O princípio constitucional da ISONOMIA

"Pouca importância dão, em geral, os nossos publicistas às ‘questões de princípios’. Mas os princípios são tudo. Os interesses materiais da nação movem-se de redor deles, ou, por melhor dizermos, dentro deles." Rui Barbosa

1.0- O Princípio Constitucional da Isonomia

1.1- Introdução

1.1.1- Definição e Consagração Constitucional

1.1.2- A Biplanitude Aplicativa – legislador e intérprete

1.1.3- A Tríplice Finalidade Limitadora – o legislador, o intérprete e o particular

1.2- O Princípio da Isonomia e o Dec. Nº 4.228/2002

1.2.1- Instituição do Programa Nacional de Ações Afirmativas

1.2.1.1- A Cota Para Negros

1.2.2- A Igualdade de Oportunidades e Direitos, e a Discriminação em Razão da Cor e da Raça

1.3- A Cota Para Negros nas Universidades. Gravame ao Princípio Isonômico

1.3.1- Legitimidade de Um Regime Jurídico Diferenciado – A Não Razoabilidade

1.4- Cota Para Universidades: Sugestão

1.4.1- A Desigualdade Econômica

1.5- Outras Cotas

1.5.1- Legitimidade do Regime Jurídico

1.6- Conclusão

1.6.1- A Inconstitucionalidade da Cota Reservada a Negros à Universidade.

I - Introdução

Nossa carta Magna de 1988 evidencia a magnitude do Princípio da Isonomia em vários dos seus artigos, especialmente, nos arts. 3º, IV; 5º, caput, I, VIII, XLII; e 7º, XXX, XXXI e XXXIV.

Este princípio baseia-se na igualdade de todos perante a lei. Igualmente jurídica, portanto, porque, naturalmente, os homens são desiguais. O princípio da isonomia não afirma que todos os homens são iguais no intelecto, na capacidade de trabalho ou condição econômica; mas, sim, que todos são iguais perante a Lei, onde os méritos iguais devem ser tratados igualmente, e situações desiguais, desigualmente.

A isonomia opera em dois planos distintos: diante do legislador, ou do próprio executivo, na edição de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que eles possam criar tratamentos diferentes a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete (autoridade pública), de aplicar a lei e os atos normativos de modo igualitário, sem que o mesmo estabeleça diferença em razão do sexo, religião, raça, classe social, convicções filosóficas e/ou políticas, etc.

Inobstante esta biplanitude, o princípio da igualdade possui uma tríplice finalidade limitadora, quais sejam, o legislador; o intérprete (autoridade pública); e o particular. Vejamos:

O legislador, no exercício de sua função constitucional de edição normativa, jamais poderá se afastar do princípio isonômico, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Deste modo, as normas que criem diferenciações abusivas, serão incompatíveis com a Constituição federal.

O intérprete não poderá, ao subsumir os casos concretos às leis e aos atos normativos, criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. O Poder Judiciário, v.g., exercendo sua função jurisdicional de dizer o direito ao caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar uma interpretação única e igualitária às normas jurídicas diante das mesmas situações fáticas.

E, por fim, o particular não poderá pautar-se por condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas, sob pena de responsabilidade civil e penal, nos termos da legislação em vigor.

II – O Princípio da Isonomia e o Decreto 4.228, de 13.05.2002, (que institui, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas).

Tornou-se coqueluche a discussão acerca das medidas legislativas e administrativas que estabelecem "cotas para negros". São vagas reservadas para acesso a universidades e a cargos públicos; número mínimo de atores em filmes nacionais, et coetera.

O debate exalta-se com opiniões contundentes, desdobramentos dos sentimentos mais íntimos. Carrega questões morais, preconceitos e anseios por justiça social. Mas, o que se concluiria a partir de uma abordagem unicamente jurídica?

A pretensão do governo federal no sentido de garantir aos negros um determinado percentual das vagas nas escolas de nível superior e nos concursos para preenchimento de cargos no serviço público, a pretexto de garantir-lhes igualdade de oportunidades e direitos, trouxe à tona, uma velha discussão: discriminação em razão de cor e raça.

Deste modo, pergunta-se ao jurista: a cota para negros atende à Constituição Federal? Ela fere, ou não, o princípio da isonomia?

Temível se mostra, a nosso sentir, essa medida que, embora teoricamente possa ser tida como uma ação afirmativa, de natureza inclusiva; no campo da prática, pode institucionalizar a discriminação das pessoas negras, na medida em que não leva em conta suas capacidades, mas a cor da pele, o que é inadmissível, constituindo-se em um grande retrocesso.

Não nos parece razoável a reserva de certo percentual de vagas nas universidades e nos concursos públicos, com base no critério da cor, como forma de permitir o acesso dos negros ao ensino superior e aos cargos públicos, como se eles fossem pessoas sem capacidade, ou, cidadãos de segunda categoria.

O tratamento discriminatório dado pela Administração, derivado ao cidadão da raça negra é manifesto.

Preleciona Hugo Nigro Mazzilli, que, "torna-se preciso compreender que o verdadeiro sentido da isonomia, constitucionalmente assegurada, é tratar diferentemente os desiguais, na medida em que se busque compensar juridicamente a desigualdade, igualando-os em oportunidades".

Ora, o combate à discriminação é medida que só se tornará realidade, se combinarmos a proibição de atos discriminatórios com as chamadas políticas compensatórias.

Para que se possa assegurar a igualdade, não basta proibir a discriminação mediante legislação repressiva. É indispensável estabelecer estratégias promocionais capazes de estimular a inserção dos chamados grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais.

Como um poderoso instrumento de inclusão social situam-se as ações afirmativas, que se constituem em medidas especiais que têm por objetivo acelerar o processo de igualdade, com o alcance da isonomia não apenas formal, mas, substantiva por parte dos "grupos vulneráveis".

Não se pode, sob pena de manifesta e afrontosa violação aos princípios da não discriminação e da igualdade previstos nos arts. 3o e 5o da Constituição, tratar de forma desigual os estudantes e os trabalhadores negros - que têm, em igualdade de condições com todos os demais cidadãos, porque igualmente capazes, probos e dignos - o direito de acesso às vagas nas universidades e no serviço público.

Como afirma Ronald Dworkim ao tratar da questão da igualdade, o pressuposto da legitimidade do Estado de Direito depende de que as instituições demonstrem igual respeito e preocupação com todos os cidadãos. Como o maior ou menor bem-estar das pessoas depende, em grande parte, do conteúdo das leis, o Estado perderá legitimidade se o funcionamento destas leis não tiver a capacidade de demonstrar obediência ao requisito de tratamento igual a todos. E, se as desigualdades não forem atenuadas, não se pode alegar que o Estado esteja cumprindo sua obrigação de assegurar o requisito da igualdade.

Discriminação é distinção; discriminar é desigualar. Assim, está-se frente ao tema igualdade. O que é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, como asseverou Aristóteles. Qual é a medida das desigualdades entre os negros e os não-negros?

Socorre-se de um segundo clássico, O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, do eminente administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello. Numa abordagem unicamente jurídica, o livre-docente aduz três subquestões: a) qual o elemento tomado como fator de discriminação; b) qual a correlação lógica abstrata entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diverso que dele decorre; e c) qual a consonância desta correlação lógica com o sistema constitucional.

O tema é tão concreto que as respostas emergem prontamente. Reflita-se na cota para universidades. Têm-se: a) o fator de discriminação toma por elemento, basicamente, a cor da pele ou, mais propriamente, a quantidade de melanina nela, classificando os indivíduos no que podemos chamar de "perfis de cor da pele"; b) a correlação lógica abstrata é a reserva de um certo número de vagas nas universidades – o tratamento jurídico diversificado – àqueles cuja cor da pele enquadra-se em determinados perfis – o fator de discriminação; e c) nossa Constituição Federal, por diversas passagens, deixa clara sua opção por reduzir a discriminação entre grupos humanos, inclusive a oriunda de diferenças de raça e de cor.

Fiéis à abordagem jurídica, e atentos aos preciosos ensinamentos do administrativista, deve-se aprofundar a análise da segunda subquestão, eis que, ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico.

III – Cota para negros nas universidades: gravame ao princípio da isonomia

Qual a relação de pertinência lógica entre perfis de cor da pele com a inclusão no benefício de acesso à universidade? Aqui reside a inconsistência. Veja-se.

O que faz com que o negro tenha menos acesso às vagas nas universidades que legitime um regime jurídico diferenciado? Se a resposta for "a cor da pele", então pode-se afirmar que há pertinência lógica entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diverso, dele decorrente. Firma-se esta conclusão a partir de uma abordagem unicamente jurídica.

A norma, para se qualificar como aderente ao princípio constitucional da isonomia, toma por fato a hipótese de que perfis de cor da pele, de per si, influem no resultado da prova de admissão na universidade, o que é um desatino. E pior: prevendo um "benefício" ao perfil de cor da pele negra, toma por fato a hipótese de que o negro obtém resultados piores que o não-negro. Em palavras curtas: pressupõe que o negro seja menos inteligente que o branco.

IV – Cota para universidades: sugestão

O absurdo acima, autoriza a divagação. O acesso às universidades decorre de aprovação em concurso, invariavelmente. Tal concurso é franqueado àqueles que atendem a requisitos de escolaridade mínima e recolhem o preço da inscrição. Logram aprovação os que obtêm melhores notas nas áreas de conhecimento analisadas, considerando critérios de correção mormente impessoais. Conclui-se que são aprovados os mais preparados, em tese.

Assim, o acesso às universidades tem pertinência lógica com o preparo do candidato, não desconsiderando a escolaridade mínima e a possibilidade de se custear o preço da inscrição.

São fatos notórios que o ensino público brasileiro deixa a desejar, notadamente o ensino médio, e que, a quase totalidade dos candidatos aprovados nos mais concorridos vestibulares, provêm de escolas particulares. Ora, se é o currículo do ensino médio o maior objeto do concurso de acesso à universidade, tudo se resume a uma só desigualdade: a desigualdade econômica.

É o pobre, e não o negro, que tem dificuldade de acesso à universidade. Ele não pôde se preparar numa escola particular; ele não pode dispor de numerário para recolher o numerário referente à inscrição.

Parece, portanto, mais correto prever um acesso beneficiado à universidade ao pobre, cujo mecanismo abrangeria desde a dispensa do recolhimento do valor da inscrição à cota de vagas reservadas, propriamente. Tal discriminação positiva adere total e facilmente ao nosso sistema constitucional, que prestigia a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais.

V – Outras cotas

Frise-se que a análise aqui procedida para a cota para negros nas universidades não produz, necessariamente, o mesmo resultado se aplicada às demais hipóteses. Em outras situações, pode haver pertinência lógica entre perfis de cor da pele e o regime jurídico diferenciado.

Tomemos como exemplo hipotético a previsão de cota para acesso a cargos na iniciativa privada. Se há discriminação do negro na seleção – comumente pautada em critérios pessoais – de empregados, em vista de preconceitos de raça ou de cor, então esta cota não fere o princípio da igualdade, antes o proclama.

VI – Conclusão

Como aqui exposto, a norma que prevê cota reservada a negros nas universidades carece de constitucionalidade, por ferir o princípio da igualdade. Prega, inconsciente e infelizmente, a superioridade intelectual do branco sobre o negro. Não acerta no critério e tende a discriminar um novo grupo de pessoas ainda mais excluído: os negros pobres.

Porém, não é toda cota para negros inconstitucional. Há de se verificar se o regime jurídico diverso, que prevê um privilégio ao negro, se apóia numa desvalia decorrente da cor de sua pele. Tem probabilidade de haver prejuízo ao negro, dado o subjetivismo ou o preconceito, na entrevista para admissão numa empresa ou para a indicação a uma função de confiança, não provida por concurso. Mas não haverá num certame de provas corrigidas objetivamente, onde não seja possível ao examinador identificar o candidato sob análise, como no ingresso às universidades via exame vestibular.

Tentou-se, dessa forma, proceder a uma análise fria do tema, à margem de sentimentos éticos e pessoais, como contribuição, à discussão tão versada nos últimos meses.

Rosimar Lima de Melo e Castro, advogada da Castro e Melo Advocacia e Consultoria, e pós graduada em Direito Público pela UNIFACS/ Salvador/BA.

Anexo:

DECRETO Nº 4.228, DE 13 DE MAIO DE 2002

(DOU 14.05.2002)

Institui, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas e dá outras providências.

O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea a, da Constituição,

Decreta:

Art. 1º Fica instituído, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, sob a coordenação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça.

Art. 2º O Programa Nacional de Ações Afirmativas contemplará, entre outras medidas administrativas e de gestão estratégica, as seguintes ações, respeitada a legislação em vigor:

I - observância, pelos órgãos da Administração Pública Federal, de requisito que garanta a realização de metas percentuais de participação de afro-descendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS;

II - inclusão, nos termos de transferências negociadas de recursos celebradas pela Administração Pública Federal, de cláusulas de adesão ao Programa;

III - observância, nas licitações promovidas por órgãos da Administração Pública Federal, de critério adicional de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedores que comprovem a adoção de políticas compatíveis com os objetivos do Programa; e

IV - inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais, de dispositivo estabelecendo metas percentuais de participação de afro-descendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência.

Art. 3º Fica constituído o Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas, com a finalidade de:

I - propor a adoção de medidas administrativas e de gestão estratégica destinadas a implementar o Programa;

II - apoiar e incentivar ações com vistas à execução do Programa;

III - propor diretrizes e procedimentos administrativos com vistas a garantir a adequada implementação do Programa, sua incorporação aos regimentos internos dos órgãos integrantes da estrutura organizacional da Administração Pública Federal e a conseqüente realização das metas estabelecidas no inciso I do art. 2º;

IV - articular, com parceiros do Governo Federal, a formulação de propostas que promovam a implementação de políticas de ação afirmativa;

V - estimular o desenvolvimento de ações de capacitação com foco nas medidas de promoção da igualdade de oportunidades e de acesso à cidadania;

VI - promover a sensibilização dos servidores públicos para a necessidade de proteger os direitos humanos e eliminar as desigualdades de gênero, raça e as que se vinculam às pessoas portadoras de deficiência;

VII - articular ações e parcerias com empreendedores sociais e representantes dos movimentos de afro-descendentes, de mulheres e de pessoas portadoras de deficiência;

VIII - sistematizar e avaliar os resultados alcançados pelo Programa e disponibilizá-los por intermédio dos meios de comunicação; e

IX - promover, no âmbito interno, os instrumentos internacionais de que o Brasil seja parte sobre o combate à discriminação e a promoção da igualdade.

Parágrafo único. O Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas apresentará, no prazo de sessenta dias, propostas de ações e metas a serem implementadas pelos órgãos da Administração Pública Federal.

Art. 4º O Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas tem a seguinte composição:

I - Secretário de Estado dos Direitos Humanos, que o presidirá;

II - Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, que substituirá o presidente em suas faltas e impedimentos;

III - um representante da Presidência da República;

IV - um representante do Ministério das Relações Exteriores;

V - um representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário;

VI - um representante do Ministério da Ciência e Tecnologia;

VII - um representante do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;

VIII - um representante do Ministério do Trabalho e Emprego;

IX - um representante do Ministério da Cultura;

X - um representante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDA;

XI - um representante do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência - CONADE;

XII - um representante do Conselho Nacional de Combate à Discriminação - CNCD; e

XIII - um representante do Grupo de Trabalho Interministerial e Valorização da População Negra.

§ 1º O Presidente do Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas poderá convidar para participar das reuniões um membro do Ministério Público do Trabalho.

§ 2º Os membros de que tratam os incisos III a XIII serão indicados pelos titulares dos órgãos representados e designados pelo Ministro de Estado da Justiça.

Art. 5º Os trabalhos de Secretaria-Executiva do Comitê de Avaliação e Acompanhamento de Ações Afirmativas serão prestados pelo IPEA.

Art. 6º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 13 de maio de 2002; 181º da Independência e 114º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Miguel Reale Júnior

Celso Lafer,

Paulo Jobim Filho

Guilherme Gomes Dias

Francisco Weffort

Ronaldo Mota Sardenberg

José Abrão

Rose Melo
Enviado por Rose Melo em 15/08/2007
Código do texto: T608264