DESMISTIFICANDO O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

6. DESMISTIFICANDO O CÓDIGO PENAL

O Código Penal, em seu título VII, capítulos III e IV, contém, respectivamente, as tipificações relacionadas à Assistência Familiar e ao Pátrio Poder, Tutela ou Curatela.

Dentro desta sistematização, segundo a doutrina tradicional, encontram-se os crimes de abandono material, entrega de filho menor a pessoa inidônea, abandono intelectual e o abandono moral, que dizem respeito à assistência da família e, na seqüência, aqueles ligados ao pátrio poder, tutela ou curatela: Induzimento a fuga, entrega arbitrária ou sonegação de incapazes e a Subtração de incapazes.

Estas disposições penais, segundo Regis Prado, servem à proteção da assistência familiar ou ao pátrio poder. Essas constatações, ainda que omissas, são compartilhadas por um grande número de autores, de modo que, um estudo mais extenso através dos livros de direito penal, revela uma doutrina-colagem, uma doutrina que copia os clássicos e muito pouco acrescenta às teorias já formuladas. Em momento que já não é raro um livro vender mais pela beleza de sua capa do que pelo seu conteúdo científico, não se pode esperar mais do que uma doutrina superficial, que consegue ver somente através das lentes das superestruturas, isto é, os autores conservadores expõem apenas aquela realidade que se encontra na superfície das relações sociais. Essa, alias, é uma característica intrínseca das superestruturas, nesse caso, a superestrutura jurídico-política. Isso ocorre com o Direito quando ele omite um conflito de classe para apresentá-lo como se estivesse em tela apenas uma relação entre indivíduos. Assim, o que parece uma contenda entre dois indivíduos é, numa realidade não superficial e empírica, uma relação entre classes. Por exemplo, quando um empregado ingressa com uma ação trabalhista contra seu patrão ou quando alguém comete um furto. Por de trás desses conflitos, que para o Direito dão-se apenas entre patrão e empregado ou ladrão e vítima, encontra-se um intenso combate entre classes antagônicas que, no plano empírico, fica mascarado pelas superestruturas. É preciso salientar que a ideologia engloba todos os produtos do pensamento e representações humanas (ciência, arte, filosofia, direito, moral, etc), formando a capa superior da sociedade - superestrutura ideológica - mas produzida pela infra-estrutura econômica, ou seja, pelas condições de existência material, isto é, pelas relações de produção. Logo, olhando de forma dialética a relação entre os termos, podemos afirmar que, se por um lado à infra-estrutura condiciona a superestrutura, esta, por sua vez, também condiciona a infra-estrutura. Dessa forma, se a produção material condiciona a determinada ideologia ou a determinado tipo de consciência, por outro lado, esse mesmo determinado tipo de consciência condiciona a realização daquele também determinado tipo de produção material. Visto que, a classe dominante possui as forças produtivas e dita as relações de produção, ou seja, controla a infra-estrutura econômica, o controle daquela superestrutura encontra-se nas mãos da classe opressora, que fará uso deste instrumento na conquista de seus interesses. Foucault, em vigiar e punir demonstra outro fator de dominação através da transformação dos homens que fornecem a força de trabalho em cidadãos “úteis e dóceis”. Nesta obra, fica claro o estudo das transformações do poder de punir objetiva caracterizar a disciplina como a modalidade específica de controle social do capitalismo (incorporada na estrutura panótica das relações sociais), e explicar a instituição carcerária pela produção e reprodução de uma “ilegalidade fechada, útil e separada”, que garante e reproduz as relações de poder (e a estrutura de classes) da sociedade. (Cirino, 1981, p. 44). Nessa conjuntura, os sistemas punitivos devem ser estudados em seus efeitos positivos (que realizam uma função social complexa), e não em seus efeitos negativos (sanção/repressão). A partir disso é possível compreender a formação e a atuação do ordenamento penal, a doutrina tradicional, os conceitos por eles emitidos, bem como, sua utilização para a manutenção do “status quo”.

Partindo em direção ao microcosmo dos crimes contra a assistência familiar, sem esquecer o que foi dito anteriormente, fazendo uso da análise crítica, para não esbarrar nas limitações apresentadas nas teorias conservadoras ou liberais, que o enfoque comum não questiona a estrutura social, ou suas instituições jurídicas e políticas, mas se dirige para o estudo da minoria criminosa. É preciso esclarecer a relação crime/formação econômico-social: as relações de produção e as questões de poder (econômico e político). Apreciando o crime e os sistemas de controle do crime como fenômenos enraizados nas contradições de classes de formações econômico-sociais particulares, estruturadas pelo modo de produção dominante. (CIRINO, 1981). Permitindo, com isso, evidenciar a limitação do conceito tradicional de crime, que criminaliza condutas socialmente não-danosas (greves, dissidência política, etc.) e não criminaliza condutas e relações socialmente danosas (imperialismo, exploração, etc.). Esse conceito exclui a criminalidade estrutural e inclui os fundamentos da ordem social burguesa: criminaliza ações contrárias à estrutura econômica (propriedade privada dos meios de produção e do produto do trabalho social) e às superestruturas jurídicas e políticas do Estado (criminalidade política) (Cirino, 1981, p. 40). Apenas a partir disso, é possível compreender a existência de tipificações esdrúxulas, como as contidas nos artigos 246 e 247, respectivamente: os “crimes” de Abandono Intelectual e Moral, que, em um exame breve, são as mais evidentes. Isso, porém, sem esquecer de outros tantos “ocultismos” contidos nas demais tipificações já mencionadas.

No caso do crime de Abandono Material, por trás da tutela do organismo familiar, existem outros desígnios que devem ser levados em consideração para haja uma ampla dimensão da atuação do instituto penal brasileiro. Apesar da doutrina clássica não abordá-los, esses “obscurantismos” penais são fundamentais para desvelar algumas “reações adversas” geradas pelo uso indiscriminado da “Ultima Ratio”. Aliás, o fato de o Direito Penal ser considerado a última instância do poder coercitivo do Estado torna-se um tanto conflitante quando vista pela ótica do crime em apreço. Afinal, há autores que, sobe certas circunstâncias (pensão alimentícia), consideram-na excessiva, diante do que dispõem o CPC, art. 733, parágrafo 1º. No entanto, em contraponto, é alegado que o dispositivo destina-se a proteção do organismo familiar, através da manutenção das condições de subsistência daquele organismo e, assim, justifica a atuação da medida coercitiva extremada. Nesse liame, é preciso questionar: que vantagem traria ao alimentado a punição do devedor de alimentos, além daquela contida no art. 733, parágrafo 1º, do CPC? A priori, vem a mente aquele que permaneceu preso por três meses e não cumpriu sua obrigação, provavelmente, se vier a sofre a sanção contida no art. 244 do CP, não conseguirá sanar aquela obrigação. Logo, é possível que a tutela estatal prejudique o alimentado, fato que colocaria em cheque a intenção de tutela do instituto penal, demonstrando, quem sabe, o interesse em tutelar outros “bem jurídicos” não tão evidentes. Segundo essa linha de raciocínio, cabe aqui, um exame a respeito da possibilidade de utilização da justa causa como excludente do tipo. Em síntese, o desemprego, a insuficiência econômica ou mesmo o estado de miséria, são tidos como excludente da tipificação. Portanto, sem o elemento normativo do tipo não há crime. No entanto, a assistência familiar está sendo agredida. Isto é, a conduta gravosa ao organismo familiar está ocorrendo. Contudo, não há como “culpar” alguém por isso. Consequentemente, quem, por meio de ações puramente especulativas, voltadas à exploração usurária da força de trabalho, gerar desemprego e miséria não comete crime algum, mesmo que essas famílias se encontrem em estado miserável. Esse contexto demonstra a limitação e o comprometimento com a ideologia dominante que acomete o conceito usual de crime denunciado pela Criminologia Radical (Cirino, 1981). Além de demonstrar terrível omissão do Estado e sua, conseqüente, submissão aos interesses do Capital. No entanto, a questão não se limita apenas a omissões administrativas ou jurídicas, como insiste em reproduzir o senso comum. Ela vai além, pressupondo uma infra-estrutura econômica (relações de produção) a moldar uma superestrutura voltada a produção de uma ideologia dominante. Logo, as contradições produzidas pelo Capital (Meszaros, 2003, p. 17-31) chegam ao senso comum como um “mal” inevitável e com o tempo se tornando banais. Esta inserção de realidades cruéis no cotidiano das pessoas contribui conjuntamente com outros instrumentos para a formação de uma sociedade individualista, consumista, egoísta, violenta, excludente, preconceituosa, ou seja, uma sociedade capitalista.

No delito de entrega de filho menor a pessoa inidônea, tendo sempre como pano de fundo as devidas constatações já realizadas, é preciso estender a problematização em direção à atuação cruel e preconceituosa contida neste delito. Aqui o Código Penal não faz sequer questão de esconder o tipo de tratamento que pretende dar aos pobres e as demais minorias excluídas pela sociedade do capital. Afinal de contas, esta tipificação tem direção certa: a pobreza. Portanto, é preciso ir além da doutrina tradicional. É preciso ser radical, ou seja, chegar ao cerne da questão, ultrapassar as superestruturas, expor as contradições e romper com dominação imposta. Desta maneira, em que pese o dispositivo penal em voga adequar-se aos casos em que houve realmente um perigo ao menor. É essencial criticar a eleição feita pela doutrina de perigos objetivos, ou melhor, urge expurgar esta preconceituosa rotulagem colocada pelos autores tradicionais. Afinal, entre entregar uma filha a um cáften, para que ele explore e abuse dela, e deixar a mesma menor aos cuidados de uma prostituta para que a mãe possa trabalhar, existe uma imensa diferença. Pois, afirmar que um menor encontra-se em perigo moral devido ao fato de estar sob os cuidados de uma meretriz é, ao menos, uma decisão afoita. Aliás, em alguns casos é mais seguro deixar um filho sob os cuidados de uma prostituta do que de um advogado. Existem diversas situações em que a objetividade incriminadora (rotulagem) que a doutrina sugere não é segura para afirmar a existência do delito. Por exemplo, é preferível, ao invés de deixar um filho sozinho, entregá-lo a vigilância de uma vizinha para que cuide deste menor durante o dia, período em que a mãe encontra-se trabalhando, mesmo que essa vizinha tenha como prática noturna a prostituição. Além do que, a prostituição em muitos casos é o único meio de manter o sustento familiar, já que, o subemprego e o exército de reserva mantido pelo Sistema do Capital crescem a cada dia. Mister, ainda, lembrar que o perigo moral diaria e livremente difundido por inúmeros programas de Televisão, nos mais variados horários, é muito mais eficiente na corrosão do caráter de um jovem do que qualquer estereotipo humano. Entretanto, não sofrem qualquer punição. Outra sugestão doutrinária, desta vez, a respeito do perigo material, é a seleção do portador de doença infecto-contagiosa como um perigo físico ao menor sob sua égide. Então, segundo a doutrina dominante, pode haver crime ao deixar o filho sob os cuidados de uma pessoa portadora de HIV. E no caso de gripe? Quem sabe o Capez ou o Damásio queiram discutir a respeito! Afinal, tem doutrinador que ousa explicar conceitos como: veículo automotor, coisa alheia móvel, entre outros. Ainda que seja preciso o dolo (direito ou eventual), ou a culpa, segundo o Rui Stoco, para haver conduta delituosa, a discrepância continua, de modo que, a importância de saberem, o pais, que o filho corre o risco de ser contaminado por uma doença, quando deixado sob os cuidados de uma meretriz HIV positivo, por exemplo, não vai mudar a situação deles, uma vez que, em muitos casos não há escolha, mas sim, uma imposição. E aproveitando o termo, cabe lembrar que existe um rol muito grande de “imposições” que podem levar uma determinada família a agir de diversas formas, muitas vezes cruéis para a “sociedade”, mas que para aqueles excluídos pode ser o único meio de sobreviver. Dentre estas imposições vale destacar: a miséria, o desemprego, o subemprego, a inexistência do Estado e outras tantas mazelas criadas a partir de uma sociedade capitalista. Nestes casos, a atuação judicial é fundamental para evitar que seja cometida qualquer injustiça ou punição descabida. Sendo fundamental a presença do magistrado comprometido com a justiça social, conforme preconiza Amilton Buenno de Carvalho, em seu livro: A Magistratura Alternativa.

Em relação ao delito de Abando no Intelectual, além da superestrutura jurídico-política, é preciso, igualmente, considerar a ação da (super)estrutura educacional, no processo de desumanizarão do indivíduo, conforme denuncia Paulo Freire. É no contexto de uma educação bancária, opressora, comprometida com a manutenção das desigualdades sociais impostas, incapaz de “des-velar” a ideologia implantada pelo Capital, incapaz de libertar e conscientizar o aprendiz, que se deve avaliar a contribuição deste instituto penal. Afinal, ao invés de punir o pai que não provê a instrução primaria do seu filho, os operadores do direito deveriam estar atentos às omissões do Estado, dos professores, e demais agentes envolvidos. Mas, principalmente, o porquê de ocorrerem tais omissões. Questionando-se a respeito: A quem seve a formação de homens-coisa? Para que formar exércitos de alienados? Para que manter as retóricas (p.ex: esforço/recompensa) do Capital? Por fim, por que não se educa para libertar?

Além do mais, esta tipificação é tão abusiva que até mesmo a doutrina tradicional é capaz de rechaçá-la. Inclusive é oportuno lembrar o que dispõe o artigo 98 do ECA:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

Aqui se fala em aplicar lei quando ocorra omissão da sociedade ou do Estado. Escolas, empregos, saúde, por exemplo, são deveres do Estado, inclusive previstos constitucionalmente, a exemplo do art. 205 da Constituição (educação, dever do Estado). Com toda essa legislação, lastimavelmente, o Brasil é campeão mundial em exploração do trabalho de menores, prostituição de crianças, número de menores de rua e outros problemas que atingem a infância e a adolescência.

Que tipo de contribuição à educação primária pode trazer esta tipificação? Qual a contribuição da Ultima Ratio para as crianças de 7 a 14 anos quando trancafia de 15 a 30 dias, ou multa os pais daquelas crianças? Nenhuma. Na verdade, é provável que piore a situação. Talvez a explicação para a criação do delito de Abandono Intelectual se encontre em seus próprios criadores. Afinal, eles é que parecem sofrer de abandono intelectual.

E para fechar com pompas, os legisladores pátrios instituíram como excludente da tipificação uma omissão estatal. É mais ou menos assim: você, pai de família, que não prover a instrução do seu filho vai sofre as conseqüências impostas aparelho coercitivo estatal. Mas, o Estado, quando não lhe der condições para que o senhor cumpra o dito no artigo 246 do Código penal, nada sofrerá.

O delito de Abandono moral sob estudo, neste momento, é de uma impotência incomparável. Os jogos de azar ocorrem em plena luz do dia, inclusive de modo institucionalizado, aumentando os ganhos excessivos dos cofres públicos (loteria esportiva, mega-sena, etc.), quando não há fraudes é claro, e alimentando a fantasiosa esperança do desventurado de, a qualquer momento, enriquecer com a aposta certeira.

A mendicância toma conta das ruas, avenidas, praças, etc. São famílias maltrapilhas que, de braços estendidos, imploram por restos, exibindo crianças mal-alimentadas e com higiene precária. Manuel Bandeira, através da arte, demonstra perfeitamente a realidade:

O Bicho

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Em relação ao fato de assistir a espetáculo que possa perverter ou ofender o pudor do menor de 18 anos, basta ligar a televisão, principalmente nos "horários nobres", para se assistir a cenas libidinosas com requintes de detalhes. Muitas vezes cenas depravadas. A Internet, devido à dificuldade de controle por parte dos pais e a facilidade com que, até mesmo, crianças têm acesso a sites eróticos, é outro veículo que está corroborando nesse sentido. De modo que, não há necessidade do menor sair do conforto do seu lar para ver pornografia.