O ANDARILHO VIDAS QUE SE SEGUEM

Mais um dia tudo segue o roteiro existencial, pessoas indo e vindo em uma rotina que segue a própria existência, algo comum naqueles que buscam a subsistência no dia a dia.

O andarilho sente o corpo arder frente ao calor intenso de um dia quente, sombra e para poucos, e a jornada continua exige esforço daqueles que dependem de si mesmo para o pão de cada dia.

E em meio à multidão segue um homem feliz com uma enorme caixa de engraxate sobre os ombros, e o mais estranho e que o homem está de terno e gravata, mesmo aquela roupa sendo velha esta incrivelmente limpa.

O engraxate brinca com todos e o mais incrível e que fala vários idiomas fluentemente.

O andarilho vendo aquilo se aproxima para saciar sua curiosidade, o homem está cercado de transeuntes, e trata a todos como se fossem conhecidos.

O engraxate cumprimenta o andarilho, que retribui o cumprimento e se junta a multidão, a forma de expressar do sujeito impressiona até aos mais inteligentes que diante daquela figura agem normalmente, não transparecendo nem um tipo de discriminação.

E assim o dia segue, as pessoas vão retornando gradualmente a sua rotina e por fim o engraxate segue seu caminho e o andarilho o acompanha.

Os dois seguem andando e conversando, o engraxate para próximo a um restaurante e tira sua vasilha que carrega para receber seu alimento diário vindo de doações.

O andarilho apenas acompanha, e minutos depois de receber o alimento procuram um beco isolado e dividem a oferta saborosa e ainda quentinha, a paz toma conta do ambiente.

O dia continua e todos cumprimentam aquela figura comum que vaga dia após dia em sua rotina diária, todos tratam aquele homem como se fosse um velho conhecido.

A noite chega e ambos caminhantes vão até um viveiro de mudas e floricultura, pois e ali que o engraxate passa suas noites e ainda tem o privilégio de tomar um banho, e com uma barra de sabão já bem gasta ele lava suas vestes que são o necessário para seu uso diário.

O engraxate tem o direito de usar aquelas instalações com a contrapartida de fazer algumas mudas e molhar as plantas.

E após o cumprimento da tarefa diária no seu local de repouso os dois recém conhecidos começam a jogar conversa fora.

O engraxate começa a contar sua vida ao andarilho.

Olha amigo eu era dono de uma revendedora de automóveis usados, tinha clientes antigos e era conhecido pela minha honestidade, era jovem e representava um bom partido, as mulheres viviam me rodeando.

Até que um dia quando ia de casa para o trabalho em uma moto possante me envolvi em um acidente de transito, fiquei por vários dias na UTI, o acidente me deixou com várias sequelas e eu não reconhecia a ninguém, inclusive a mim mesmo.

Foram mais de dois anos nesta situação, os custos do tratamento ultrapassaram a quantia que eu tinha, e lentamente fui vendendo tudo que tinha, os prejuízos foram enormes pois eu não tinha noção real do valor dos objetos que possuía.

Muitos se aproveitaram da minha falta de lucidez, e por fim não me restava mais nada, acabei indo morar de favor na garagem de um amigo.

Mas a tolerância alheia tem seus limites e por fim todos me deram as costas.

O andarilho se compadece daquele ser que foi vítima de um destino pouco comum, e apenas ouve sem saber o que dizer.

E o homem continua.

Eu comecei a vagar, e o tempo foi passando e eu fui descobrindo outros horizontes, até que um dia passando em um beco e revirando o lixo encontrei esta caixa de engraxate.

Eu a peguei como se fosse algo muito valioso e a tratei com muito carinho, foi assim que comecei minha carreira de engraxate.

O andarilho só observa em silencio.

O tempo foi seguindo e eu recuperei minhas faculdades mentais, mais preferia me passar por louco por falta de coragem de encarar a todos que me conheciam, por fim acabei por mudar de cidade.

E um dia quando engraxava os sapatos de um senhor de idade avançada ele se compadeceu e me deu algumas roupas usadas, e dentre as roupas estava este terno.

Como as noites eram frias acabei por usar o traje social no meu dia a dia, e acabei de fazer a rua por meu escritório, e o mais incrível foi que depois que comecei a usar o terno me tornei algo curioso e o serviço melhorou.

O andarilho não se contém e faz uma pergunta que teima em sua mente.

E as diversas línguas que você fala, aprendeu onde.

O engraxate sorri e diz ao andarilho.

Não sei, depois do acidente tive fortes dores de cabeça e muita febre, e acabei por surtar novamente, e quando voltei a realidade comecei a ver o mundo de forma diferente, me sentia grato pela vida e as ideias começaram a fluir com mais velocidade, assim como as línguas que aprendi a falar sem nunca telas estudado.

Consigo perceber as coisas em minha volta como se tivesse fora do meu corpo, sinto tristeza e felicidade alheia como se fossem minhas.

Sinto verdades e mentiras sem mesmo conversar com as pessoas, e por vezes falo coisas que me vem à mente, nem sempre são bem aceitas mas a realidade das pessoas se confundem.

As pessoas sentem que são diferentes umas das outras, mas a realidade se faz contraria pois no fim as ideias são tão comuns que todos se tornam iguais, o que muda e a forma como se encara os problemas.

Hoje com minha mudança de realidade vejo tudo com outros olhos, sou feliz com a vida que tenho, vejo as fantasias que cercam a mente humana, nem todos conseguem viver sua realidade absoluta.

As pessoas optam viver suas fantasias, mostram o que não são, travestem se de personalidades copiadas de revistas e filmes, e até de pessoas que convivem.

Ocultam se dentro de si mesmo por conveniência, e isto causa um cansaço mental e físico que nem todos conseguem suportar.

O acidente me trouxe a realidade existencial que eu nunca tinha sentido, o fato de estar tão próximo a morte me despertou para uma realidade oculta, se as vezes me ignoram e por não quererem se contaminarem com uma presença que beire a loucura.

E aqueles que se aproximam de mim e por acharem que represento algo que nem mesmo elas são capazes de encontrar dentro de si mesmo mas sabem que está lá.

Sou uma incógnita frente as certezas, não uso mascara, enquanto todos que estão a minha volta vivem o eterno carnaval dentro de si mesmos.

Não sei se represento o medo ou a calmaria, mas meu lado louco fica por conta da minha aparência pouco comum, até que abro a boca e começo a falar chego a causar espanto, pois o que as pessoas esperam de um vagabundo de terno em meio ao calor e a sol escaldante são palavras desconexas.

Mas ao contrário do que parece eu consegui juntar uma quantia razoável, além do que o senhor que me deu o terno me deixou de herança, pois me tornei uma pessoa presente em sua vida.

Em seus últimos momentos quem o levava aos hospitais era eu, me encarreguei de todos os seus bens, e como forma de agradecimento ele me deixou o necessário para recomeçar minha vida, e o restante ele doou para instituições de caridade pois não tinha parentes.

O andarilho se espanta com aquelas revelações que parecem mais cenas de um filme.

O homem percebe o descrédito por parte do andarilho e lhe diz.

Caro caminhante só não retomei minha vida pelo fato de não suportar pessoas falsas e interesseiras a minha volta, pois um louco passa mais credibilidade e consegue tirar o melhor das pessoas pela suposta falta de entendimento de sua conduta do que uma pessoa normal.

Minha aparência não transmite medo e insegurança, pois todos falam o que bem entendem sem dissimular a real intenção que a vida obriga a todas as pessoas a transmitirem.

O andarilho fica boquiaberto com a lucidez daquele ser que um dia foi oprimido pela falsa aparência e o status que a vida exige na convivência rotineira.

E em seguida diz ao engraxate.

Olha meu caro, e chegada a hora de retomar sua vida, agora com mais sabedoria e lucidez, você não pode esconder de si mesmo, retome seu destino.

O homem curva a cabeça e diz ao andarilho.

Concordo com você, mas tenho medo da realidade.

O andarilho coloca a mão em seu ombro e diz.

Te ajudarei diga o que pretende fazer.

O engraxate agora com um sorriso nos lábios diz ao caminhante.

Vamos retornar a minha cidade natal e reaver o que um dia foi meu.

Dois dias depois o engraxate já não existe mais, a caixa voltou ao beco de onde saiu, e agora o que surge são dois homens decididos.

O andarilho de roupas novas e andar firme vai até o antigo dono do imóvel onde era a garagem e faz uma oferta irresistível, que e aceita de imediato, depois o prédio e reformado.

A frente e toda de blindex, com ar moderno e detalhes suaves, os vizinhos da garagem ficam todos curiosos, a loja causa espanto pois chama a atenção pelos detalhes.

Todos querem saber quem e o novo dono, pois deve ser um homem muito rico, pois uma reforma daquelas não e para qualquer um, tem que ter dinheiro. E muito.

Os dias se passam e logo a garagem e inaugurada, e para o espanto de todos e o antigo dono que assume, o espanto e geral pois ele havia ficado louco, e após tantos anos vivendo na rua como ele pode ter arranjado dinheiro para reconstruir sua vida.

Ninguém consegue acreditar, mas ninguém fala nada, comentários tomam conta do ambiente, o pior não e o que sai da boca das pessoas, e sim o que está na mente delas.

Suposições absurdas invadem a mente de todos. Será que e tráfico de drogas, ou roubo a banco, coisa licita e que não e, pois em uma crise dessa dinheiro não cai do céu.

E ali vagando entre as pessoas está o engraxate, lendo cada pensamento, mas ao aproximar das pessoas ouve apenas elogios, a falsidade e a sobremesa oferecida pelos convidados, a boca diz uma coisa mas o pensamento destila o veneno da inveja.

E assim os dias vão se passando, e tudo entra no lugar, o passado já não existe mais, agora e só bajulação, os dias de sofrimento mas que de pressa viraram lembranças.

O homem não entende como os seres conseguem ser assim, pois nos seus dias de penumbra não passava de estranho em meio aos amigos.

E por fim o andarilho se aproxima do amigo e lhe diz.

Meu caro tenho que retomar minha jornada, minha missão com você está concluída, creio que a lição que a vida te proporcionou serviu para aprender a viver no mundo paralelo onde loucura e lucidez são ingredientes que devem ser postos em equilíbrio na jornada evolutiva.

Os acontecimentos foram para o seu bem, as lições na carne são dolorosas, mas os resultados transcendem o próprio existir, e na sua evolução continua o discernimento vai variar do momento e das emoções colocadas em seu devido lugar.

E as vaidades. Oh vaidades, estas são o desequilíbrio que temos que nos acautelar. Elogios oh palavra vã, só serve para construir um falso ego.

Agora amigo sinto que estas preparado para seguir seu caminho com passos firmes, o remédio foi dado conforme a dor da alma, tinha que ser amargo para que você não se perdesse dentro de si mesmo.

Agora vou seguir meu caminho, e espero um dia te encontrar na trajetória multiplanica das múltiplas existências.

O engraxate abraça o andarilho com lagrimas nos olhos, e agradece pela atenção que sempre lhe fora negada pelo mundo, e diz.

Vá em paz, e continue a ouvir e guiar aqueles que vagam dentro de si mesmo.

Ali se despedem e os caminhos seguem a rota cíclica da evolução humana.

E não muito longe dali alguém achou uma caixa de engraxate jogada em um beco e perambula como um mendigo de terno e gravata.

E por onde passa as pessoas sentem como se conhecessem aquele louco. E assim que tempos e mundos se entrecruzam onde vivemos o mesmo momento até que nos redirecionemos no caminho delimitado pelo criador.

O livro contos reflexivos do andarilho do pluriverso se encontra pronto, aguardando editora para publicação.

Paulo César de Castro Gomes.

Escritor, Graduado em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira Goiânia, pós-graduado em docência universitária pela Universidade Salgado de Oliveira Goiânia, pós graduado em Criminologia e Segurança Pública pela Universidade Federal de Goiás. (E-mail. paulo44g@hotmail.com)