A LOUCURA DA PGR CONTAMINOU A JUSTIÇA?

O Brasil da cordialidade e da hospitalidade destacado para a inveja dos estrangeiros como exemplo acabado de democracia racial apregoada por Gilberto Freyre [1] e também sinalizado nas obras de Sérgio Buarque de Holanda [2] José Carlos Reis [3] e em tantos outros intérpretes do país, parece ter sido atingido por balas perdidas de ódio disparadas por diferentes agentes sociais. O Brasil do século XXI despertou do berço esplêndido sob o impacto das milícias virtuais ou físicas que aspergem ódio sobre a população anteriormente pacifica e ordeira. O homem cordial tombou em um dos inúmeros confrontos bélicos.

Reportagem de Fernando Pugliero publicada por Deutsche Welle, talvez esclareça a razão de o Brasil viver “um momento atípico, no qual o ódio se naturalizou e é, inclusive, utilizado como plataforma política”. No corpo do texto, Thiago Tavares, presidente da Safernet Brasil, associação civil especializada em receber denúncias relacionadas a crimes de ódio on-line, afirma que "Hoje existe uma chapa presidencial que alimenta o ódio, o preconceito e a discriminação para captar votos e espaço na mídia”. [4]

Como sabido, o corpo social reflete os valores emanados de suas lideranças. O ódio da serpente-mãe saiu da casca e viralizou, acudindo-se ao termo da moda. Abandonou as letras de músicas de mau gosto e as redes sociais responsáveis por fake news de cunho violento, e depois de passear pelas ruas, esgueirou-se por entre as vidraças dos salões atapetados dos poderes da república, e ali choca outros ovos sem ser incomodada, criando a perspectiva de transformar a república em verdadeiro serpentário.

O ódio gestado nos requintados salões da justiça, por pouco não alcança o plenário do STF e o transformou em palco de sangrenta peça de horror protagonizado por um Procurador Geral da República. Se o ódio não teve o resultado finalístico pretendido naquele episódio, alcançou êxito na sede do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde um Procurador da Fazenda Nacional agrediu uma juíza do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, localizado na famosa e elegante Avenida Paulista, em São Paulo. Embebido em ódio, um Procurador da Fazenda invadiu o gabinete de uma juíza, chegando a golpeá-la com uma faca de cozinha à altura do pescoço, não alcançando, contudo o desiderato assassino, por ação de terceiros.

Diante dos fatos, a população em geral estarrecida ficou sem entender a origem da animosidade contemporânea. Já no cenário jurídico, a discussão não se prendeu à sociologia do crime, nem à literatura voltada às mudanças de comportamento da sociedade brasileira. A polêmica orbita ao redor de se saber se houve ou não crime na atitude do hoje ex-Procurador Geral da República (ex-PGR). A gênese do ódio não interessa a este artigo que estenderá pequenas considerações acerca do quase assassinato que não houve e que será comparado em sede de conclusões, ao atentado perpetrado contra a juíza de São Paulo.

Inicie-se a análise com o caso do ex-PGR. Em teaser possivelmente preparado por profissional do setor de marketing para atrair a atenção do público para o lançamento de “Nada Menos que Tudo: bastidores da operação que colocou o sistema político em xeque”, livro de memórias ditado aos jornalistas Guilherme Evelin e Jailton Carvalho, o ex-PGR confidenciou o desejo de matar um ministro do STF, antes do início da sessão da Corte e suicidar-se em seguida. Para tanto teria ingressado nas dependências do Palácio STF, armado, só não acionando o gatilho por que o “dedo indicador ficou paralisado”. [5]

Em trecho marcante da obra consta que “Num dos momentos de dor aguda, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolvera fazer graça com minha filha. Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não.” [6] A motivação do incompreensível gesto seria uma denúncia escabrosa contra a filha, advogada em começo de carreira, publicada numa revista semanal.

Nem o teor da denúncia tampouco a motivação para o gesto interessam aqui, uma vez que o objetivo traçado é discutir se houve ou não crime na conduta do ex-PGR. Muitos opinam pela existência da prática de várias infrações penais. O Ministro Alexandre de Morais, por exemplo, embasou a determinação de busca e apreensão em endereço do ex-PGR na presunção de ter havido incitação ao crime, tipo penal inscrito no art. 286, combinado com o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal (CP) e ataque à segurança nacional de acordo com nos arts. 18, 22,23, 26 e27 da Lei 7.170/1983.

Conforme regramento penal acostado ao art. 286 do CP, a incitação pública à prática de crime impõe a pena de detenção, de três a seis meses, ou multa. Já a ofensa à integridade corporal ou a saúde de autoridades mencionadas acostado ao artigo 27 da Lei de Segurança Nacional impõe pena de reclusão, de um a três anos. Para o Ministro, o ex-PGR teria praticado tais crimes na forma tentada (art. 14, inciso II, do CP).

Diversas hipóteses poderão surgir a partir da exegese do tipo penal, a requererem uma atenta apreciação no caso concreto. No âmbito abstrato, dado a falta de elementos para se entender as reais circunstâncias apuradas pela autoridade judiciária, o desabafo do ex-PGR, ventilado na imprensa (teaser) e modicamente citado no livro não remete a nenhum comportamento ajustado aos crimes observados no Inquérito 4.781-DF [7] que investiga fake news, ameaças e ofensas a membros da corte e seus familiares.

Como se constata, o núcleo do tipo penal da incitação ao crime é incitar, termo dicionarizado como impelir, estimular ou instigar pessoas determinadas ou indeterminadas da coletividade a praticar crimes específicos. A menção genérica não torna a conduta típica. [8] Importa, ainda, se trazer à baila que a Lei7.1700/83, também, prevê figura típica semelhante, apenas não exigindo que a incitação se faça publicamente, a se entender que feita o incitamento a uma única pessoa, o crime estará configurado.

Pela denotação dos termos proferidos pelo ex-PGR não houve incitamento ao crime. Ele não desejou fazer com que as pessoas imbuam-se do ânimo para o cometimento de crimes. Assim, é possível que, acalmados os ânimos, a própria Procuradoria Geral da República (PGR) pronuncie-se a favor do arquivamento do feito, por não vislumbrar ao término da investigação suporte suficiente ao prosseguimento da ação penal que deságue em condenação.

Tal entendimento adéqua-se à percepção de um grupo de procuradores contrários à determinação de busca e apreensão em endereços do ex-PGR, no âmbito de uma investigação inconstitucional, contestada ainda em sua abertura. Para os procuradores, o STF não possui legitimidade jurisdicional sobre eventuais atos do ex-PGR, sendo ademais a ordem emitida de forma ilegal dada a ausência de contemporaneidade na conduta. [9]

Ao invocar o art. 14, inciso II, do CP quis-se punir a conduta na forma tentada. Ou seja, transpostas as fases da cogitação (cogitatio) e da preparação, o ex-PGR teria ingressado na fase de consumação. A tentativa é admissível no crime de incitação ao crime que reúne o núcleo incitar com o início da execução não consumada por circunstâncias alheias à vontade do agente. E aqui se relembre uma frase esquecida pela mídia, também, proferida pelo ex-PGR: Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não.”

Aos que veem crime tentado na conduta do ex-PGR indaga-se: Quem seria a terceira pessoa de mão invisível, responsável pelas circunstâncias que impediram o dedo acionador do gatilho, senão o próprio ex-PGR? Terceira pessoa entenda-se é um estranho à relação jurídica ou processual. Apenas se se considerar uma entidade ou um espectro invisível como pessoa alheia que não permitiu a consumação do delito, haverá tentativa. O mais é especulação ou ampliação do direito penal.

O caso do ex-PGR poderia se ajustar ao conceito de desistência voluntária prevista na primeira parte do art. 15 do CP a ocorrer quando o agente, podendo prosseguir nos atos executórios e com plenas condições de consumar o crime interrompe por vontade própria sua atividade. É esclarecedora a jurisprudência do TJMG: “Verificado que o ora apelado cessou voluntariamente a execução do delito, deixando de dar prosseguimento na empreitada criminosa, sem que houvesse a interferência de terceiros, correto o reconhecimento da causa excludente de tipicidade da desistência voluntaria, descrita no art. 15 do Código Penal”. [10]

Na doutrinação de Edmundo José de Bastos Junior, “Pouco importam, por outro lado, seus motivos. Sejam eles nobres (piedade) ou desprezíveis (medo das conseqüências, desinteresse em face dos proveitos possíveis). A renúncia ao objetivo pode inclusive não ser espontânea, como quando atende a súplica da vitima ou conselho de outras pessoas, bastando que não seja devida à coação ou obstáculo, real ou suposto." [11]

Por questões de política criminal, a desistência voluntaria é causa inominada de extinção de punibilidade da ilicitude, respondendo o agente pelos atos praticados, desde que constituam fatos puníveis. Ao que se saiba, pelas notícias veiculadas na mídia, o ex-PGR renunciou a seu objetivo antes de iniciar os atos de execução, o que se deu sem a participação de terceiros ou circunstâncias alheias à sua vontade.

Diverso é o entendimento sobre o crime praticado pelo Procurador da Fazenda Nacional que ingressou na sede do TRF 3ª Região na Avenida Paulista com faca de cozinha escondida nas roupas, provocando ferimentos leves no pescoço da magistrada e jogou uma jarra de vidro contra a vítima. Em primeira impressão, o crime pode ser classificado como homicídio qualificado (art. 121 do CP e incisos) na modalidade tentada (art. 14, inciso II, do CP).

Há, contudo duas teses que podem muito bem ser exploradas pela defesa. A mais evidente é a da inimputabilidade penal, prevista no art. 26 do CP, uma vez que há indícios de que o perpetrador “surtara” no momento da agressão. Ou seja, o procurador deste caso “era ao tempo da ação inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Em face ao histórico de perturbação mental, pedido de instauração de incidente de insanidade mental foi providenciado para avaliar o grau de discernimento do agressor que ficará temporariamente aos cuidados de equipe de psiquiatria de um estabelecimento hospitalar.

Considerado inimputável a ação prosseguirá até a absolvição imprópria (art. 386, parágrafo único, III, CPP). Ou seja, o juiz absolverá o réu, impondo, todavia medida de segurança. Na hipótese da imputabilidade responderá perante o Tribunal do Júri (art. 74, do CPP) pelo crime de homicídio qualificado na modalidade tentada (art. 121, incisos, c.c. art. 14, inciso II). Na condição de semi-imputável fará jus à diminuição da pena que for aplicada, por força do parágrafo único do art. 26, do CP.

No caso concreto e estando de posse das informações do caderno investigativo e das razões advindas na instrução, o criminalista poderá tentar desclassificar o delito para lesão corporal (art. art. 129). beneficiando o agressor.

Em derradeiro argumento, mesmo no Brasil varonil do salve-se quem puder, terra “desabençoada” onde a população assiste à violência com espada afiada do ódio suspensa diretamente sobre as cabeças ou com um alvo pintado às costas para receber balas perdidas vindas do céu ou do chão, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, mantendo-se, contudo o Código Penal incólume, alheio à loucura que grassa no país.

O ex-PGR pode ter cometido um ato moralmente e eticamente indefensável, mas pelo instituto da desistência voluntária não praticou nenhum crime. Numa situação em que após violento descontrole emocional alguém decide dar um tiro na cara de uma autoridade com língua ferina e parte em direção a ela, sem praticar, todavia qualquer ato de execução do crime de homicídio, não há fato punível. Nem desistência voluntária insculpida no art. 15, do CP que supõe o início da consumação que não chegou a ocorrer no caso do ex-PGR.

Se o Procurador da Fazenda Nacional em meio a frases desconexas, segundo testemunhas, proferiu"vou fazer o que Janot não fez", em referência a declaração do ex-PGR, o dolo não decorreu de incitação ao crime, mas possivelmente das faculdades afetadas por doença mental. É isto ou forçoso é admitir que a loucura contaminou a justiça por inteiro.

[1] FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Global,2005.

[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1995. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras.

[3] REIS, José Carlos. 2005. As identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. 7 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV.

[4] Como o ódio viralizou no Brasil. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/comoo%C3%B3dio-viralizou-no-brasil/a-45097506. Acesso em: 08 out. 2019.

[5] De acordo com o site jurídico Jota, no dia do ingresso armado no STF, o ex-PGR não estava em Brasília, mas em Minas Gerais.

[6] JANOT, Rodrigo. Nada menos que tudo: bastidores da operação que colocou o sistema político em xeque. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019. p. 201.

[7] BRASIL. STF. Inquérito 4781-Distrito Federal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-autoriza-pf-busca-apreensao.pdf. Acesso em: 08 out. 2019.

[8] NUCCI, Gulherme de Souza. Código Penal comentado. 16 ed. Ver. Atual e ampli Rio de Janeiro:Forense, 2016. p. 1291.

[9] RICHTER, André. Associação de procuradores contesta buscas contra Janot. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/justiça/noticia/2019-09/associacao-de-procuradores-contesta-buscas-c.... Acesso em: 08 out. 2019.

[10] BRASIL. TJ. MG. Ap. Crim. 1.0145.13.000405-7/001-MG, 6ª C. Crim. rel. Rubens Gabriel Soares, 28.04.2015.

[11] BASTOS JUNIOR, Edmundo José de. Código Penal em Exemplos Práticos. 5 ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006.