CONTRIBUIÇÃO DA REALIDADE AUMENTADA AO DIREITO PENAL

Em um dos mais rumorosos julgamentos dos últimos tempos, o promotor do caso, para provar a culpa dos réus, usou as maquetes de um prédio e de um apartamento, cenário de onde uma criança fora jogada para morte. Consta dos autos que o pai com a filha nos braços subiu na cama e, após se desequilibrar, deixara uma pegada no lençol. Por abertura feita na tela de proteção da janela houve o arremesso da criança de uma altura de vinte metros, artifício intentado pelo casal para esconder o delito. As maquetes do prédio e do apartamento do casal seriam peças esclarecedoras do crime e serias fundamentais para o convencimento dos jurados sobre a tese da acusação no julgamento.

Os peritos do Instituto de Criminalística para convencerem o promotor sustentaram que além da facilitação do entendimento do crime as maquetes detalhariam a participação de cada um no assassinato. Para os técnicos seria muito difícil para os jurados entenderem a dinâmica do crime olhando simples fotografias. 1 Não se sabe se foi a fala de confiança nas maquetes, mas o Instituto de Criminalística produziu também vídeo e fotos dos acontecimentos que foram usados igualmente pela promotoria para sustentar a acusação.

A defesa não se impressionou tanto com o aparato ministerial quanto a imprensa. Os jornalistas que cobriram o julgamento tornaram as maquetes do promotor tão famosas quanto a maquete do projeto da ONU, em Nova York, admirada pelos arquitetos mais famosos do mundo e a primeira consagração mundial de Oscar Niemeyer.1 Para a defesa “se a maquete for bem feita, ela não prejudicará nosso trabalho. Se retratar os detalhes e a vulnerabilidade do prédio, ela vai reforçar a nossa convicção...”2

No meio jurídico, alguns desgostaram outros teceram críticas, e os mais radicais chegaram a fazer mofa do uso das maquetes. Talvez por se enfileirar ao lado dos que desgostaram da ideia, um jornalista quebrou a chaminé da churrasqueira da maquete, durante depoimento prestado no Fórum. Ao final do interrogatório, ficou para a história que o promotor se dirigiu à testemunha agradecendo o depoimento, apesar de ter quebrado a maquete.

À época do julgamento, a prática forense computacional já era aplicada aos processos legais na busca de evidências e responsabilização de envolvidos em crimes. Com a utilização de imagens 3D, já era, até, possível dar-se formas tridimensionais às ideias de projeto, com os destinos mais diversos. Com tanta tecnologia disponível, o Promotor do caso, optou por duas maquetes construídas no modo tradicional, com madeira, placas de isopor laminado, revestido com papel nas duas faces ou outro material utilizável como o espaguete ou palitos para churrasco que a um simples toque de dedos uma delas quebrou.

Não se critica o uso de maquetes. Como tantos outros objetos que podem ser utilizados pelas partes na sessão plenária, as maquetes comparam-se aos jornais, escritos, vídeos, filmes, retratos-falados, gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer meio assemelhado que digam respeito diretamente à situação fática submetida a julgamento pelo Conselho de Sentença.

Alguns aspectos, contudo merecem reflexão. Se a título de contraprova, a defesa, querendo realmente impressionar o corpo de jurados, houvesse requerido maquetes eletrônicas, ferramentas da realidade virtual, mais poderosas e que ajudariam a compreender melhor os espaços e a projeção da criança, para sustentar a tese defensiva, o juiz deferiria o custeamento pelo estado? Acredita-se que não. Sob o fundamento de ser facultado o indeferimento da produção de provas que julgar protelatórias, irrelevantes ou impertinentes, poderia indeferir fundamentado no fato de que não traria nenhuma utilidade, mesmo provada a imprescindibilidade da prova.

Poderia o juiz, ainda, à semelhança de requerimentos de diligências pela polícia civil, fundamentar a negativa na falta de previsão legal, quebrando a paridade de armas e comprometendo a ampla defesa. O interesse pela correta aplicação da justiça é postulação, não somente das partes, do Ministério Público e da Magistratura criminal, mas da sociedade como um todo.

O cenário do crime e o crime em si eram assim tão complexos que fotografias e vídeos não conseguiriam esclarecer as circunstâncias das quais resultaram o homicídio? Não se teve acesso aos autos, mas as notícias divulgadas sugerem que os acontecimentos poderiam ser demonstrados inclusive com palavras. E se o juiz fosse adepto da tecnologia aplicada aos tribunais e deferisse o pedido da defesa, em que poderia contribuir a novíssima tecnologia das maquetes eletrônicas utilizando a realidade aumentada? O que é realidade aumentada? É possível sua utilização no direito penal?

Realidade aumentada consiste numa técnica avançada de interface computacional, que permite a sobreposição de objetos virtuais no mundo real. Considerada uma variante da realidade virtual, a realidade aumentada suporta uma visualização de maneira altamente realista, incrementando a percepção do usuário no uso de uma interface de computador.

Em linguajar simples é a interação de objetos reais e virtuais. A realidade aumentada é uma realidade virtual, mas não é algo que faça parte, exclusivamente do mundo virtual artificial, como se pode pensar. A realidade aumentada mantem o contexto refletido pelo mundo real, apenas sobre a cena que se observa são inseridas novas informações. É Mariluz López Pérez que em artigo de 2012 dá uma amostra do conceito da realidade aumentada e aponta diversas aplicações que incorporam a tecnologia, discutindo também algumas das mais recentes curiosidades sobre a realidade aumentada.3

Às vezes, é impossível se fazer entender sobre algo novo sem exemplo de aplicação. Tome-se, pois o caso do Muro de Berlim em que a sobreposição da imagem do muro original sobre a atual permite observar as transformações ocorridas ao longo do tempo. Tal ocorre porque um sistema de geolocalização uniu com um mapa alguns pontos ao longo do muro e assim, qualquer pessoa de posse do aparelho correto, pode ver cenas históricas que aconteceram exatamente naqueles locais. Uma das cenas mais clássicas que a aplicação permite visualizar é a fuga de Frida Schulze, uma alemã que saltou pela janela do apartamento onde vivia. 4

Com o exemplo dado, é fácil imaginar o quão útil este tipo de tecnologia pode ser à justiça. O salto de Frida para a liberdade, de certo modo, se aproxima do arremesso da vítima pela janela no caso alhures figurado. Imagine, pois o investigador, o perito criminal ou o promotor munido de equipamento de captação de imagens registrando o prédio ou quarto onde ocorreu o crime. Sobre a imagem captada do ambiente real, o sistema incluiria on line as informações adicionais pretendidas seja em relação ao espaço, localização do mobiliário e também projeções em 3D da dinâmica dos personagens no cenário do crime. Projetado em um telão, ao feitio do filme em plenário, os jurados e assistência poderiam perfeitamente, baseados nas imagens em movimento, assimilar as teses que se contrapusessem em plenário.

Durante os depoimentos, na apreciação dos fatos que se demonstravam nas maquetes, ferramentas antiquadas, inadequadas e de resultados controversos, tanto o advogado do acusado quanto os jurados tiveram de ficar em pé para acompanhar a narrativa do Ministério Público. À medida que explorava a cena, o promotor pedia que a testemunha apontasse os locais em que vira manchas de sangue, pegadas etc.

Com o uso de equipamentos de realidade aumentada que não é mais para ser vista como coisa do futuro ou como algo que um dia poderá acontecer a visualização, o entendimento e a formação da convicção seriam facilitados.

Saliente-se que a tecnologia da realidade aumentada vem sendo utilizada não apenas por engenheiros e arquitetos, mas profissionais das áreas médica, publicitária e de jogos eletrônicos também apostam cada vez mais na tecnologia. Isso, sem contar o poder pedagógico da ferramenta. Se no início a tecnologia era restrita a profissionais da computação, e requeria uma verdadeira parafernália, hoje em dia tablets e smartphones dão conta do recado.

As possibilidades de uso da informática, quando lembradas pela justiça, ainda se restringem à novas Tecnologias aplicáveis à área de administração. A estas os juristas dedicam maiores esforços buscando mediante modernização das organizações a celeridade de procedimentos, perseguindo maior eficácia, agilidade e qualidade da Justiça.6

O fosso existente entre o desenvolvimento tecnológico e a capacidade da lei para alcançá-lo sempre foi largo e parece que as dimensões das margens não se estreitam. Mas irá diminuir, não tão breve como necessário. Basta olhar e ver que a lei ainda está tateando em relação às publicações na internet que já tem mais de vinte anos de uso comercial. Os princípios jurídicos fundamentais que se aplicarão às publicações on line e a realidade aumentada serão as mesmas que eles sempre foram. Entrementes, mais cedo ou mais tarde, os tribunais e litigantes irão encontrar uma maneira de adaptar esses princípios em uma base caso a caso.

Nos Estados Unidos, durante a última década surgiram muitos artigos e discursos jurídicos sobre as implicações da realidade virtual, embora os advogados não tenham ainda o entendimento das possibilidades que a realidade aumentada pode trazer para o mundo jurídico.

Mas isso está prestes a mudar. Alguns advogados não se contentam em permanecer sem interagir com as telas de computadores bidimensionais enquanto objetos virtuais e outros dados digitais começam a migrar em massa para o mundo real. É o caso de Brian Wassom, advogado americano, cujos interesses em incorporar a realidade aumentada ao portfólio dos serviços advocatícios prestados vinculam-se à prestação de serviços aos profissionais que atuarão na sociedade que conviverá com essa tecnologia nos próximos anos. Para ele, o advogado deve estar atento às tendências em tecnologia moderna e a realidade aumentada será a tecnologia dominante no futuro próximo. Quem dominar esta tecnologia sairá na frente podendo influenciar os princípios jurídicos que irão reger a utilização dessa tecnologia.7

Brian Wasson, ilustre desconhecido até em seu país de origem, escreveu o primeiro livro que vincula direito à realidade aumentada. Em nota sobre autor e conteúdo, um admirador diz que, Brian Wasson é simplesmente o maior especialista mundial em relação ao uso da realidade aumentada pelo direito. Sua pesquisa pioneira define a forma como a tecnologia é entendida pelos desenvolvedores e como ela deve ser aplicada pelos profissionais do direito. Graças ao crescimento da realidade aumentada o livro torna-se leitura obrigatória para todos.8

Se a palavra de ordem neste admirável mundo novo é realidade aumentada, como as leis e suas formas de aplicação devem se adaptar a um mundo em que a realidade aumentada venha a se tornar onipresente? Pode ser que seja muito cedo para saber as respostas, mas diversas áreas do direito já vêm sendo afetadas pela nova tecnologia.

Na área cível, um campo promissor para a utilização da realidade aumentada e prenhe de conflito ao qual os advogados devem dirigir as atenções é o da pblicidade, sobretudo no que respeita à concorrência desleal. Questões jurídicas envolvendo o scraping, técnica de computação que extrai informações públicas disponíveis em websites começam a surgir nos tribunais dos Estados Unidos e no Brasil. Por aqui, os juízes já se deparam com questões em que devem delinear o uso permissível e não permissível desta tecnologia. 9

Tal como aconteceu com iterações anteriores da tecnologia digital, a realidade aumentada pode influenciar não só a substância do litígio no júri, mas também os procedimentos que a regem. Contudo, não há registro de que o assunto tenha chegado ao país, principalmente no rito do tribunal do júri.

E o campo é auspicioso. Veja-se. No caso de um crime de trânsito onde o agente de homicídio com dolo eventual é incurso no art. 121, § 2o., III do CPB, competência do tribunal do júri, a realidade aumentada poderá ser ferramenta fundamental. Em vez de o acidente ser demonstrado em desenho animado ou animação 2-D, os jurados poderiam usar certo tipo de óculos com a realidade aumentada no plenário do tribunal e, sentindo-se no interior do veículo sinistrado, teriam melhor condições de julgar. Uma série de imagens que demonstram a aplicação da realidade aumentada em acidentes de trânsito é oferecida por Federico Baudino, advogado e criminologista da Policia Judiciária de Córdoba.10

Vídeo distribuído pelo Vimeo, site de compartilhamento, reproduz interessante exemplo de como a realidade aumentada poderia ser útil nos tribunais. Na peça publicitária, o ator que participa de encontro romântico, jogando charme sobre a parceria, por usar óculos especiais, é capaz de pela expressão facial captar o interesse ou desinteresse da parceira na relação.

No âmbito dos tribunais, por ocasião das oitivas do ofendido e das testemunhas, e do interrogatório do réu, caso o juiz ou jurados utilizassem óculos especiais, poderiam conferir a verdade ou a inverdade das declarações proferidas.11

Imagine a mesma tecnologia disponibilizada aos integrantes do Conselho de Sentença composto para julgar o homicídio referido no início do texto. Os jurados poderiam virtualmente ingressar no cenário do crime e analisar as circunstância da ocorrência. Percorrendo as trilhas da realidade aumentada, poderiam avaliar as discrepâncias entre os fatos e as teses suscitadas pela acusação e defesa e formariam juízo seguro para a sentença.

À semelhança do vídeo do Muro de Berlim, poderiam acompanhar a trajetória do corpo caindo no jardim do prédio, evitando-se até o constrangimento da Polícia Técnica que, na reconstituição, teve de usar bonecos passando pela vítima, tornando a cena caricata.

Quando a realidade aumentada terá aplicação nos tribunais brasileiros é algo de difícil prognóstico. Neste campo, o Brasil enfileira-se atrás de alguns países da América do Sul. Rápida consulta ao site que compartilha vídeos em formato digital, YouTube, confirma o que se diz. 12 Pode demorar, mas com certeza qualquer tecnologia que permita que as pessoas alterem sua própria percepção da realidade não pode deixar de efetuar um impacto igualmente radical no comportamento humano e nas normas jurídicas e sociais.

O artigo empenhou-se em oferecer uma perspectiva sobre a contribuição da realidade aumentada para o direito penal. Os exemplos apresentados mostram que a nova tecnologia que combina imagens reais e virtuais em processo computacional enriquece a experiência e melhora o canal de compreensão de fatos pertinentes ao direito penal.

Não se quis criticar a atuação do Ministério Público. Buscou-se tão somente ampliar o entendimento de que os tribunais brasileiros deverão navegar pelos paradigmas de mudança tecnológica. Os juristas devem abandonar de vez o descaso ao novo por ranço ideológico e deixar empoeirando nos baús dos tempos velhas ideias que querem fazer parecer novas, como o uso de maquetes de madeira se quebram ao mero toque de mãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 A elaboração da maquete ficou a cargo da empresa Maquetes Fogassa e sua confecção demorou cerca de três meses. Os custos não foram revelados. Doze funcionários da empresa participaram do projeto. Para reproduzir a cena do crime, os profissionais tiveram acesso às fotos feitas pela perícia e visitaram apartamentos no Edifício London, Zona Norte de São Paulo, onde ocorreu o crime.

2 Documentário conta em detalhes história sobre construção da sede de ONU. Disponível em: https://frankmaraschiomyblog.wordpress.com/2012/12/06/documentario-conta-em-detalhes-historia-sobre-construcao-da-sede-de-onu/. Acesso em: 25 jan. 2015.

3 Julgamento dos Nardoni terá maquete do apartamento e prédio do casal. Gabriela Moreira, do Extra. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/julgamento-dos-nardoni-tera-maquete-do-apartamento-predio-do-casal-3037350>. Acesso em: 24 jan. 2015.

4PEREZ, Mariluz Lópes. Realidad aumentada, una realidad presente. Disponível em: http://www.desarrollomultimedia.es/articulos/realidad_aumentada_articulo.html. Acesso em: 25 jan. 2015.

5 exemplos de como a realidade aumentada já está melhorando a nossa vida. Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2014/11/4-exemplos-de-como-a-realidade-aumentada-ja-esta-melhorando-a-nossa-vida/#. Acesso em: 25 jan. 2015.

6 Neste sentido, ados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, em 2011, 49,45% dos tribunais brasileiros podiam ser classificados como de nível “satisfatório” na área de tecnologia da informação e comunicação (TIC), ao passo que 37,36% apresentam nível “médio” e 13,19% receberam o statu de “aprimorados”. A grande carência apontada no levantamento dizia respeito à capacitação e força mínima de trabalho em Tecnologia da Informação (TI). Ver em: Pesquisa revela avanço na área de tecnologia dos tribunais brasileiros. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/16786-pesquisa-revela-avanco-na-area-de-tecnologia-nos-tribunais-brasileiros>. Acesso em: 25 jan. 2015.

7WASSON, Brian. A 'augmented layer', speaker at #ARSI2013. http://www.augmented-reality.fr%2F2013%2F01%2Fbrian-wassom-a-augmented-layer-speaker-at-arsi2013%2F&anno=2

8 Apresentando o primeiro livro do mundo sobre Direito Realidade Aumentada! Disponível em: < http://www.wassom.com/introducing-worlds-first-book-augmented-reality-law.html&usg=ALkJrhhN2za06JMSjUUOYspWyDfgK1IPKA#sthash.T2gsX284.dpuf

9 Fernando M. Pinguelo, Renato Opice Blum e Kristen M. Welsh Tecnologia da nova era: tribunais brasileiros e americanos Scraping a superfície das fronteiras legais do uso da internet. Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI152061,41046-Tecnologia+da+nova+era+tribunais+brasileiros+e+americanos+Scraping+a>. Acesso em 25 jan. 2015.

10 BAUDINO. Federico. LA APLICACIÓN DE LA REALIDAD AUMENTADA EN EL PROCESO PENAL. Disponível em: <http://www.criminalisticaunlar.com.ar/indicios.org/CUARTO%20NUMERO/BAUDINOYOTROS.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2015.

11 VIMEO. The infinity augmented reality concept video on vimeo. Disponível em: < http://vimeo.com/69151928. Acesso em: 25 jan. 2015.

12 FUENTES, David. Realidad Aumentada en la Justicia. Poder Judicial San Luis. Argentina. Departamento de Investigación Tecnológica Criminal. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=4qC-ualZjto>. Acesso em: 225 jan. 2015.

José Erigutemberg Meneses de Lima, Advogado criminalista.