A EVOLUÇÃO DA CIRURGIA. ESTADO DA ARTE

                                              Sérgio Martins Pandolfo*
              
               “Nenhuma mais humana na prática do dia-a-dia.
               Nenhuma mais divina na obtenção da cura (a Medicina). SerPan


         A Cirurgia é a arte de curar com as mãos. Segundo Houaiss, é a especialidade médica que se dedica ao tratamento de doenças e traumatismos por meio de processos operatórios manuais e instrumentais.
         A ciência avança com botas de sete léguas em todas as direções e em todos os setores, e a cirurgia, como não poderia deixar de ser, alcançou hoje tal desenvolvimento que é possível realizar operações tão laboriosas, tão complexas, tão delicadas, com tamanha eficiência e segurança, que outrora sequer poderiam ser cogitadas ou tentadas, haja vista as quase inacreditáveis operações de transplante de órgãos e as de microcirurgia, presentemente efetuadas em escala crescente, já quase rotineiras. Técnicas de cirurgia videoendoscópica são cada vez mais audaciosas e abrangentes, conquanto menos invasivas e agressivas, e de rápida recuperação.
         Em épocas que já vão distantes, porém, a cirurgia era o último recurso, somente aplicado quando esgotadas todas as fórmulas de se restabelecer a normalidade anatômica e funcional do organismo. Com o rodar dos anos e graças, principalmente, ao notável avanço experimentado pela anestesia, pela terapia transfuncional, pelo advento de quimioterápicos e antibióticos cada vez mais eficazes e seguros e ao aprimoramento da técnica, notadamente no concernente aos métodos de hemostasia, o refinamento nas manipulações teciduais e orgânicas, o advento das próteses biocompatíveis, permitindo a reparação e/ou substituição de tecidos e órgãos, a intervenção cirúrgica deixou de ser a última e desesperada tentativa terapêutica para transformar-se em uma das formas opcionais de tratamento de numerosas afecções.
         A cirurgia moderna tende a ser, cada vez mais, reparadora, funcional, isto é, o cirurgião terá sempre em mira a conservação do órgão, a restituição funcional dos elementos afetados e, quando de todo indispensável a remoção orgânica, tentará restabelecer, na medida das possibilidades, o mais aproximadamente possível, as condições anatômicas e fisiológicas preexistentes. A cirurgia mutiladora, ablativa, caracterizada pelas exéreses múltiplas, extensas, intempestivas, conduta assim vitanda e temerária, a imprimir graves transtornos morfológicos, funcionais e psíquicos ao paciente, por seu contundente anacronismo não tem mais razão de ser.
         Contudo, muito ainda há que avançar! A cirurgia cardíaca, hoje quase trivial, já foi tida como inexequível pelo grande Lawson Tait, ao sentenciar: “Ai daquele que ousar tocar o coração!” Por isso penso ser hoje mais atuais que nunca as palavras do saudoso mestre Benedito Montenegro, um dos nomes mais preeminentes da cirurgia nacional: "Haverá hoje quem diga que a cirurgia atingiu sua meta final e que daqui por diante não terá mais o que progredir? Isto já foi dito inclusive por eminentes mestres, mas a evolução da ciência incumbiu-se de desmentir. Penso que a caminhada para o ideal é ainda muito longa.”
         A Medicina é ao mesmo tempo ciência e arte e a cirurgia, como um de seus ramos mais destacados, reclama o privilégio deste último predicado, exigindo assim, dos que a praticam, aptidão e sensibilidade, que derivam, creio eu, de três qualidades que julgo fundamentais e imprescindíveis na constituição do cirurgião: 1) habilidade manual, que é inata e intransferível e o mesmo atributo que permite se possa distinguir o virtuoso de um pianista comum ou o gênio de um pintor apenas razoável e pode ser detectada já no início da formação técnico-profissional do futuro cirurgião, pela simples observação de seu modo de manusear o instrumental e os tecidos; essa habilidade referida deve ser, realmente, bimanual, pois a ambidestria, conquanto não seja atributo totalmente imprescindível, é quase intolerável ao cirurgião que anseia a perfeição de sua técnica; aquele que só utiliza uma das mãos ao operar será sempre um profissional com limitação de recursos nos momentos culminantes, qual artilheiro que, no instante da finalização de uma jogada decisória não consegue consumá-la por só saber utilizar-se de um dos pés; 2) experiência, só adquirida ao longo de muitos anos de estudo, observação e prática continuada e entusiástica da cirurgia, a lhe permitir raciocínio e decisão rápidos nas situações inusitadas e, decerto o mais importante, a perfeita indicação da necessidade e do momento operatório. “O que caracteriza o grande cirurgião não é o elevado número de intervenções realizadas, mas a precisão da indicação cirúrgica”, redigo por já o ter referido alhures. 3) equilíbrio emocional, a que os leigos nomeiam vulgarmente de “sangue-frio”, que permite ao cirurgião manter-se calmo e sereno nas ocasiões mais difíceis, às vezes, mesmo, dramáticas e enfrentar com destemor essas situações, mas que igualmente lhe confere discernimento para saber recuar no exato momento em que condições superiormente adversas surjam ou, ainda que contrariando sua vaidade pessoal e sua impulsividade, essa conduta for a mais benéfica para o paciente, escopo maior da ciência e da arte cirúrgica. Demais disso, faz-se absolutamente necessário que o profissional da cirurgia exercite o seu mister de forma ininterrupta, permanente e assídua, a fim de manter em constante aprimoramento referidos atributos; sua ausência demorada ou a pouca frequência ao quirófano fazem com que decresçam, inapelavelmente, sua eficiência, seu desempenho, sua autoconfiança. Aqui, também, a repetição leva à perfeição.
         O sempre lembrado Professor Edmundo Vasconcelos, expoente luminar da cirurgia nacional, com sua autoridade de educador renomado e chefe, por muitos anos, de um dos mais afamados serviços de cirurgia deste País, assim se pronunciou reportando-se à formação do cirurgião: "A cirurgia, arte suprema da medicina curativa, não pode ser entregue às mãos de todos e muito menos submetida a uma aprendizagem açorada no tropel das legiões; nela não cabem médios e medíocres, pois, como na aviação, o erro e a ignorância paga-se com a morte."
         O cirurgião terá que ser, por fim, um profissional da mais sólida e inabalável formação moral e ética. Haverá prova maior de confiança numa relação humana que entregar-se alguém, anestesiado, inconsciente, indefeso e inerte a um semelhante desperto e armado? Certamente não. Somente o cirurgião desfruta tal privilégio. Por isso não lhe será tolerado o menor deslize, o mais leve arranhão que possa vir a macular-lhe a conduta e a dignidade profissional. Fernando Paulino, mestre de gerações e profissional que alcançou a culminância de sua arte, deixous-nos esta lição: "O artista do bisturi deve ser compenetrado, humilde e intransigente, porque o material que manuseia é o corpo humano e sua ação criadora pode determinar a vida ou a morte, a saúde ou a invalidez, a felicidade ou o desespero."
         A cupidez, o apego à pecúnia, a conduta anética, em hipótese alguma poderão prevalecer sobre a absoluta correção na indicação, oportunidade e conduta técnica. A retidão moral terá que estar no mesmo nível de sua ciência e de sua arte; não podem conviver, em espúria simbiose, o gigantismo técnico e o nanismo moral.

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(*) Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 11/01/2010
Reeditado em 17/07/2011
Código do texto: T2024275
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