Discussão jurídico-penal sobre o
direito de deixar ou não deixar nascer

Síntese e adaptação de texto contido em:

MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Orientador: Professor Vicente de Paulo Barretto. Aprovada com distinção. Não publicada.

CÓDIGO PENAL DE 1940

Aborto terapêutico

O aborto terapêutico impõe um conflito entre dois bens de igual valor: a vida da mãe e a vida do concebido. Não se trata de agir sobre uma doença que se manifesta, mas o que se supõe é a eliminação do feto sadio para evitar o agravamento da saúde ou o perigo de vida da mãe. Felizmente, essa situação é bem amenizada nos dias atuais, em conseqüência do progresso da medicina.

No Brasil, é livre de criminalização o aborto terapêutico, pois o inciso I do art. 128, ao chamá-lo de aborto necessário, não pune o médico que o pratique frente à impossibilidade de salvar a vida da gestante. Contudo, não se pretende aceitar essa disposição como absoluta. Em caso limite, entende-se que deve ser levada em consideração a vontade da mulher, desde que tenha sido declarada em Testamento Vital (Documento de Vontades Antecipadas), antes de surgir a gravidez, pois não é desconhecido o sentimento maternal que leva a mãe a oferecer a vida em prol da existência do filho. Expressando-se a mãe pela salvação do rebento, deverá o médico manter as duas vidas até o instante em que a própria natureza cumprirá o papel de selecionar, entre os dois bens, aquele que persistirá em desenvolvimento. Por outro lado, estando a mãe em estado de inconsciência, mesmo que temporariamente e sem nenhum documento legal que lhe substitua a expressão da vontade, deverá o médico salvar-lhe a vida, ainda que seu ato determine o sacrifício do filho. Quando for caso da mulher grávida se apresentar em morte cerebral, a medicina já permite manter sua vida artificialmente, com a finalidade de fazer o feto chegar a uma fase de desenvolvimento que lhe possa garantir uma vida autônoma fora do útero (SPAGNOLO, A. G. 1988, p. 985-987).

Aborto ético ou humanitário

Conhecido também como aborto criminoso, é proveniente de uma ação delitiva, fundamentalmente violação ou relações incestuosas. Estupro é o nomem iuris do crime contra a liberdade sexual, que consiste em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, conforme indica o art. 213 do Código Penal brasileiro.

O aborto decorrente de estupro é justificado na legislação nativa por motivos de ordem ética e emocional, mas, para alguns autores, não encontra justificativa, porque em nenhuma hipótese poder-se-ia aceitar, nesse tipo de aborto, o estado de necessidade que, para ser reconhecido exige “prova cabal da existência da atualidade do perigo, sua inevitabilidade, a involuntariedade em sua causação e a inexibilidade do sacrifício do bem ameaçado” (BRASIL, 1990). Como, normalmente, o estupro não é presenciado por terceiros, configura-se difícil obter essa prova consistente. Por outro lado, a prática abortiva pelo médico é um ato extremamente simplificado pela sua forma sumária de execução.

Pela legislação penal, não há necessidade de sentença condenatória por estupro para que o abortamento possa ocorrer, sendo suficiente a prova convincente da existência do delito sexual. O crime de estupro somente se procede mediante queixa, exceto se a vítima (ou seus representantes legais) não pode prover as despesas do processo sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, ou se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, caso em que se procede mediante ação pública, nos termos do art. 225, parágrafo 1º, incisos I e II, do Código Penal. Na primeira hipótese, a ação do Ministério Público depende de representação da vítima ou de seu representante legal, conforme o caso.

Na prática, para evitar abusos, o médico somente deverá agir mediante prova inequívoca do alegado estupro, salvo se o conhecimento de alguma circunstância foi razoavelmente suficiente para justificar a credulidade do médico. Esse cuidado não é exagero da doutrina, pois a vida destruída não poderá ser reconquistada através de outra gravidez. É irrecuperável. Além do que, enganos e mentiras rondam os tribunais.

Pode-se relembrar o famoso caso de Jane Roe, cujo nome real era Norma McCorvey, decidido em 1973 pela Corte Suprema dos Estados Unidos. Texana à época com 25 anos de idade, solteira, alegava a jovem ter engravidado em razão de estupro. Na época, a Corte deliberou, contra apenas dois votos, que entre as liberdades fundamentais do cidadão está o direito à privacidade, entre os quais se inseria o direito a interromper uma gravidez. Contudo, a lentidão judiciária deu margem ao nascimento da criança, que foi entregue a uma entidade que lhe providenciou pais adotivos. Em 1988, Norma McCorvey veio a público confessando que o estupro jamais ocorrera, dando início, desde então, à procura da filha, corroída que estava pelo remorso de tê-la abandonado (FERRAZ, 1991, p. 49-50).

As normas que permitem o aborto nos casos de gravidez proveniente de estupro encontram respaldo no fato de que a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultado de coito violento, não desejado. Alega-se também que, freqüentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade. Contudo, não se pode confirmar essas assertivas, já que nem sempre a anormalidade se liga à personalidade do criminoso. É o exemplo de crueldade exposto nas situações de guerras e revoluções. As freqüentes violações de religiosas durante os distúrbios do antigo Zaire no começo da década de 60 plantaram este tema dentro da moral católica. A opinião generalizada foi a de aceitar as medidas preventivas anticonceptivas, pois à Igreja não cabia aceitar o aborto dentro de suas próprias fileiras (GAFO, 1997, p. 81).

A experiência vivida por Marijna, de 17 anos, nos campos de concentração sérvios, ilustra o caráter de mudança de etnia liderada por Karadzic. Presa em companhia da mãe, Marijna e outras mulheres foram estupradas diariamente, durante várias semanas, por soldados sérvios. Grávida, foi posta em liberdade jurando não ter aquele filho. Contudo, uma gravidez de alto risco levou os médicos a considerarem que um aborto lhe seria fatal. No hospital onde foi internada, Marijna sofria bastante, sem saber da verdade (CAMPOS..., 1992, p. 58).

Em janeiro de 1996 veiculou-se um caso digno de reflexão e discussão no âmbito da bioética. Uma jovem mulher de 29 anos, católica praticante como seus pais, em estado de coma há dez anos, vitimado por um acidente de carro, internada numa clínica de Brighton, Rochester - Estados Unidos, foi estuprada no hospital, engravidando. Consultados especialistas, disseram que sendo os sinais vitais da paciente normais, teria condições de trazer à vida um bebê saudável. A família tomou a decisão de não interromper a gravidez, motivada pela crença de que a jovem não interromperia a gravidez se tivesse condições de expressar sua vontade e pelo desejo de ver uma parte da filha viva. A criança nasceu saudável, embora prematura, e os neurologistas afirmaram que era pouco provável que a mulher tivesse consciência de que estava grávida. Disse um especialista: “Ela não sabe que é mãe” (AMERICANA..., 1996, p. 34).

Surgem, então, as questões éticas: estaria a paciente sendo usada como cobaia humana? Permitindo o desenvolvimento da gravidez estarão sendo levados em conta a dignidade da paciente como ser humano? E a criança? É justo ser privada do relacionamento mãe e filho já a partir da vida intra-uterina?

Não parece condenável a decisão dos pais que, sabedores do posicionamento da filha em relação ao aborto, optam por manter-lhe a gravidez. A hipótese de que a paciente estaria sendo usada como cobaia também não procede, tendo em vista ser a opção dos próprios pais e não dos médicos que lhe mantinham a vida. Quanto à violação da dignidade da paciente, acredita-se que esta deveria ter sido inquirida no momento em que se decidiu pela manutenção da vida ligada a aparelhos e não neste instante em que se coloca a necessidade de proteção a um outro bem jurídico: a vida do feto. Ademais, a vida da paciente não foi colocada em risco em razão da gravidez. O feto, por sua vez, terá a vida preservada e sua relação com a mãe será biológica, cabendo aos avós suprir-lhe quaisquer outras necessidades que não lhe poderão ser oferecidas pela mãe, inclusive as de origem emocional, o que não difere muito das situações em que uma criança é adotada por um casal estranho.

No Brasil, também recentemente, outro caso abalou a opinião pública. Uma garota de onze anos foi estuprada, resultando gravidez do ato criminoso. Os pais da menina, após buscarem uma desnecessária autorização judicial para a consumação do aborto, o que alardeou o caso publicamente, cederam às pressões contrárias, ignorando todos os riscos físicos aos quais a filha ficaria exposta. Um ágil lobby antiaborto, reforçado pelo adiantado estado da gravidez, foi vitorioso.

Afirmou o pediatra Leonardo Posternak, de São Paulo, que prevaleceu uma estranha lógica: “Para não matar o feto que está dentro do útero, optaram sacrificar a criança que tem o útero.” O cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Salles, 77 anos, ofereceu à família, cuja renda é de R$ 120,00 por mês, auxílio para a criação do bebê. E, neste ponto, a Igreja suscita inúmeras críticas entre seus próprios fiéis (CÔRTES, 1997).

A situação difere da anteriormente relatada. Trata-se de uma criança, considerada no ordenamento jurídico brasileiro, incapaz de externar sua vontade. Além disso, existia o risco de dano físico e moral que foi ignorado pelos pais e por todos aqueles que os influenciaram com dotes materiais, aproveitando-se de sua carência. Muito embora a televisão e a imprensa escrita exiba atualmente as duas crianças, mãe e filho, em aparente bem estar, advoga-se pela realização do aborto em condições semelhantes.

A autorização para cirurgia nos casos de aborto por estupro e risco de vida para a gestante é legal, pois está no Código Penal desde 1940 e não precisaria do novo Projeto de autoria da deputada Sandra Starling (PT-MG), que desperta inúmeras polêmicas ao pretender regulamentar o aborto decorrente da gravidez nas referidas condições (CONSULTOR... 1997, p. 10).

Teoricamente, todos os hospitais da rede pública de São Paulo poderiam desenvolver programas de aborto "legal", pois foram autorizados por portaria estadual desde 1989. Contudo, apenas o Hospital do Jabaquara e o Hospital Pérola Bygton, na Bela Vista, no Centro, dispõem de meios para atendimento de mulheres. Desde 1989, a unidade prestou atendimento a cento e oito vítimas de estupro, além de oito casos de má formação fetal e quatro por risco materno. Desse grupo, 60% são menores de 14 anos (TAVES; BOCCIA, Sandra, 1997, p. 3).

No Rio de Janeiro, em dez anos de vigência da lei que obriga a rede pública municipal a prestar o atendimento, foram registrados apenas vinte casos dos chamados abortos legais. Em 1997, entretanto, a situação mudou: foram realizados, naquele ano, três abortos por risco materno e cinco por estupro (EM DEZ..., 1997, p. 26).

No que diz respeito às mulheres que possam manifestar livremente sua vontade tem-se a dizer que manter um feto concebido através da violência é um ato de amor ao próximo, excelente por natureza, mas, injusto se for tornado obrigatório, em decorrência das características especiais de sua origem que não se coadunam com os princípios da moral.

REFERÊNCIAS

AMERICANA em coma há dez anos dá à luz um bebê. O Globo, Rio de Janeiro, 20 mar. 1996. O Mundo/Ciência e Vida, p. 34.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo (2. Câmara Criminal). Recurso Criminal nº 82.378/78-3. São Paulo, 10 de setembro de 1990. Jurídica. Disponível em: a href="http://www.jol.com.br>">http://www.jol.com.br>;. Acesso em: 23 mar. 1998.

CAMPOS de concentração sérvios. Isto É, São Paulo, n. 1.195, p. 58, 6 ago. 1992.

CONSULTOR do ministério da saúde diz que lei sobre o aborto é auto-aplicável. O Globo, Rio de Janeiro, 26 ago. 1997. O País, p. 10.

CÔRTES, Celina, TRINDADE, Eliane. Em nome do feto. Isto É, São Paulo, 24 dez. 1997.

EM DEZ anos, apenas 20 abortos legais realizados. O Globo, Rio de Janeiro, 19 out. 1997. Rio, p. 26.

FERRAZ, Sergio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991.

GAFO, Javier. 10 palabras clave en bioética. 3. ed. atual. Navarra: Verbo Divino, 1997.

SPAGNOLO, A. G. Morte cerebrale in donna gravida è lecito il prolungamento artificiale della vitta? Medicina e Morale, n. 6, p. 985-987, 1988.

TAVES, Rodrigo França, BOCCIA, Sandra. Ministro pedirá a FH que vete aborto. O Globo, Rio de Janeiro, 22 ago. 1997. O País, p. 3.

Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 03/10/2011
Reeditado em 27/08/2016
Código do texto: T3255156
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