EXPERIMENTAÇÃO EM SERES HUMANOS
Professora Sílvia M. L. Mota
O texto apresentado é trecho da minha Monografia do Curso de Graduação em Direito: Da Bioética ao Biodireito, escrita em 1995. Mantenho-o da forma original, por considerar de grande valia observar minha evolução como pesquisadora, desde então.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
 
O ser humano é por natureza um pesquisador e o médico, por índole e formação, é um investigador dos fenômenos sociais e biológicos. Por outro lado, o próprio homem tem sido, ao longo do tempo, o principal objeto dessa experimentação, servindo consciente ou inconscientemente como cobaia do próprio homem. Daí decorre a necessidade de existirem códigos, normas e leis que regulamentem esta atividade.

Somente no século XVIV o conhecimento surgido do fruto espontâneo do espírito passou a ser normatizado em razão da procura pela comprovação, que origina o conhecimento científico. Este é o produto da aplicação de métodos, processos e técnicas adequadas, donde resultam verdades certas e gerais, corretas e válidas para qualquer tempo, em qualquer lugar, obedecidas as mesmas condições de comprovação. Com o conhecimento científico, que mostra a modificação dos resultados com as modificações das condições, surgiu a dúvida e com ela a análise estatística capaz de verificar a possibilidade ou melhor medir a probabilidade de que essa verdade seja devida ao acaso. Do conhecimento científico surge a experimentação.
 
2 AS EXPERIÊNCIAS
 
Affonso Renato Meira (1991, p.131) diz-nos que foi somente no século passado que o conhecimento surgido do fruto espontâneo do espírito passou a ser normatizado em razão da procura da comprovação. O conhecimento científico, continua o autor: "[...] é o produto da aplicação de métodos, processos e técnicas adequadas, disso resultando verdades certas e gerais, corretas e válidas para qualquer tempo, em qualquer lugar, obedecidas as mesmas condições de comprovação. Com o conhecimento científico, que mostra a modificação dos resultados com as modificações das condições, surgiu a dúvida e com ela a análise estatística capaz de verificar a possibilidade ou melhor medir a probabilidade de que essa verdade seja devida ao acaso. Com o consentimento científico surgiu a experimentação."

Se é recente na história da humanidade o aparecimento do conhecimento científico, mais recente é a experiência com seres humanos e ainda muito mais a preocupação ética com essas experimentações. Isso não demonstra displicência do homem em referência às discussões éticas relacionadas à saúde de seu semelhante, razão única para se aceitar a experimentação com seres humanos em nível ético.

Henry Beecher (apud CORDEIRO, 1990, p. 21), médico e professor em Harvard, demonstrou em artigo publicado em l966, que a preocupação com as questões éticas das pesquisas deve ser permanente. Levantou o autor, 50 trabalhos publicados, que comprovadamente continham procedimentos não éticos, demonstrando, assim, que as violações são relativamente frequentes e existem razões para essa preocupação.

As pesquisas em seres humanos são, não só importantes, como necessárias. A preocupação é com a ética e a normatização dessas pesquisas, sobretudo em nosso país.

No Brasil, as pesquisas engatinham, mas preocupa-nos a liberalidade existente nas instituições, nas sociedades científicas e também entre os médicos e os pesquisadores para a realização destas pesquisas. O desconhecimento da legislação e das normas existentes é quase generalizado e a desobediência das mesmas é a regra geral. A solução para o problema é difícil, mas ele tem que ser discutido e enfrentado, agora, em nosso país.

Para Sandro Spinsanti (1990, p. 161): "A sociedade em geral aceitou o processo científico e, portanto, experimental da medicina. E está disposta a sustentar a pesquisa com verbas enormes, tanto públicas como particulares. Mas há preços que não podem ser pagos: são os que se referem à dignidade e à liberdade humanas."

As primeiras questões sérias remontam ao trauma provocado na opinião pública pela revelação, logo depois da Segunda Guerra Mundial, das experimentações "cínicas e insensatas, expressões mais de sadismo que de amor ao conhecimento, realizadas por médicos nazistas em prisioneiros nos campos de concentração", continua Spinsanti.

Não vamos entrar em questões seguramente desumanas, das experiências com os prisioneiros de guerra, sobretudo as realizadas por médicos nazistas, mas apenas em experimentos em grandes altitudes, sobre congelamento e experimentos com venenos, realizados nos campos de concentração de Dachau e em prisioneiros propositadamente infectados por febre tifóide, gangrena e tétano nos campos de Ravensbrueck, Buchenwald e Natzwiller. Não nos estenderemos também sobre as experiências criminosas realizadas sobretudo em presos políticos. Segundo relatos da Anistia Internacional, a tortura constitui extraordinário campo de experimentação com seres humanos. As técnicas mais usadas são flagelação, sufocação, descargas elétricas e duchas de água quente e fria. As pesquisas, nesses casos, visam a selecionar técnicas que não permitam identificação a posteriori das mesmas. Ressaltamos, ainda neste campo, a utilização de métodos como coerção moral, privação de sono, desnudamento e internação em hospitais psiquiátricos, que visam a comprometer o estado emocional das vítimas.

Não revolveremos a história da medicina em busca de experiências em seres humanos, de caráter científico ou pseudocientífico, em que os aspectos éticos são seguramente reprováveis. Entretanto, não poderemos deixar de citar alguns exemplos clássicos de experiências realizadas, nos quais os aspectos éticos não foram considerados.
 
3 EXEMPLOS CLÁSSICOS
 
Antiguidade
 
A investigação científica clássica da Antiguidade alcançou seu maior desenvolvimento na época alexandrina, no século III antes de Cristo.

Segundo relata Celsus (25 aC - 40 dC), os grandes sábios médicos de Alexandria, Herófilo de Capadocia (325-280 AC) e Erasistrato de Cleo (304-250 aC), fizeram grandes descobrimentos anatômicos e fisiológicos. Herófilo identificou o cerebelo, diferenciou os nervos dos tendões e os nervos motores e os sensitivos. Por sua vez, Erasistrato descreveu os movimentos pulmonares, a válvula tricuspídea e a próstata, inventando o cateter ureteral. Estas descobertas foram obtidas fazendo vivissecções em criminosos condenados à morte.

Celso explica como ambos investigadores faziam a dissecção do que a natureza lhes escondia. Eles localizavam os órgãos internos e as vísceras nos homens vivos, localizando os órgãos afetados pelas respostas às dores. A aplicação de medicamentos se fazia mais eficaz quando eram localizados os órgãos internos de um homem vivo. Segundo Celso, não havia crueldade na vivissecção de criminosos, pois que se tentava inventar remédios para melhorar a milhares de enfermos inocentes. Ademais, deve-se recordar que naquelas épocas, a tortura era aplicada legalmente para se obter confissões.
 
Renascimento
 
Os maiores médicos e cirurgiões do Renascimento foram Andrés Vesálio (1514-1564) e Ambrosio Paré (1510-1590), que praticaram curas usando procedimentos mortais em seres humanos. Com efeito, em 1559, ambos, médico e cirurgião, foram chamados por Catarina de Medicis para atender ao rei da França, Enrique II, que recebeu uma ferida de lança em um olho. Como não havia radiografia nesta época, para conhecer a situação interior da ponta da lança, Vesálio e Paré pediram a cabeça dos criminosos condenados à morte para provar la trajetória da lança no crânio que dissecaram. Apesar de extraírem a ponta de lança, o rei morreu ao cabo de 10 dias de agonia, no dia 10 de julho de 1559, sendo sucedido por Francisco II.

Outro exemplo impressionante de experimentação mortal foi feito por Gabriel Falopio (1523-1562), professor de anatomia em Pisa, que atendeu a um criminoso condenado à morte que tinha febre com paroxismos, dando-lhe uma grande dose de ópio em duas oportunidades, até que o paciente faleceu, demonstrando que o ópio não controlava os paroxismos e determinando a dose mortal do fármaco.
 
Varíola
 
Durante vários séculos, as epidemias de varíola foram muito temidas porque dizimavam as populações. Foi possivelmente o temor às epidemias que fez surgir, já na Antiguidade, a ideia de evitar a doença por meio da inoculação preventiva. Os chineses costumavam colocar crostas de pústulas de varíola na mucosa nasal de pessoas sãs.

No Oriente Médio, usava-se, o "método grego", que consistia em fazer desenhos cruciformes no queixo e na bochecha das pessoas sãs com uma agulha molhada no líquido das lesões.

Mas a primeira vacina contra a varíola só foi descoberta no século XVII pelo médico inglês Edward Jenner, que trabalhava no interior da Inglaterra. Jenner ouvira contar que as pessoas que contraíam varíola de gado (cow-pox) se tornavam imunes à temida varíola humana (small-pox). Teve então a ideia de inocular líquido da varíola de gado em pessoas sãs, para torná-las imunes à varíola humana.

Depois de estudar o assunto durante vários anos, o médico decidiu provar experimentalmente suas ideias e, no dia 14 de maio de 1796, inoculou a varíola de gado no braço do menino James Phippe, usando material retirado das mãos da ordenhadora Sarah Nelmes, que estava com a doença. No dia 1º de julho do mesmo ano, JENNER inoculou varíola humana no menino, que não teve a doença. Estava descoberta a vacina. Jenner publicou seu trabalho em 1798.
 
Sífilis
 
- Estudo clínico realizado em Tukesgee - Alabama, com pessoas negras, de baixo poder aquisitivo, visando observar a história natural da sífilis. O estudo foi iniciado em 1932 e só foi suspenso em 1972, após denúncia na imprensa leiga. Neste caso, os responsáveis continuaram mantendo pacientes sem tratamento, mesmo após a descoberta da penicilina.

- A célebre experiência da Junta de Febre Amarela do Exército dos Estados Unidos. Em 20 de junho de 1900, foi enviada a Cuba, nessa época sob o domínio dos Estados Unidos, uma comissão médica formada por Walter Reed, James Carol, Jesse Lazear e Aristides Agramont, para estudar e combater a doença. Nesse estudo, soldados "voluntários" se submeteram às picadas de mosquitos transmissores, que haviam sugado o sangue de pessoas sabidamente contaminadas.
 
Hepatite
 
Estudo realizado na escola estadual de Willowbrook, EUA, em que crianças retardadas foram deliberadamente infectadas com o vírus da hepatite. Os pesquisadores pretendiam estudar a história natural da doença, os métodos de prevenção e testar o efeito da gamaglobulina na possível melhora da evolução da doença.
 
Rejeição aos transplante
 
O implante de células cancerosas em pacientes internados no Hospital Judeu de Doenças Crônicas, em Nova York. Os pesquisadores pretendiam obter informações sobre o processo de rejeição de transplantes em seres humanos.
 
Anticoncepcionais
 
O estudo sobre anticoncepcionais, em San Antonio. Visando a estudar os efeitos colaterais de anovulatórios, os autores realizaram este experimento em 398 mulheres, na cidade de San Antonio, no Texas. As mulheres, que procuraram a clínica em busca de método anticoncepcional, eram pobres, americanas de origem mexicana, multíparas e, como não foram avisadas sobre a utilização de placebo, dez tiveram gravidez indesejada.
 
Programa espacial
 
A exposição de pacientes cancerosos a altas doses de radiação, sob a alegação de se testarem novas técnicas terapêuticas, quando, na realidade, se testavam as reações humanas às radiações para o programa espacial.
 
Como vemos, nestes experimentos os pesquisadores se utilizaram de grupos de pessoas nas quais a capacidade de autodeterminação estava total ou parcialmente comprometida por doença, idade, dependência e situação socioeconômica (HOSSNE; VIEIRA, 1987, p. 46-47; CRUZ; COOKE, 1994, p. 821-822).
 
Experimentações nazistas
 
Com o advento das doutrinas racistas e eugenistas dos filósofos nazistas durante a ditadura de Hitler (1933-1945) na Alemanha, médicos e cirurgiões nazistas efetuaram experimentos mortais em seres humanos, dentro do contexto dos genocídios maciços dirigidos pelos exterminadores Goebbels e Himler.

Com efeito, as leis eugênicas alemãs ditadas por Hitler em 1937 propunham melhorar a raça alemã, impedindo a reprodução dos inválidos e dos enfermos mentais.

Inicialmente, começaram com um programa de esterilização obrigatória de homens e mulheres afetados por enfermidades hereditárias. Mas depois, em vista da grande quantidade de enfermos mentais, os médicos nazistas iniciaram em 1940 um programa de eutanásia com o apoio do governo alemão.

Em 1º de outubro de 1940, Hitler ditou um decreto no qual dava "[...] amplos poderes aos médicos para que aqueles enfermos incuráveis fossem submetidos à morte misericordiosa" (HOSSNE E VIEIRA, 1987, p. 46-47).

O Dr. Hernan Paul Nitsche, do Sanatorio de Somestein, acompanhado pelos doutores Schuman e Schmalenbach, selecionaram os enfermos mentais mais velhos e afetados e os assassinaram em câmaras de gás. No total foram assassinados 15.000 enfermos mentais até 1942 nos sanatórios de Erlangen, Hadomar, Mariental y Sonnestein.

Apesar dos assassinatos serem feitos secretamente, os rumores alarmaram a Igreja Católica e os cardeais Faulhaber, Von Galen e Von Freiburg, protestaram desde os púlpitos de suas catedrais, sem êxito.

Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos médicos nazistas desenvolveram programas de experimentação em seres humanos que não tinham limitação moral alguma. Os exemplos mais notórios foram:

O Professor Augusto Hirt, Jefe do Instituto de Anatomia da Universidade de Estrasburgo, decidiu em 1941 fazer uma investigação para comparar as medidas antropométricas dos crânios de judeus de diversos países da Europa. Como faltavam mostras de judeus soviéticos e asiáticos, conseguiu que lhe mandassem judeus presos em campo de concentração de Auschwitz. Ele assassinou com gases tóxicos a 115 judeus, soviéticos e asiáticos e cortou suas cabeças e dissecou seus crânios para completar o estudo, que se efetuou desde 1943 a 1944.

O Dr. Sigmund Rascher, do corpo médico de la Fuerza Aérea alemã, usou em 1942 duzentos prisioneiros do campo de concentração de Dachau para fazer experimentos de pressão atmosférica e temperatura em câmaras de descompressão, para estimar os limites mortais do voo em altura. Dos 200 prisioneiros utilizados neste experimento, morreram 80 em consequência das baixas pressões e temperaturas alcançadas.

O Professor Holzloehner de Kiel fez experimentos em 1942 com prisioneiros de Dachau para ver os limites de resistência ao frio, submergindo os sujeitos em água gelada e medindo seu tempo de sobrevivência. A maioria faleceu.

Todos os resultados destes experimentos foram enviados à força aérea e à marinha alemã para utilizá-las como tabela de sobrevivência humana em ambientes extremos abióticos (CRUZ; COKE, 1994, p. 822).
 
AIDS e experimentação humana
 
As cobaias humanas são essenciais ao progresso médico. Voluntárias ou não, elas escrevem uma história cheia de medos, sucessos e infortúnios. O médico francês Daniel Zagury ficou famoso quando, há oito anos, se aplicou a vacina contra a AIDS que inventara. Fabricada a partir de vírus HIV atenuados, ela expôs Zagury ao risco de contágio, mas a bravura foi inútil. A vacina era inócua.

Ana Lúcia Ricon De Freitas, uma carioca de 29 anos, produtora de teatro, foi a primeira voluntária no Brasil para testar uma vacina contra a AIDS - a V-108 - fabricada pelo laboratório americano de engenharia genética United Biomedical Inc. Ana Lúcia, agora transformada em cobaia humana, não tem medo. "Não há nada de heroico ou corajoso no que estou fazendo porque não há riscos", diz.

Como cobaia, ela espera ajudar a acabar com a doença que já infectou 17 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais 4 milhões apresentaram os sintomas.

Apenas trinta brasileiros testarão o protótipo de vacina na fase atual das pesquisas. Deles, apenas a produtora teatral e uma universitária mineira de 23 anos já tiveram a substância inoculada em seu organismo por uma injeção. A maioria das cobaias é de mulheres acima de 30 anos, de classe média, com boa formação cultural, que tiveram amigos contaminados com o vírus HIV. São doadoras de sangue e, em geral, ligadas a uma ONG.

Não é fácil servir de cobaia para a V-108. Apesar dos quinze anos de história da doença, quando foram notificados os primeiros casos nos Estados Unidos, o estigma que a AIDS ainda carrega é grande. Ana Lúcia conta que uma conhecida, por exemplo, chegou a comentar: "Ela está maluca. Quanto será que está ganhando?" - Nada, embora nos Estados Unidos as cobaias humanas recebam ajuda em dinheiro, alimentação e alojamento para oferecer seu organismo à pesquisa. A Fiocruz e a Universidade Federal de Minas Gerais, responsáveis pelo monitoramento dos testes, responsáveis pelo monitoramento dos testes, pagam apenas ajuda de custo para o transporte e lanche nos dias de consulta.

As cobaias brasileiras serão submetidas a três aplicações da V-108. Depois de seis meses de acompanhamento, amostras de seu sangue serão retiradas. A ideia é separar os anticorpos produzidos pela ação da vacina e aí, sim, em tubo de ensaio, haverá o contato com o HIV - para testar se esses anticorpos serão capazes de combater o vírus.

As chances de a V-108 ser de fato eficaz contra a AIDS são pequenas. O HIV sofre constantes mutações e até hoje se avançou muito pouco no desenvolvimento das vacinas (VEJA, 1995, p. 74-75)
 
4 DISCUSSÃO ÉTICA
 
Claude Bernard - Introdução à Medicina Experimental
 
As possibilidades de efetuar investigações científicas sistemáticas nos seres vivos foram discutidas formalmente pelo filósofo francês Claude Bernard (apud CRUZ; COKE, 1994, p. 822) em sua clássica obra "Introdução à Medicina Experimental", de 1865. Postulou Bernard as bases científicas e éticas da investigação nos homens e nos animais.

O investigador deve considerar sempre os organismos vivos em seu conjunto, sem perder de vista os fenômenos particulares cujo somatório é a resultante que constitui um indivíduo. O método investigador não deve ser feito como se fosse feito pelo médico da espécie humana, mas simplesmente pelo médico de um indivíduo humano.

Os princípios da experimentação científica são idênticos, tanto para investigar os fenômenos físicos dos corpos inertes, como para descobrir os segredos dos seres vivos. Sem dúvida, existe uma diferença essencial entre estes dois tipos de experimentação. Os seres vivos apresentam-se, na realidade, numa dualidade ante o experimentador, pois são ao mesmo tempo um indivíduo e um organismo.

O investigador biológico deve saber decompor o organismo para separar os seus componentes, e poder assim analisar cada parte e cada função em forma separada, mas ao mesmo tempo sendo capaz de recompor esse processo de dissociação.

Entretanto, na prática, é muito difícil obter a integração necessária para unir essas partes separadas e compreender o funcionamento do conjunto do organismo deslocado.

O processo de dissecção do organismo pode fazer-se no cadáver como também no ser vivo. O primeiro caso é a autopsia e o segundo, a vivissecção. A vivissecção é a deslocação do organismo vivo com a ajuda de instrumentos e métodos que isolam o funcionamento das diversas partes do organismo. Mas, essa vivissecção deve ser precedida por uma dissecção da anatomia morta de determinado organismo. A ordem natural das investigações experimentais em seres vivos é, primeiro, a autopsia em um indivíduo e, depois, a vivissecção em outro indivíduo da espécie. Conceitualmente, a investigação em seres humanos deve ser precedida por experimentações em animais.

Claude Bernard afirmou que seria justificado fazer vivissecções em homens com objetivos altruístas, como salvar uma vida, curar uma doença ou fazer uma descoberta útil ao conhecimento do homem. Destacou ainda que na prática todos os dias o médico faz experimentos terapêuticos em seus pacientes e todos os dias os cirurgiões fazem vivissecções em seus operados para curá-los. Todas essas intervenções são experimentais e se fazem para melhorar a cada indivíduo no ato médico, mas em todos estes casos de vivissecção, há um limite de ação e esse limite é dado porque os sujeitos da experimentação, os enfermos, têm direitos como indivíduos. Aí surgem imediatamente os problemas morais, que devem ser abordados de forma justa e correta pelo experimentador.

Na realidade, existem duas classes diferentes de intervenção experimental no ser humano, cada uma das quais produzem seus próprios problemas morais, estabelecidos no grau de benefício ou não ao paciente. Poderá existir uma contraposição entre os valores morais dependendo de que se aplique um ou outro tipo de experimentação. Por um lado, alcançar boa saúde é um bem básico do ser humano e moralmente é indispensável ter boa saúde para alcançar outros bens. Assim, se um experimento médico promove boa saúde, é racional fazê-lo e irracional não usá-lo como meio para alcançar um fim benéfico. Mas ao mesmo tempo, o experimento pode afetar a dignidade e inviolabilidade da pessoa, sujeito da experimentação.

A dignidade humana é definida como um valor, em que um homem é um fim em si mesmo, e não deve ser usado como um meio para os fins de outros. Os experimentos médicos atentam contra esse valor humano, quando se efetuam sem o consentimento do sujeito da experimentação e quando este não se beneficia com a dita experimentação efetuada sobre ele.

Os valores morais do experimento médico são compatíveis com o princípio da inviolabilidade da pessoa humana e sua dignidade, quando se cumprem os seguintes requisitos: a) que o experimento beneficie o paciente; b) que este seja informado dos riscos; c) que o consentimento seja voluntário, sem coação (BERNARD apud CRUZ; COKE, 1994, p. 822).

Assim, aceita-se também, que não há contraposição entre os valores experimentais e o indivíduo, quando este aceite participar no experimento apesar de não ser o beneficiário diretamente, mas que será bom e útil para outros pacientes e indivíduos.

O princípio da inviolabilidade é salvaguardado com o consentimento voluntário do sujeito da experimentação. A sociedade não tem o direito a pedir ou obrigar a um sujeito ou a um grupo de sujeitos, a submeter-se a experimentos para que venha ela a auferir os benefícios, excedendo os direitos do indivíduo. Para tanto, um princípio básico de moralidade médica e cirúrgica consiste em não praticar jamais em um homem uma experimentação que possa ser-lhe nociva, apesar do quanto possa ser saudável para a humanidade. Também, veda-se a realização de experimentos em condenados à morte, porque a vida do ser humano não pode ser empregada como um mero instrumento. A experiência em detentos "voluntários" também constitui prática ilícita e imoral. Genival Veloso França (1991, p. 351) ensina: "[...] essas pessoas, além de estarem sob a proteção da Justiça, não possuem a plena liberdade de decisão em tais circunstâncias. Muito lamentável seria, sem dúvida, impor ao condenado a realização experimental científica". Por outro lado, a tortura é atitude bárbara do homem contra o homem e atinge definitivamente a dignidade da pessoa humana. Segundo Vergílio Ferreira Ricardo (apud CRUZ; COKE, 1994, p. 822): "É da condição humana morrer, mas não o ser-se mutilado."
 
Códigos de Ética
 
O mais antigo documento que trata dos aspectos éticos da experimentação in anima nobili é, provavelmente, o de Celsus, escrito no ano 25 dC, em seu livro De Medicina, em que aprovou expressamente as vivissecções realizadas em criminosos, no século III aC, por Herófilo e Erasistrato, da escola de Alexandria, por entender que esse procedimento fornecia conhecimentos tão importantes, que viriam a beneficiar pessoas inocentes, ao longo dos séculos.

A história sempre se repete, como podemos comprovar na notícia publicada no Diário de Pernambuco de 13 de dezembro de 1988: "Os rins de criminosos estão sendo usados por dois hospitais chineses para transplantes, sem consulta aos doadores ou seus familiares, informou o Jornal de Hong Kong South China Morning Post. "Os transplantes não são aéticos, já que os criminosos estão fazendo uso de sua última virtude" - disse o Dr. Ho-Mei-Sim, do Hospital Naufang.

O Código de Hammurabi, conhecido há cerca de 4.500, surgiu na civilização babilônica e é considerado como o primeiro código de ética médica. Esse código estabelecia prêmios para cirurgiões que obtinham êxito em suas experiências e castigos para os casos de insucesso. Os castigos variavam desde o pagamento de uma multa até a amputação das mãos, maneira drástica de evitar outros erros, caso o médico fosse responsabilizado pela morte de um paciente.

O Juramento Hipocrático, marco histórico da medicina, foi estabelecido na Grécia, no início da era cristã, pela Escola de Cós e, ainda hoje, representa o compromisso formal do médico para com a sociedade.

Em diversas épocas e em diferentes civilizações, outros códigos foram elaborados, com a mesma finalidade. São conhecidos, o Juramento Hindu da Iniciação, os Cânones da Medicina, elaborados pelos chineses no período da dinastia Ham (200 aC - 220 dC), o Juramento da Escola Médica de Berlim e o Juramento de Assaf, código hebraico, do século XVII, ainda hoje utilizado nas escolas médicas de Israel.

Em 1803, foi publicado, na Inglaterra, o Código de Ética Médica, de autoria do Dr. Thomas Percival e, em 1847, o código elaborado pela Associação Médica Americana.

O Código de Nuremberg, elaborado em 1947, por ocasião do julgamento de médicos nazistas, que realizaram experiências em prisioneiros de guerra, foi o primeiro conjunto de normas éticas sobre pesquisas, envolvendo seres humanos.

A Declaração de Genebra e o Código Internacional de Ética Médica, elaborados pela Associação Médica Mundial, em 1948 e 1949, não fazem referência ao assunto.

As atuais diretrizes internacionais para a pesquisa biomédica em seres humanos são o resultado de estudos iniciados em 1976 pelo Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (COICM), em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A versão original destas diretrizes foi aperfeiçoada em 1980, em reunião realizada no México, por estas mesmas organizações.

Os princípios éticos fundamentais que orientam a realização da pesquisa biomédica em seres humanos, e nos quais se alicerçam estas diretrizes, acham-se incorporadas na Declaração de Helsinque (1964), da Associação Médica Mundial, revista pela 29ª Assembleia Médica Mundial, realizada em Tóquio, em 1975.

As diretrizes, em sua forma atual, foram endossadas, em setembro de 1981, pela 56ª Sessão do Comitê Executivo do COICM e, em outubro de 1981, pela 23ª Sessão do Comitê Consultivo sobre Pesquisas Médicas da OSM.

No Brasil, o primeiro Código de Ética foi elaborado pela Associação Médica Brasileira, adotado oficialmente pelo Conselho Federal de Medicina até 1984, quando foi substituído pelo Código Brasileiro de Deontologia Médica recentemente pelo Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.246/88).
 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
A experimentação humana deve ter um caráter de verdadeira pesquisa científica. Primeiramente deverão realizar-se os estudos de laboratórios e em animais. Depois, a relação a ser obedecida é a de relação danos/benefícios. Nenhum experimento deve ser feito quando possa sobrevir a morte ou uma enfermidade invalidante. Não deverão ser feitos experimentos no homem quando o resultado previsível for muito pequeno. Em seguida, o ponto nevrálgico de toda a ética da experimentação em seres humanos: o consentimento esclarecido.

Tudo o que foi aqui exposto sobre as experiências em seres humanos tem a finalidade de contextualizar o tema no tempo e no espaço, para proporcionar ao leitor indícios que lhe possibilitem o desenvolvimento de pensamento crítico. Não obstante faz-se necessário que os professores da área da Saúde (em particular), e os de outras áreas enfatizem a necessidade de discussão, quando estiver em pauta a experimentação de seres humanos, porque somente um esforço educacional persistente poderá modificar práticas longamente estabelecidas e dar algum sentido para o sofrimento daqueles que foram prejudicados um dia pela experimentação.
 
REFERÊNCIAS
 
CORDEIRO, Fernando. Pesquisa em Seres Humanos: aspectos éticos e normatização. Ged-Gastrenterologia Endoscopia Digestiva, v. 9, n. 2, p. 21, abr./jun. 1990.

CRUZ, Ricardo; COKE, M. Principios iticos en investigaciones cientificas humanas. Revista Médica de Chile, v. 122, n. 7, p. 821-822, jul. 1994.

DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 13 dez. 1988.

FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundo Editorial Byk, 1991.

MEIRA, Affonso Renato. A experimentação com seres humanos: ética e lei. Revista Paulista de Medicina, p. 131, maio/jun.1991.

SAAD HOSSNE, William; VIEIRA, Sonia. Experimentação em seres humanos. Globo Ciência, v. 17, n. 37, p. 46-47, nov. 1987.

SPINSANTI, Sandra. Ética biomédica. Edições Paulinas, 1990. VEJA, 22 mar. 1995. p. 74-75.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 16/01/2014
Reeditado em 16/05/2021
Código do texto: T4652477
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.