Breves antecedentes da procriação assistida
Texto contido em:
MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].

 
 
Não será difícil identificar, na memória cultural da humanidade, inúmeras situações que nos remetem à procriação humana. Veja-se, por exemplo, na mitologia grega, a lenda do nascimento de Perseu, cuja mãe, Danae, filha de Acrísio, enclausurada para evitar a concepção de um filho predestinado a usurpar o trono do avô, concebeu-o durante o sono, através de Zeus, o rei dos deuses, que transformando sua semente em chuva de ouro, inseminou-a. Pelos flancos do oriente, lendas fantasiam as mentes mais criativas, dizendo das inseminações feitas por Vanijin, deusa da fertilidade, para cujo templo as mulheres se dirigiam sozinhas e de lá retornavam prenhas. Ou ainda a célebre narração da Bíblia quanto ao fato de Jesus Cristo vir ao mundo concebido pela Virgem Maria, sem que esta houvesse mantido relação sexual com seu marido José.
 
Além desses relatos, abre-se na história o registro de que Henrique IV e D. Joana de Portugal, na Espanha do Século XV, tentaram, em vão, a concepção artificial de um herdeiro. Em 1785, Thouret, decano da Faculdade de Medicina de Paris, logrou fecundar sua mulher estéril com uma injeção intravaginal de seu próprio sêmen por meio de uma seringa de estanho. Em 1799, o cirurgião inglês Hunter conseguiu que a esposa de um lorde tivesse um filho decorrente da inseminação. Em 1833, Girault, na França, consegue realizar, pela primeira vez, a inseminação artificial homóloga e publica o resultado positivo de oito mulheres, entre elas uma que obtivera gravidez gemelar. No ano seguinte, nos Estados Unidos, acontece o primeiro caso de inseminação artificial heteróloga, por Pancoast, em uma mulher cujo marido sofria de azoospermia, deficiência que consiste na ausência de gametas no esperma.
 
Como se vê, a concepção sem a conjunção sexual vem de prístinas eras, da mitologia à realidade, ensejando-se, inclusive, a inseminação artificial na espécie humana ainda no século XIX. Contudo, a técnica que prometeu realizar o sonho de diversos casais de ter um filho apenas foi aperfeiçoada e aplicada, com sucesso, a partir do nascimento da pequena Louise Joy Brown, em julho de 1978, fruto da primeira fertilização in vitro, resultado do trabalho do ginecólogo Patrick Steptoe e o fisiólogo Robert Edwards, na Inglaterra.[1] Neste mesmo ano, Randolph W. Seed e Richard W. Seed desenvolveram a técnica de transplante de embrião do útero de uma mulher para outra, que passou a ser denominada como mãe substituta.
 
A importância dessas conquistas evidenciou-se com a criação dos chamados bancos de sêmen, infra-estruturas técnicas e administrativas que permitem a preservação de embriões humanos congelados, por tempo variável. O congelamento e a criopreservação do sêmen a temperaturas de -196ºC permite seu descongelamento posterior com a necessária mantença da capacidade fecundante, o que possibilitou a maior difusão da inseminação artificial e o conseqüente nascimento de milhares de crianças concebidas através deste procedimento. Foi o que ocorreu, em 1983, na Austrália, com o nascimento da primeira criança obtida por recolocação intra-uterina de um embrião descongelado.[2]

No Brasil, o ginecologista Milton Nakamura, foi o responsável pelo nascimento, em 7 de outubro de 1984, do primeiro bebê de proveta do Brasil e da América Latina, Anna Paula Caldeira, de São José dos Pinhais (PR), no Hospital Santa Catarina, em São Paulo.
 
Em contraste aos Estados Unidos[3], França[4], Inglaterra[5] e Espanha[6], não tem havido no Brasil, atividade jurisprudencial em torno das técnicas de reprodução assistida. Em 1994 alcançou notoriedade pública um caso curioso sobre um casal de negros, ele negro de pai e mãe e ela mulata, filha de mãe negra e pai mulato. O fato foi ocultado dos amigos, mas da intervenção nasceu uma criança clara de olhos esverdeados e os problemas começaram na vida do casal, que afirma ter pedido um filho negro. Ridicularizados pelos amigos, que julgavam a mulher como traidora do marido, entraram com denúncia no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, mas foi decidido o arquivamento do caso, por falta de provas de comportamento antiético dos médicos. Após uma tentativa de suicídio, o marido, já recuperado, resolveu entrar na Justiça exigindo indenização por danos morais para a família e o pagamento de um tratamento psiquiátrico para o filho. Além disso, o comentário em Porto Alegre, seria o de que o menino se parece fisicamente com o bioquímico que fez a inseminação[7], o que agrava o caso, pois a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, que estabelece as Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, no Capítulo IV, relativo à doação de gametas ou pré-embriões, proíbe expressamente na decisão n. 7, que os médicos responsáveis pelas clínicas, unidades ou serviços, assim como integrantes da equipe multidisciplinar que nelas prestam serviços, participem como doadores nos programas de reprodução assistida. Embora árdua, não logrou êxito a tentativa de aqui trazer o final, ou mesmo o andamento dessa contenda judicial.
 
Com vistas à legalização no Brasil, quando da elaboração da nova Constituição, alguns projetos e anteprojetos foram apresentados, embora visível a falta de bases científicas dos textos, além de apresentarem como característica geral, um estilo e técnica dissertativa homogêneos que induz Monica Sartori Scarparo a denunciar a suspeita de que sua elaboração é proveniente de fonte única, influenciada por algum lobby religioso interessado em impedir que a Nova Constituição acatasse as técnicas de procriação assistida.[8]

 

[1] Em 1965, Edwards publicou os primeiros resultados das suas investigações, tendo então escrito: Talvez o maior desafio deste trabalho esteja na possibilidade de obter óvulos humanos fertilizados “...” A grande quantidade de óvulos que se pode obter de um ovário permirtir-nos-á fazer crescer embriões humanos in vitro e além disso controlar algumas das desordens genéticas do homem. EDWARDS, R. G. Maturation in vitro of human ovarian oocytes. The Lancet, London, n. 2, p. 926-929, 1965. Em 1969 publicam os dois cientistas o primeiro trabalho conjunto, entregando ao público científico dados essenciais sobre a possibilidade de fertilizar óvulos humanos in vitro e demonstrando que também in vitro os espermatozóides penetram os óvulos. EDWARDS, R. G., BAVISTER, B. D., STEPTOE, P. C. Early stages of fertilization in vitro of human oocytes matured in vitro. Nature, n. 221, p. 632-635, 1969. Em 1970, mais uma vez vêm a público num estudo sobre a possibilidade de controlar o desenvolvimento folicular e a maturação do óvulo usando gonadotropina menopáusica humana (HMG) e gonadotrapina coriônica (HCG). STEPTOE, P. C., EDWARDS, R. G., Laparoscopie recovery of preovulatory human oocytes after priming of ovaries with gonodotrophins. The Lancet, London, n. 1, p. 683-689, 1970. Em 1976, a equipe de cientistas ingleses tornava pública uma gravidez ectópica tubárica resultante da transferência de um embrião fecundado in vitro. STEPTOE, P. C., EDWARDS, R. G. Reimplantation of a human embryo with subsquent tubal pregnancy. The Lancet, London, n. 1, p. 880-882, 1976. Dois anos depois, em agosto de 1978 surge em publicação de menos de uma página, a comunicação que comoveu o mundo, em que se relata o êxito obtido por uma fecundação extracorpórea. Uma mulher de trinta anos, portadora de patologia tubária grave, deu à luz uma menina sã, após ser-lhe transferido ao útero um embrião de oito células gerado in vitro. STEPTOE, P. C., EDWARDS, R. G. Birth after the reimplantation of a human embryo. The Lancet, London, n. 2, p. 366, ago. 1978.
 
[2] LEROY, Fernand. Banque d’embryons. In: HOTTOIS, Gilbert, PARIZEAU, Marie-Hélène. Les mots de la bioéthique: un vocabulaire encyclopédique. 1. ed. 2. tir. Belgium: De Boeck Université, 1995, p. 39.
 
[3] Em 1984, os californianos Elsa e Mario Rios descobriram, após terem perdido uma filha em acidente, que não podiam ter filhos. Recorreram ao Queen Victoria Medical Center, em Melbourne, Austrália, e, a partir de dois óvulos de Elsa, encomendaram uma criança. Souberam depois que os óvulos foram fecundados pelo esperma de um doador australiano. Logo a seguir, os Rios morreram em desastre de avião no Chile, deixando uma herança de U$ 10 milhões, que Michel Rios (filho do primeiro casamento de Mario) viu-se na obrigação de disputar com dois embriões congelados. A angústia de Michael foi prontamente socorrida pela astúcia da advogada Laura Horwith que sutilmente levou a justiça australiana a cogitar em descongelar os embriões, questionando: Pode um embrião ser considerado pessoa e estar apto a herdar uma fortuna? Constrangido, o Dr. Carl Wood, chefe do programa de bebês de proveta do Quenn Victoria, disse, para alívio de Michael que, na verdade, as possibilidades de sobrevivência dos embriões ao processo de descongelamento eram remotas. Finalmente, em 1988, os tribunais americanos e australianos decidiram que os embriões não eram herdeiros legais dos Rios, mas deveriam ser descongelados e implantados no útero da mulher disposta a adotá-los. MELLO, João de Oliveira. Bebês de proveta: procriação de laboratório: mães de aluguel: por que não a adoção. Femina, p. 686, 1990. Ciência e consciência. Em 1986, no Caso Baby M., a mãe de aluguel, Mary Beth Whitehead, de Nova Jersey, recusava-se a entregar a filha ao casal contratante. A Justiça deu ganho de causa ao casal. Em 1989, Junior Lewis Davis, de 30 anos iniciou os trâmites legais para se divorciar de Mary Sue, 28 anos, pedindo que lhe fosse proibida a fecundação, sem seu consentimento, com embriões conservados em nitrogênio líquido no centro de fertilidade do Estado de Tennessee. Davis não queria a destruição dos embriões, mas exigia um direito de veto sobre sua utilização. Mary, por sua vez, desejava implantá-los. Um juiz deu a Mary a tutela dos embriões, mas a pendência prossegue. OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997, p. 40-41. (Coleção Polêmica). Ver também: Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná, Londrina, n. 24, p. 53, out./dez. 1989.
 
[4] Em 1990, uma mulher de 37 anos, grávida de gêmeos, após seis tentativas frustradas de FIV, abortou espontaneamente e quando estava internada para a realização da curetagem o marido morreu, vítima de acidente automobilístico quando ia visitá-la no hospital. O casal ainda possuía dois embriões em estoque. Quando a mulher solicitou o implante, o médico não concordou, justificando que, como os embriões eram do casal, com a morte do marido ela perdera os direitos sobre eles. Em 1992, a clínica guardiã manifestou-se contra o implante, alegando que o casal assinara um documento no qual constava que no momento da transferência dos embriões os dois estariam presentes. A viúva recorreu à Justiça que, em face das posições irreconciliáveis da clínica e da viúva, firmou um acordo entre as partes: a clínica continuaria a ser guardiã dos embriões até que a Justiça desse a palavra final. Cerca de um ano depois, em resposta a uma ação da viúva, o juiz sentenciou que o hospital estava isento de continuar a oferecer os seus serviços diante da morte de um dos cônjuges. Essa decisão foi reafirmada em abril de 1994: Os embriões congelados, originalmente destinados para tratamento de infertilidade e não possuindo quaisquer direitos estatutários, deveriam ser destruídos por ordem judicial. Contudo esse último procedimento legal ainda não foi, ao que saibamos, levado a termo “...” A nova lei de bioética (Lei 29, de julho de 1994) estipula que a guarda dos embriões deve cessar, caso não sejam utilizados pelo casal após cinco anos de congelamento. OLIVEIRA, Fátima. Bioética : uma face da cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997, p. 41. (Coleção Polêmica).
 
[5] Os Tribunais ingleses manifestaram-se no caso Oxford versus Oxford, em 1921 e Russel versus Russel, em 1924, declarando que a prática da inseminação artificial heteróloga se constitui em crime de adultério. CASTILHO NETO, Arthur de. Inseminação artificial humana : as descobertas científicas e o direito brasileiro. Revista de Direito da Procuradoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 1, p. 63-64, mar./jul. 1975.
 
[6] Em 1990, uma senhora, mãe de cinco meninos, foi inseminada artificialmente mediante técnicas para a seleção pré-concepcional do sexo do neoconcebido, pois desejava ter uma menina. A questão traz um forte debate jurídico e se encontra pendente de resolução. HERRANZ, Gonzalo. Informe sobre la fivet : descripción, demanda social en España, valoración ética y legislación y jurisprudencia. Universidad de Navarra, Internet: http://www.unav.es/castellano/pamplona/facultades/medicina/bioetica/informe1.html.
 
[7] CAMINOTO, João Fábio. A cor da discórdia. Veja, São Paulo, 7 dez. 1994. Família, p. 128-129. Essa história brasileira parece versão da que ocorreu, em 1992, com um médico americano e que se passa a relatar: o médico Cecil Jacobson, que por 25 anos dirigiu uma das mais caras clínicas de fertilidade da área metropolitana de Whashington, foi condenado a 5 anos de prisão por ter inseminado com seu próprio esperma dezenas de clientes que achavam estar recebendo amostras de um banco de sêmem. A promotoria havia pedido dez anos para Jacobson. A pena máxima poderia ser de 280 anos de prisão. O julgamento foi em Alexandria (Virgínia), tendo sido o médico ainda condenado a pagar U$$75 mil de multa e U$$39 mil de indenizações, além de ter sido considerado culpado por 52 acusações de falsidade ideológica e responsabilidade por graves danos psicológicos. O advogado de Jacobson disse que o médico vai recorrer da condenação, tentando justificar que a decisão de usar o próprio sêmem nas inseminações, veio pelo fato de Jacobson ser um homem saudável e que só havia feito sexo nos últimos 35 anos com a sua própria mulher. O médico teve sete filhos de seu casamento, fechou a clínica em 1988 e hoje faz pesquisas genéticas. Arquivo do Conselho Regional de Medicina do Paraná, Londrina, v. 8, n. 31-32, p. 117, jul./dez. 1991.
 
[8] Entre outros: Projeto da Deputada Rita Camata; Anteprojeto da Deputada Sandra Cavalcanti; Anteprojeto do Deputado Virgílio Távora; Anteprojeto do Deputado Ervin Bonkoski; Anteprojeto do Deputado Francisco Rollenberg.
 
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 12/02/2014
Reeditado em 29/08/2016
Código do texto: T4688645
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