IMAGINAÇÃO, MISTÉRIO E SUSPENSE- Prefácio da obra Algemas Veladas, por Sonia Machiavelli

Imaginação, mistério e suspense

Sonia Machiavelli

Ao terminar a leitura de “Algemas Veladas”, título instigante e metafórico que reúne 34 contos de Marlene Becker, fiquei tão impressionada com a originalidade das narrativas e o estilo da autora que me ocorreram palavras de Júlio Cortazar, escritor sempre contemporâneo. A alguém que lhe perguntou um dia o que era um conto, respondeu: “difícil definição, tão esquivo ele é nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário.”

Achei essas frases do autor de “O jogo da amarelinha” perfeitas para definir os contos de Marlene Becker, poeta que neste livro leva para a prosa seus preciosos recursos emocionais e uma imaginação rica que lhe permite construir histórias absolutamente singulares. Algumas convidam o leitor a meditar sobre os versos de Shakespeare: “Há muito mais coisas entre o céu e a terra/ do que sonha a nossa vã filosofia.” O mistério, o indizível, o inexplicável que se instauram na abertura com “Olhos Azuis”, reaparecem em outros contos. Alimentam o curto e intenso “O enigma”. Tornam “Inexplicável” um texto que lembra vagamente Allan Poe. Unem-se ao tema do remorso em “Matilde”. Ganham forma de horror em “Os ratos”, que exibe fortes tintas dramatúrgicas. Concentram-se em alguns relatos, diluem-se em outros, mas nunca abandonam completamente os textos.

A respeito da forma, diria que lembra espirais ao contrário, movimentando-se de fora para dentro, e cujo ponto mais fechado é o desfecho impactante, que não liberta a narrativa, antes a fecha sobre si mesma. Esse efeito difícil de alcançar resulta do trabalho de uma autora acostumada com o exercício da escrita e da leitura. O perfeito entrelaçamento das frases e o domínio sobre o ritmo da narrativa movimentam o enredo até o ponto em que o leitor é tomado por uma expectativa que avança sobre duas possibilidades e não raro se resolve numa terceira. O suspense é um dos trunfos da escritora na coletânea. Sob esse ponto de vista é exemplar “O Crime”, na medida em que impacta não apenas como saga mas também quanto ao perfil dos personagens.

Todo ficcionista costuma dizer que deve pescar o interesse do leitor na primeira frase. Se este não morder a isca da curiosidade, dificilmente avançará. Marlene Becker é muito competente também neste item, onde seduz o leitor de tal forma que ele segue sem parar e sem retroceder. Mas é para o fechamento de cada conto que ela reserva o cerne do que deseja comunicar. A estrutura da maioria dos textos sustenta uma primeira parte onde a autora apresenta personagens e circunstâncias; em seguida anuncia o nó que firma a intriga; e de repente surpreende em poucas linhas com o desfecho imprevisível. Nos contos que se aproximam do fantástico, são mostrados fatos em desacordo com as leis que comandam os fenômenos naturais e contrariam portanto a noção de realidade. Mas a autora concede liberdade ao leitor para refletir sob o ângulo da religião, da saúde mental, da psicologia, da psicanálise. “Romilda” é um soco no estômago.

Marlene Becker mexe muito com as emoções do leitor ao fazê-lo considerar o mundo dos personagens como o das pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e outra sobrenatural. Essa vacilação pode permanecer ou ser eliminada quando o leitor decide que os acontecimentos têm relação com a realidade ou são apenas ilusões. Erguer uma história que se mantenha sobre essa linha tênue de dubiedade é um dos pontos fortes da autora, que adentra também esferas temáticas complexas como a inquietação do homem neste século de crise climática (“Que pena”), de injustiça social (“O presente”), de opressões no trabalho (“O relógio”), de prostituição (“O veredito”), de violência (“O Menino”), de racismo (“Desafio”), de desconsideração pela velhice (“João e Maria”), de contínua exploração do homem pelo homem (“As coisas”).

Entretanto, os sentimentos que nos tornam mais humanos também irrompem em contos delicados como “Capelinho”,”O passarinho”, “Espera”, “Aventura mirabolante”, “Paixão”. ”Ruínas” é texto altamente poético que começa assim: “As casas choram na rua esquálida. Velhas, já perderam, há tempos, a cor e a beleza. As molduras quebradas das grandes janelas criam frestas por onde o vento assobia lamentosamente, e trepadeiras parasitas infiltram-se entre telhas enegrecidas e nas trincas das paredes aumentando as rachaduras.” Grande e universal metáfora, completa-se apenas no final.

Seja provocando estranhamento, fazendo crítica social, registrando tráfico de gente ou tecendo com lirismo um flash do cotidiano, Marlene Becker escreve com muito sentimento, vestindo a pele de seus personagens ou registrando a realidade com olhar altamente sensível. Essa emoção transferida ao leitor leva-o a uma reflexão que pode remetê-lo ao início do livro. Afinal, a escritora o dedica aos personagens das suas histórias, “que não percebem as algemas que os prendem/, porque estão escondidas em porões/ Invisíveis para o mundo.”

As algemas que prendem homens, mulheres e crianças nascidos na imaginação da Autora são de matéria sutil. E, ainda que veladas, nos fazem pensar no sofrimento que impingem aos que não conseguem se libertar, muitas vezes por razões que sua própria razão desconhece. Estão presos a seus destinos como as lesmas nos caracóis, sendo obrigados a arrastar o peso de sua existência que tem o formato espiralado dos contos de Marlene. Forma e fundo se completam, definindo a literatura que tem força e convence pela coerência.