisitos da petição inicial).

Falam, ainda, que: "verso" e "anverso"; "Em vez de" e "Ao invés de"; "Deferir" e "Diferir" são expressões semelhantes e que "Sua excelência tem a obrigação de interpretar bem e sem prejuízo de quem busca a proteção da Lei". Afirmam, ainda, "o que disso passar é erro material e não traz nenhum prejuízo processual".

Infeliz engano! O profissional que assim pensa ou age esquece da força descomunal do artigo 295 do CPC (Do indeferimento da Petição Inicial). Ter uma PI indeferida por ser inepta é uma das gafes que pode cometer um advogado. Aliás, outros três inimigos do profissional do direito são: Prazo, prova e cliente estressado que deseja a qualquer esforço, nem sempre por maior custo, um melhor resultado.

Ora, para um advogado criterioso “Matar à fome” (com crase) é totalmente diferente de “Matar a fome” (sem crase). Veja que na primeira expressão “Matar à fome” é o cometimento de um assassinato cruel no qual se privou alguém de alimento. Houve o falecimento da vítima por inanição. Já “Matar a fome” é o fato de alguém ter saciado sua vontade de comer alimentando-se bastante, fartamente.

Quase sempre podemos observar o uso das expressões “suplicante” e “suplicado” nas petições iniciais elaboradas por advogados experientes e recém-formados. Atenção: Não estou afirmando que haja erro na utilização dessas expressões. Para alívio dos advogados à moda antiga não se tem notícia de uma PI ter sido indeferida, considerada inepta, pelo uso desses termos antiquados.

Trata-se de expressões arcaicas e incabíveis na moderna terminologia jurídica, e que designava aquele que, em Portugal, dirigia seu recurso à Casa da Suplicação. Melhor seria utilizar os adjetivos: “Requerente”, “requerido”, “autor”, "postulante" etc.

Convém informar que a Casa de Suplicação é bem antiga, senão vejamos:

O Supremo Tribunal do Reino chamou-se, até ao século XIV, Cúria do Rei, Tribunal da Corte ou Tribunal da Casa do Rei, e acompanhava o monarca nas suas deslocações. Esta é a explicação dada na página da Torre do Tombo, o maior arquivo de Portugal.

Nas Ordenações Afonsinas o tribunal supremo de Portugal ainda é designado por Casa da Justiça da Corte. Mais tarde, sob a influência do direito romano passou a designar-se por Casa da Suplicação. Foi sendo progressivamente estruturado atendendo às matérias, nomeadamente cível e crime.

Sob D. João I de Portugal, foi criado o cargo de regedor das justiças da Casa da Suplicação e de regedor e governador da Casa do Cível de Lisboa. No dia da "festa do Espírito Santo" de 1566 foi feito e assinado o compromisso e regimento da Confraria do Espírito Santo da Casa da Suplicação, registrado no livro 6 da Casa da Suplicação.

Por carta régia de 27 de Julho de 1582, Filipe I de Portugal extinguiu a Casa do Cível de Lisboa e deu regimento à Casa da Suplicação, que fixou na capital, tendo ficado com as competências da Casa do Cível.

Em 1584 a Casa da Suplicação estava situada na Ribeira.

Com a transferência da Corte para o Brasil em 1808 em decorrência das Guerras Napoleônicas, foi criada a Casa da Suplicação do Brasil, separada da Casa da Suplicação de Portugal, com competência para conhecer, em última instância, dos processos originados no Brasil, que até então estavam sujeitos a recurso para a Casa da Suplicação de Lisboa.

Mas, por que estou neste intróito escrevendo sobre a gênese da Casa da Suplicação? Exatamente para motivar os advogados neófitos e mais antigos a abandonarem as obsoletas expressões: “Suplicante” e “Suplicado” em suas petições iniciais e/ou recursos impetrados e usarem expressões mais modernas. Aliás, não é demais lembrar que o Direito é dinâmico e evolutivo.

O estudo da linguagem jurídica é um dos momentos ricos de percepção da língua como instituição social, enraizada na tradição cultural que ela reproduz, transmitida de geração após geração.

A linguagem jurídica é também via de acesso à compreensão de que a cultura transmitida pela língua revela uma “visão de mundo” que possui uma tendência à conservação linguística.

Na sociedade brasileira, o discurso jurídico, em especial, foi muito influenciado pela retórica tradicional, e, por isso, continuou resistente às transformações. Essa resistência se torna perceptível, por exemplo, na permanência do uso dos brocardos jurídicos incluídos nos discursos orais ou escritos.

É sabido que a linguagem permeia todos nossos atos, em todas as instâncias da realidade social e que, por meio dela, se podem perceber manifestações de poder entre os indivíduos que deixam transparecer a hierarquia existente na sociedade.

A linguagem do direito é matéria privilegiada para a percepção do universo hierárquico. Felizmente, há manifestações de inquietação e inconformismo diante do conservadorismo da linguagem jurídica.

Na atualidade, são divulgados na imprensa jornalística debates que têm colocado no banco dos réus as velhas formas vocabulares dos profissionais do direito. Há, é claro, os defensores desse conservadorismo, enquanto advogados e juízes com visão crítica e renovadora já propõem a superação de uma tradição que ainda resiste às mudanças.

No direito, assim como em outros setores do conhecimento, desenvolve-se uma linguagem particular, específica, onde se guardam palavras e expressões que possuem acepções próprias. No mundo do Direito, a palavra é indispensável. Todos empregam palavras para trabalhar, mas, para o jurista, elas são precisamente a matéria-prima de suas atividades.

As leis são feitas com palavras, como as casas são feitas com tijolos. O jurista, em última análise, não lida somente com fatos, diretamente, mas com palavras que denotam ou pretendem denotar esses fatos. Há, portanto, uma parceria essencial entre o Direito e a Linguagem.

O profissional do direito, enquanto ciência jurídica busca a univocidade em sua terminologia, convive com um número limitado de palavras polissêmicas. Exemplo clássico é o termo Justiça que tanto exprime a vontade de dar a cada um o que é seu, quanto significa as regras em lei previstas, e ainda, o aparelhamento político-jurídico destinado à aplicação da norma do caso concreto.

Naturalmente que, à medida que o nível de especialização aumenta mais complexo torna-se o vocabulário utilizado, ampliando, desse modo, o espaço que separa a linguagem comum e consequentemente, torna-se difícil, para os que não estão no meio jurídico, compreender as matérias tratadas nestes tipos de textos.

Quando o advogado recebe o cliente e escuta sua consulta, responde com palavras. Se precisar elaborar um contrato, procuração ou estabelecer um acordo, é com palavras que o faz. O mesmo sucede quando atua em defesa de seus clientes, nas diversas instâncias do Judiciário.

Clareza, concisão, precisão, formalidade, e impessoalidade são fundamentais na linguagem jurídica. Tais elementos não são sinônimos de rigorismo formal, de tal modo que a linguagem forense esteja enclausurada num formalismo vocabular específico cujo acesso somente seja permitido a iniciados.

De tais considerações cabe deduzir que todo jurista deve ser um bom gramático, porquanto a arte de falar e escrever com propriedade é noção elementar de gramática. Ao redigir, ordenam-se ideias e acontecimentos. Quanto melhor conhecermos o necessário instrumento para isso – as palavras –, com maior precisão nos expressaremos e comunicaremos.

A palavra está, aqui, entendida em tudo que lhe diz respeito: seu significado preciso, sua forma correta e sua apropriada inserção em estruturas sintáticas simples e complexas. Vejamos um exemplo de descuido gramatical grosseiro.

Quando o festejado jurista e escritor Sílvio de Salvo Venosa, por quem nutro profundo respeito e distinta consideração escreveu e publicou a definição de casamento nuncupativo ou “in extremis” cometeu ou foi induzido a cometer um lapso gramatical (assim entendem alguns professores de nosso idioma pátrio e/ou filólogos) que não é de seu feitio:

ASSIM ESCREVEU O JURISTA VENOSA:

“Em duas oportunidades, o Código permite que as formalidades do casamento sejam simplificadas. Ocorrendo doença grave de um dos nubentes e quando estiver sob iminente risco de vida...”(SIC) - (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. 6. v, página 104, 3ª ed., São Paulo: Atlas S.A., 2003).

Ao usar a expressão "risco de vida" teria cometido um lapso o notável escritor VENOSA? A mesma expressão ocorre em outras páginas do mesmo volume.

Ora, Verificando nossa legislação – apenas no que tange aos códigos, sem busca na legislação esparsa – podem-se afirmar os seguintes aspectos: I) não se encontrou nenhuma referência à expressão risco de morte; II) foram encontrados apenas três exemplos da expressão risco de vida, todas elas no recente Código Civil de 2002: a) "Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica" (CC, art. 15); b) "Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau" (CC, art. 1.540); c) "O nubente que não estiver em iminente risco de vida poderá fazer-se representar no casamento nuncupativo" (CC, art. 1.542, § 2º).

Com tais ponderações, que parecem ser de total oportunidade, é possível afirmar que as duas expressões são vernáculas e corretas, e ambas trazem o mesmo conteúdo semântico. Pessoalmente prefiro utilizar: 1) Risco de morrer; 2) Risco de perder a vida; 3) Risco de morte.

Além disso, sem exageradas preocupações de ordem gramatical, em ambas se pode ver a ocorrência de uma elipse: I) em risco de vida, está claro que o significado é o risco de (perder a) vida; II) em risco de morte, não menos certa é a acepção do risco de (encontrar a) morte.

O caro leitor haverá de achar que estou de brincadeiras, ao trazer um nome feio (nuncupativo) para este texto. Desta vez, nome feio com atestado e tudo. Mas o nome é apenas pouco usual. Casamento nuncupativo é aquele realizado quando um dos contraentes está em iminente risco de morte e não há tempo para a celebração do matrimônio dentro das conformidades previstas pela Lei civil.

Nuncupativo vem do latim “nucupativu” refere-se ao ato nominal, vocal, oral, de designar solenemente. Para o reconhecimento desta forma de união é necessário que haja, além da comprovação da urgência, a presença de duas testemunhas mais a autoridade local, ou quando houver a ausência do juiz de paz torna-se necessária o comparecimento de seis, ou mais, testemunhas que deverão dirigir-se a autoridade mais próxima no período máximo de 5 (cinco) dias para validar a união.

Art. 1.539 do Código Civil – “No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente do ato irá celebrá-lo onde se encontrar o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante duas testemunhas que saibam ler e escrever. (SIC).

§ 1o A falta ou impedimento da autoridade competente para presidir o casamento suprir-se-á por qualquer dos seus substitutos legais, e a do oficial do Registro Civil por outro ad hoc, nomeado pelo presidente do ato. (SIC).

§ 2o O termo avulso, lavrado pelo oficial ad hoc, será registrado no respectivo registro dentro em cinco dias, perante duas testemunhas, ficando arquivado”. (SIC).

Art. 1.540 do Código Civil – “Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida , não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau”. (SIC).

Conforme a imposição da Lei nº 6.015/73 e do artigo 1.540 do Código Civil. O casamento nuncupativo é uma das maneiras de assegurar ao cidadão o seu direito à união com as garantias previstas pelas leis nacionais.

AQUI CABE UMA OBSERVAÇÃO OPORTUNA

Devemos desconfiar sempre de quem se diz sábio o suficiente para NUNCA ERRAR quando redige ou fala em Português. Sabe-se que Português é um idioma difícil, complexo e de um vocabulário vastíssimo!

CONCLUSÃO

A missão principal do jurista é contribuir para a realização da justiça. E a este propósito não somente não se opõem antes para ele contribuem os meios empregados e as formas desses meios.

Fundo e forma vão tão intimamente ligados como espírito e corpo. O fundo – o sentido de justiça de uma decisão, por exemplo – pode vir determinado, ou mais exatamente fixado, pela forma sob a qual se apresenta. Na decisão, a realidade da justiça está objetivada nas palavras do magistrado.

Afirma-se – e é comumente aceito – que a linguagem jurídica é uma linguagem tradicional, ao contrário daquela das ciências aplicadas, uma linguagem revolucionária, inovadora, que constantemente incorpora novos termos e expressões.

Ocorre que o nosso Direito basicamente foi escrito em latim, língua precisa e sintética. O Direito, pela sua própria origem, tem, assim, uma linguagem tradicional; mas ele tem, ao mesmo tempo, uma linguagem revolucionária, em constante evolução, consequência da necessidade urgente de acudir a novas realidades e a soluções adequadas a estas.

O desenvolvimento da técnica jurídica fez com que surgissem termos não-usuais para os leigos. A linguagem jurídica, no entanto, não é mais fechada, para o leigo, que qualquer outra linguagem científica ou técnica. Aí estão, apenas para exemplificar, a Medicina, a Matemática e a Informática com seus termos tão peculiares e tão esotéricos quanto os do Direito.

Os pareceres, sentenças, petições, etc., são escritos de uma forma tal que se torna impossível à compreensão desses textos por alguém que não faça parte do meio jurídico. E esse parece ser mesmo o propósito dos produtores desses textos: dificultar a compreensão para quem não faz parte da casta jurídica.

Se essa afirmação assim categórica parece um exagero, então seria bom que se apresentassem argumentos realmente convincentes para justificar o uso pelos meios jurídicos de uma linguagem extremamente barroca e recheada de expressões em latim ou em outras línguas estrangeiras, quando a situação requereria exatamente o contrário: uma linguagem o mais simples e objetiva possível, para que qualquer usuário do sistema judiciário possa compreender.

Não há, por exemplo, qualquer razão plausível que explique o uso na Constituição, nas leis e nos demais textos jurídicos, de expressões latinas como "ex tunc", em vez de efeito retroativo; "ex nunc", em vez de a partir de agora; "ex expositis", em vez de do que ficou exposto; "ex delicto", em vez de em razão do delito; "habeas corpus", em vez de direito à liberdade; "ad hoc", em vez de substituição temporária; “in loco”, em vez de no local; "jus sanguinis", em vez de direito de sangue (direito de punir); e tantos outros usos igualmente pedantes, a não ser o exercício de uma linguagem que possa separar iniciados e não-iniciados, recém-graduados e advogados experientes, mas, muitas vezes, extremamente acomodados.

Na promoção da separação fundamental entre quem faz e quem não faz parte do mundo jurídico, entra em ação um conjunto de elementos, que são tão mais eficazes quanto menos são percebidos como aparatos de segregação.

O que se critica, é o rebuscamento gratuito, oco, em um expediente muitas vezes providencial para disfarçar a pobreza das idéias e a inconsistência dos argumentos. O Direito deve sempre ser expresso num idioma bem-feito; conceitualmente preciso formalmente elegante, discreto e funcional. O atual Código Civil, de 2002, lamentavelmente, deixa, em vários momentos, a desejar em matéria de linguagem correta, clara e precisa.

Assim, o uso das formalidades excessivas dos ritos judiciários, o tratamento de doutor, exigência obrigatória para se dirigir a qualquer membro do universo jurídico, entre outros elementos, atuam em conjunto para reforçar sempre a ideia de que o universo jurídico é mesmo uma realidade à parte em relação ao resto da sociedade.

Além do mais, e principalmente, esses elementos contribuem de forma significativa para criar uma absurda barreira entre o mundo do direito e as pessoas comuns, em potencial todos os usuários da prestação jurisdicional.

Nesse processo de violência simbólica que "protege" o mundo jurídico do acesso de grande parte da população nada é tão eficaz quanto à linguagem jurídica. Trata-se da maneira específica que magistrados, advogados, promotores e outros do ramo do direito têm utilizado a linguagem e que, a despeito de qualquer argumento a favor, só tem servido para negar o acesso ao universo jurídico à maioria da população do Brasil.

A linguagem serve para comunicar, mas há casos, e parece ser este o caso da linguagem jurídica, em que ela serve exatamente para não comunicar. Na maneira de escrever dos meios jurídicos há todo um cuidado em moldar a linguagem e ornamentá-la de uma maneira tal que ela passa a ser um código, cuja compreensão está ao alcance apenas do pequeno grupo que faz parte do universo jurídico.

O Poder Judiciário e o Ministério Público passam por uma onda de transformações que, visam torná-los mais eficientes, transparentes e democráticos; para isso foram criados, por exemplo, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça. Seria um grande começo se a questão da linguagem jurídica fosse colocada na pauta desses órgãos como um problema a ser solucionado.

Existe uma Campanha pela Simplificação da Linguagem Jurídica, utilizada por magistrados, advogados, promotores e outros operadores da área do Direito têm como principal objetivo sensibilizar esses profissionais quanto à importância do uso de um vocabulário mais simples, direto e objetivo para aproximar a sociedade da Justiça brasileira e da prestação jurisdicional.

Resistências não vão faltar, já que além de pressupor uma redivisão de poder, a democratização do acesso à Justiça pela transformação da linguagem jurídica também acabaria mexendo com a vaidade intocada de muitos membros antiquíssimos desse universo.

Sendo assim, conclui-se que a linguagem forense deve apresentar-se clara, simples, correta, liberta de exibicionismo, tendo como alvo a comunicação técnica do que se pretende transmitir, podendo assim difundir o conhecimento jurídico entre todos.

Sobre os profissionais do Direito recai uma cobrança maior no trato com a gramática, seja por ser seu instrumento de trabalho, pela tradição que carreira jurídica tem entre nós ou em razão do desgaste porque passa a profissão nos dias atuais.

Claro que da gramática não se cairá na gramatiquice. A linguagem dinâmica, funcional e realista. As questões técnicas não podem fazer esquecer que a luta pelo Direito gira em torno de problemas humanos.

A linguagem do jurista deve ser instrumento a serviço da eficaz prestação jurisdicional. Ela visa a fins utilitários, antes de tudo, e não a fins artísticos.

Quem lida com o Direito, em suas diferentes concretizações, deve aspirar a expor o conteúdo mais exato na expressão mais adequada. E isso implica uma convivência definitiva – harmônica e amorosa – com a Linguagem. Direito e Linguagem constituem um par indissociável.

O Direito deve sempre ser expresso num idioma bem-feito; conceitualmente preciso formalmente elegante, discreto e funcional. A arte do jurista é declarar cristalinamente o Direito.

Para os que não têm nenhum compromisso com a democratização do acesso à Justiça é mesmo interessante que o universo jurídico continue falando pra si mesmo. Afinal de contas a justiça é cega e tampouco faz questão de ser compreendida ou enxergada por seus discípulos e necessitados.

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NOTAS REFERENCIADAS E BIBLIOGRÁFICAS

- Nova Gramática da Língua Portuguesa Para Concursos - Nova Ortografia - 4ª Ed. 2011 - Autor: Bezerra, Rodrigo

- Gramatigalhas;

- Dicas de Português – Do professor e poeta Dílson Catarino;

- BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.

- BULHÕES, Eliane Simões Pereira.

- MEDEIROS, João Bosco; TOMASI, Carolina. Português Forense: a produção do sentido. São Paulo: Atlas, 2004.

- SABBAG, Eduardo de Moraes. Redação forense e elementos da gramática. São Paulo: Premier Máxima, 2005.

- VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. 6. v, 3ª ed., São Paulo: Atlas S.A., 2003;

- Notas de Aulas do Autor - Pós-Graduação.