Aquarius: uma mulher, uma cidade, uma era
 
Lançado em 2016, o filme Aquarius, do cineasta Kleber Mendonça Filho, narra o conflito entre a jornalista aposentada Clara (Sônia Braga) e a empreiteira Bonfim,  que pretende demolir o edifício que dá nome ao longa para erguer um arranha-céu. Moradora antiga do prédio ameaçado, a protagonista é a única que se recusou a vender seu apartamento à empresa.

Para mim, Clara é como uma representação humana da cidade, com suas histórias, estigmas, aspectos naturais e construções; ela e Recife misturam-se e, neste processo, não ocorre uma reificação da moradora, mas uma humanização da cidade, que se destaca como local onde pessoas diferentes tentam (sobre)viver. O filme é um “zoom” em uma destas pessoas: uma mulher arretada, capaz de abraçar as novidades sem negar seu passado e suas cicatrizes.

Mas há uma cisão entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente - o que se vê na cena em que Clara explica que ouve música de várias formas, antigas (LPs) e novas (streaming, mp3) - a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos como ninhos de cupim. 

Aquarius - prédio que integra o corpo de Recife - é atacado pela construtora, da mesma forma que Clara enfrentou um câncer, doença em que as células se multiplicam descontroladamente. As construções de uma cidade, como as células num corpo, devem funcionar em harmonia, para não comprometer o organismo como um todo. Novos prédios são importantes e necessários, mas a atuação das empresas não deve ser desordenada como um câncer. 

Não vemos nenhum representante do poder público para regular a atividade da construtora Bonfim, cujo nome soa sarcástico, se considerarmos o fim que a empresa quer impor ao lar da protagonista. O conflito se dá entre uma empresa e uma mulher de classe média. Não há ninguém para fiscalizar, controlar e exigir equilíbrio. 

Muitos parecem temer apenas o poder excessivo do Estado, mas a iniciativa privada também pode oprimir. No neoliberalismo, o Estado - esvaziado da função de regular as atividades de grandes empresas - é inflado para vigiar, punir e varrer para longe os mais pobres, que geralmente só têm a posse do local onde moram. Por não serem proprietários como a personagem de classe média, são despejados para zonas cada vez mais afastadas.

A música "Hoje", de Taiguara, tocada duas vezes no longa, tem tudo a ver com o enredo; lançada em 1969, expôs a violência da ditadura militar e agora se encaixa perfeitamente à tirania das grandes empresas.

O discurso neoliberal defende a redução do Estado, a desregulamentação e o filme mostra algumas das consequências da adoção destas posturas. Na trama, também se observa a mídia comprada pelo dinheiro das contas de publicidade. O jornal da cidade tem informações que se recusa a divulgar para não perder anunciantes. Uma espécie de censura realizada pelo poder econômico.

Defender o edifício Aquarius é mais que defender o lar de uma pessoa, o abrigo da história de uma família etc. É como defender uma era, uma época, a história, a integração do passado com o presente, o equilíbrio entre o que foi e o que virá. 

A cidade se ama, como Clara. A cidade luta, como a protagonista no filme e na realidade, como o Movimento Ocupe Estelita em Recife. O filme mostra que a classe média passou a ter o dever de viver (ou seria morrer?) em arranha-céus com grades, cercas elétricas e câmeras. (Se a classe média sofre pressões desse tipo, imaginem os mais pobres?) 

É fato que o excesso de liberdade (e poder) das grandes empresas afeta a liberdade das pessoas. O medo dos ladrões de coisas pequenas ofusca os medos e as imposições maiores. Há muita desigualdade, nenhum equilíbrio. O discurso tem sido algo como: aos pobres, punição; aos ricos, desregulamentação.

No filme, vemos placas alertando para ataques de tubarões na praia em frente ao edifício Aquarius. Segundo ambientalistas, essa ameaça surgiu na praia de Boa Viagem depois da construção do Porto de Suape, que afetou o ecossistema local. Outro caso de desequilíbrio em que o poder econômico impôs suas vontades, suas exigências, sem debate, de modo antidemocrático, demolindo a cidadania. 

Quando ações desenfreadas reduzem tudo - até a moradia - a produto, consumo e lucro, e o “novo” faz questão de matar o antigo, para usurpar totalmente seu espaço, arrancando suas raízes do solo do passado, as consequências atingem não só o morador do local mas a todos, pois bloqueiam as memórias e interrompem a história, causando irreparável destruição. Como pragas. Como um câncer.

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PS. Pra quem curtiu "Aquarius", vale a pena assistir a outros filmes do mesmo diretor, como os longas "Som ao redor" (disponível na Netflix) e "Bacurau", além do curta "Recife frio".