O afeto em sala de aula

 

Para o educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) os sentimentos tinham o poder de despertar o processo de aprendizagem autônoma da criança.

 

Mas, o afeto teve e ainda tem protagonismo na obra de pensadores que lançaram os fundamentos da pedagogia moderna. Nenhum destes deu maior relevância ao amor, em particular, ao amor materno que Pestalozzi.

 

Em antecipação concepções do movimento da Escola Nova que só surgiria na virada do século XIX para o século XX, o pensador suíço previu e delineou a crucial função do ensino que é levar as crianças (aprendentes em geral) a desenvolver habilidades naturais e inatas.

 

Assim, o amor é capaz de deflagrar o processo de auto-educação. Assim, a escola ideal é como se fosse uma extensão do lar, e deve oferecer uma atmosfera de segurança e afeto[1].

 

Ao contrário de seus contemporâneos, Pestalozzi não concordava plenamente com o elogio da razão humana. Para ele, afinal, somente o amor tinha a força salvadora, capaz de levar o homem à plena realização moral, ou seja, encontrar-se conscientemente, dentro de si, a essência divina que lhe dá liberdade.

 

Afirmou também que a religiosidade humana nasce da relação afetiva da criança com a mãe, por meio da sensação de providência.

 

Aliás, tanto a biografia como a produção acadêmica de Pestalozzi estão muito relacionadas à religião, por ser cristão novo e adepto do protestantismo, preparou-se para o sacerdócio, mas abandonou a ideia pela necessidade de viver junto da natureza e de experimentar suas ideias a respeito da educação.

 

Seu pensamento permaneceu impregnado da crença na manifestação da divindade no ser humano e na caridade, que ele praticou principalmente em favor dos pobres.

 

Na visão de Pestalozzi, o desenvolvimento infantil ocorre de dentro para fora, em oposição à concepção de que o ensino é preenchê-lo de informação. Aliás, para Pestalozzi um dos principais cuidados do docente deveria ser respeitar os estágios de desenvolvimento pelos quais toda criança passa.

 

É curial dar a devida atenção à sua evolução, às suas aptidões e necessidades, de acordo coma diferentes faixas etárias. Deve saber ler e imitar a natureza num método pedagógico no qual deveria se inspirar.

 

Ao contrário de Rousseau, cuja tese é idealizada. Pestalozzi experimentava tirar a teoria da prática, e aplicou o princípio da educação integral que não se restringe à absorção de informações, além de englobar as três dimensões humanas, identificada com a cabeça, mão e coração.

 

O objetivo final do aprendizado deveria ser uma formação também tripla, a saber: intelectual, física e moral.

 

E, o método de estudo deveria reduzir-se a seus três elementos mais simples: som, forma e número. Somente após da percepção que viria a linguagem. Com os instrumentos adquiridos desse modo, o aprendente teria condições de encontrar em si mesmo liberdade e autonomia moral.

 

Como alcançar esse objetivo dependia de uma trajetória íntima, Pestalozzi não acreditava em julgamento externo. Por isso, em suas escolas não havia notas ou provas, castigos ou recompensas, numa época em que chicotear os alunos era comum. "A disciplina exterior, na escola de Pestalozzi, era substituída pelo cultivo da disciplina interior, essencial à moral protestante", diz Alessandra Arce.

 

Tanto a defesa de uma volta à natureza quanto a construção de novos conceitos de criança, família e instrução a que Pestalozzi se dedicou devem muito a sua leitura do filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), nome central do pensamento iluminista.

 

Ambos consideravam o ser humano de seu tempo excessivamente cerceado por convenções sociais e influências do meio, distanciado de sua índole original - que seria essencialmente boa para Rousseau e potencialmente fértil, mas egoísta e submissa aos sentidos, para Pestalozzi.

 

"A criança, na concepção de Pestalozzi, era um ser puro, bom em sua essência e possuidor de uma natureza divina que deveria ser cultivada e descoberta para atingir a plenitude", diz Alessandra Arce, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.

 

Pestalozzi costumava comparar o ofício do professor ao do jardineiro, que devia providenciar as melhores condições externas para que as plantas seguissem seu desenvolvimento natural.  Apreciava lembrar que a semente traz em si o "projeto" da árvore toda.

 

Desse modo, o aprendizado seria, em grande parte, conduzido pelo próprio aluno, com base na experimentação prática e na vivência intelectual, sensorial e emocional do conhecimento.

 

É a ideia do "aprender fazendo", amplamente incorporada pela maioria das escolas pedagógicas posteriores a Pestalozzi.

 

O método deveria partir do conhecido para o novo e do concreto para o abstrato, com ênfase na ação e na percepção dos objetos, mais do que nas palavras. O que importava não era tanto o conteúdo, mas o desenvolvimento das habilidades e dos valores[2].

 

Pestalozzi não foi um iluminista típico, até por ser religioso demais para isso. Por outro lado, a importância que dava à vivência e à experimentação aproxima seu trabalho de um pioneiro enfoque científico para a educação, num reflexo da defesa da razão que caracterizou o "século das luzes".

 

"A arte da educação deve ser cultivada em todos os aspectos, para se tornar uma ciência construída a partir do conhecimento profundo da natureza humana", escreveu Pestalozzi.

 

Referências:

 

ARCE, Alessandra. A Pedagogia na Era das Revoluções. A Pedagogia na Era das Revoluções, Campinas, SP: Ed. Autores Associados,2002.

INCONTRI, Dora. Pestalozzi: Educação e Ética. São Paulo: Ed. Scipione, 1996.

MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação: da Antiguidade aos Nossos Dias São Paulo: Ed. Cortez, 1988.

 

 

 

 

 


[1] À luz do século XXI, entretanto, a discussão sobre a afetividade no ambiente escolar ganha nova relevância. Sem outros espaços de convívio e com pais ausentes pelos mais diversos motivos, as crianças estão chegando à escola com uma carência afetiva cada vez maior, apontam especialistas e professores. Problemas da escola atual como violência, indisciplina, desmotivação e dificuldade de manter a atenção podem também ter origem na falta de vínculo com o professor – e, portanto, poderiam ser minimizados na construção deste. Os desafios para transformar uma escola meramente racional em uma escola afetiva, porém, ainda são muitos.

[2] As bases teóricas da afetividade são:

Lev Vigotski (1896-1934), Jean Piaget (1896-1980) e Henri Wallon (1879-1962) formam uma tríade de extrema importância para o pensamento sobre o desenvolvimento da criança, a construção do conhecimento e da inteligência. Cada um deles, dentro de sua abordagem específica, tratou da importância da afetividade, criando conceitos capazes de auxiliar na compreensão do tema. Abaixo, seguem de forma sintética os caminhos apontados por esses pensadores, um convite para o aprofundamento teórico acerca da relação afetos-aprendizagem.

 

Lev Vigotski escreveu vários textos relacionados à afetividade, dentre eles A educação do comportamento emocional (no livro Psicologia pedagógica, Vigotski, 2003). Sua grande preocupação se detinha na separação entre afetividade e cognição, influenciada fortemente pelo pensamento cartesiano. Para o pensador, as dimensões do afeto e cognição estão desde cedo dialeticamente relacionadas no desenvolvimento da criança. E o repertório cultural, as várias experiências e interações com outras pessoas também representam fatores imprescindíveis para a compreensão dos processos envolvidos na construção do conhecimento.

 

Jean Piaget explica o desenvolvimento cognitivo considerando os elementos afetivos como complementares e essenciais. O pensador enfatiza o papel regulador da afetividade por meio de sentimentos de pressão e depressão – processo fundamental, por exemplo, para o desenvolvimento da inteligência sensório-motora, que para Piaget ocorre entre os 6 e os 8 meses de idade e da fala, que se inicia aos 2 anos. O pensador conclui que se toda conduta possui um aspecto afetivo (energético) e estrutural (cognitivo) é fundamental o rompimento da dicotomia entre afetividade e inteligência; ambos devem ser estudados e levados em conta no desenvolvimento infantil.

 

Henri Wallon defendeu que o ser humano se constrói na interação social, no confronto com o outro. Mesmo o desenvolvimento motor e sensório é fortemente influenciado pela qualidade dos afetos experimentados pelas crianças. Nesse sentido, não apenas o estado afetivo pode resultar em facilidades ou dificuldades na aprendizagem, como o sucesso ou o fracasso na aprendizagem têm o poder de afetar o estado afetivo. Wallon também salienta como as emoções e sentimentos podem contaminar um grupo de alunos e o quanto um ambiente afetivo que promova sentimentos como a alegria pode ser capaz de auxiliar verdadeiramente nos resultados em sala de aula.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 09/11/2023
Código do texto: T7928182
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