UMA COSMOVISÃO DE CHÃO DAS CARABINAS

  UMA COSMOVISÃO DE CHÃO DAS CARABINAS

ROSELI BODNT

Introdução

Jorge Lima de Moura, conhecido literariamente como Moura Lima, é um escritor versátil, pois percebe-se em suas publicações que se dedica a vários gêneros literários, como narrativo, poético e dramático. Nasceu no distrito de Itaberaí – Goiás, mas reside em Gurupi – Tocantins.

Suas obras ficcionais elegem como cenário o Tocantins, com suas particularidades históricas, riqueza de flora e de fauna, saberes e fazeres regionais. No conjunto de suas obras destacam-se: Serra dos pilões – jagunços e tropeiros, de 1995; Veredão, contos regionais e folclóricos, de 1999; Mucunã, contos e lendas do sertão, de 2000; Chão das carabinas – coronéis, peões e boiadas, de 2002; Negro d´água, lendas e mitos do Tocantins, de 2003.

Este artigo objetiva tecer algumas reflexões sobre a lei e a (des)ordem representadas no romance Chão das carabinas – coronéis, peões e boiadas. O mote da obra nasceu de uma história verídica, ocorrida em 1936, em um lugarejo chamado Vila do Peixe, nas barrancas do Rio Tocantins, no antigo norte goiano. O escritor usou essa história como pano de fundo; contudo, trabalhou ficcionalmente esse material, inserindo fatos e personagens, amalgamando-o com outros elementos, como costumes e tradições populares.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, com percurso analítico-interpretativo, em que se problematizam as aproximações entre Direito e Literatura, buscando-se analisar se há a presença de aspectos jurídicos na obra Chão das carabinas e se esses podem ser observados pela ótica jurídica, já que Moura Lima tece uma narrativa em que o sertão e sua gente simples são apresentados em constante tensão com aspectos da lei e da (des)ordem.

Direito & Literatura

Moura Lima formou-se em Direito, em 1989, na cidade de Gurupi, tornando-se um advogado militante. Como advogado teve acesso a processos, documentos, relatos testemunhais, os quais usa como mote para criar a vila ficcional, povoando-a de seres, muitos deles estereotipados. Por essa razão, neste artigo busca-se, em um primeiro momento, estudar a relação entre Direito e Literatura, e a partir disso refletir sobre a presença e a representação da lei e da (des)ordem no romance Chão das carabinas.

O movimento de Direito e Literatura como área interdisciplinar nasceu no início do século XX , a partir do declínio do positivismo jurídico e da solidificação do estado democrático de direito, sobretudo pela publicização dos direitos fundamentais, o que abriu caminho para o debate entre vários segmentos sociais, até mesmo dentro das escolas .

No Brasil, a área interdisciplinar ganhou força e adeptos, a partir dos anos 1970, com novos espaços e visibilidade, como, por exemplo, numa produção da TV Unisinos , em congressos, eventos científicos e produção acadêmica, entre artigos, dissertações e teses. Para Albano Marcos Bastos Pêpe (2016, p. 7), em solo brasileiro, o precursor dos diálogos e aproximações da Literatura com os textos jurídicos foi Luís Alberto Warat, pois “as sementes lançadas se expandiram ao longo do tempo, rizomaticamente, agregando novas narrativas, novos leitores e novos interlocutores”.

Esse encontro de dois mundos é possível. O desvelar de nuances, o confronto de razões, a interpretação dos ditos, os sentidos jurídicos, sociais e culturais dos fatos demandam um caminhar ad cautelam, para que a fusão de Direito e Literatura, a partir de uma obra literária como Chão das carabinas, não se torne apenas ilustrativo, e que de fato haja um diálogo.

Neste artigo, utiliza-se a corrente chamada Direito na Literatura, embora existam ou-

tras . A escolha deve-se ao fato de reunir “os estudos dedicados à investigação das representações literárias da justiça e do direito, abarcando suas instituições, procedimentos e atores, bem como a temática concernente ao universo jurídico que se faz presente em textos literários [...]” (KARAM, 2017, p. 834).

Ou seja, intenta-se demonstrar que os textos literários oferecem uma multiplicidade de possibilidades de pesquisa e de análise, sobretudo nos estudos interdisciplinares. Deles podem advir reflexões críticas sobre a história, a sociedade, o jeito de viver e conviver, as relações entre poder, justiça e direito.

Tomando-se o Direito e a Literatura numa abordagem interdisciplinar, esta não constitui uma aproximação recente, pois em textos literários clássicos da literatura universal podemos encontrar vários contatos de temas e personagens com o universo jurídico.

O Direito tem sido, ao longo dos últimos anos, uma área de estudo de diversos campos do conhecimento, sejam eles científicos ou não: da Ciência Política, da Sociologia, da Filosofia, da Linguística, assim como da Literatura em suas narrativas, resultado da imaginação criativa de seus criadores, derivadas de nossa diversificada formação cultural. Especificamente no âmbito da literatura, o discurso jurídico, assim como seus atores, se faz presente já nos textos gregos clássicos. Sófocles e Aristófanes são exemplos de autores de narrativas que tratam de julgamentos, de penalidades e dos ideais de justiça derivados da antiga tradição jurídica ocidental, como é o caso exemplar de Antígona e de As vespas. [...] Dostoiévski em Crime e castigo e Tolstoi em A morte de Ivan Ilich. Na literatura brasileira, temos Machado de Assis e Graciliano Ramos, dentre tantos que se inspiraram nos mundos possíveis do discurso jurídico (PÊPE, 2016, p. 5).

Podem-se citar algumas outras obras potentes para uma investigação jurídica, como Cães da província, de Assis Brasil; Na colônia penal, de Kafka; 1984, de Orwell; Germinal, de Zola. Observa-se a partir dos exemplos citados como a Literatura pode trazer discussões sobre o que é justiça e a aplicabilidade dela; normas jurídicas e sociais, como se intercambiam e, às vezes, se amalgamam; sobre a aplicação da lei para a manutenção ou não da ordem social, entre tantos outros temas.

Essa aproximação interdisciplinar tem perdurado e ganhado força nas últimas décadas do século XX, embora Karam aponte que

[...] em que pese a quantidade de livros e de artigos publicados, o crescente número de dissertações e de teses, bem como a existência de periódico científico interdisciplinar dedicado exclusivamente à interlocução entre o direito e a literatura, a produção e a divulgação de tais estudos ainda se encontram circunscritas ao âmbito jurídico, pois são raros os especialistas da área de Letras que se aventuram nesse campo de estudo (KARAM, 2017, p. 828).

Esses estudos interdisciplinares, como o proposto aqui, permitem compreender e refletir sobre a natureza humana, sobre as noções de direito e de justiça em variados tempos históricos e para sociedades díspares. Chão das carabinas toca em temas caros à área jurídica, como o tipo de justiça aplicada no sertão, com seus códigos de honra, com julgamentos sumários, aplicação de pena de morte, júris feitos no calor da hora, em que os algozes são, ao mesmo tempo, os juízes e os carrascos de suas vítimas. Assim, nesse estudo, faz-se uma interlocução, principalmente com o tema e os aspectos jurídicos observados nos capítulos 2 e 21 do romance, em que se descrevem os processos penais, o júri e a condenação dos réus.

Mas por que aproximar Direito e Literatura? Qual a importância de ler ou estudar obras literárias para os operadores de Direito? E, para a área de Literatura, qual a importância dos profissionais da área em conhecer e dialogar com a área jurídica?

Henriete Karam flerta com essas questões, ao mencionar que:

[...] teóricos do Direito e Literatura têm defendido a ideia de que a aproximação entre as duas áreas possibilitaria o aprimoramento da formação jurídica e cívica – no qual reside o principal ponto de partida do movimento Law and Literature – ao favorecer, por intermédio de obras literárias, visão mais profunda, complexa e esclarecedora da realidade humana, do mundo e das relações sociais (KARAM, 2017, p. 829).

Para Karam (2017, p. 830), a Literatura pode ser um caminho para enternecer, conhecer os meandros da mente e da natureza humana, os conflitos internos de cada indivíduo e os sociais, pois “os textos literários são colocados a serviço da formação dos estudantes de direito e da sensibilização dos juristas”. E, certamente, o Direito, como um fato social, amalgamado com os condicionamentos sócio-político-culturais da sociedade, em determinados tempos e espaços, permite observar seus reflexos na convivência humana e nos conflitos sociais, dela advindos.

A Literatura como espaço de criação estética e construção de mundos possíveis ficcionais, pode ter como pano de fundo uma representação baseada na experiência realista que nos cerca ou não. Para Eco (2002, p. 106) os “mundos ficcionais são constructos culturais”. Ainda, o teórico afirma que o mundo possível constitui-se em:

[...] um estado de coisas expresso por um conjunto de preposições onde para cada preposição ou p ou ~p. Como tal, um mundo consiste em um conjunto de indivíduos dotados de propriedades. Visto que algumas dessas propriedades ou predicados são ações, um mundo possível pode ser visto também como um curso de eventos. Dado que esse curso de eventos não é real, mas absolutamente possível, ele deve depender dos comportamentos proposicionais de alguém, que o afirma, nele acredita, com ele sonha, deseja-o, o prevê, etc (ECO, 2002, p. 109).

Carlos Reis e Ana C. Lopes referem-se ao mundo possível como sendo o mundo narrativo, ou seja, uma construção semiótica. Para eles, “cada texto narrativo cria um determinado universo de referência, onde se inscrevem as personagens, os seus atributos e as suas esferas de ação”. E que esse mundo possível tem uma lógica que “pode não coincidir com a do mundo real” (REIS; LOPES, 2011, p. 245).

O texto literário, como uma construção social e estética, possui como característica essencial ser ficcional e lúdico. A Literatura oportuniza o olhar crítico sobre o mundo e a renovação constante da linguagem. O Direito, tradicionalmente visto como dogmático, cientificista e normativo, quando em contraponto com a Literatura, permite um outro olhar para a área jurídica, quiçá mais humano e reflexivo. A Literatura, por sua natureza polifônica e plurissignificativa, humaniza, oportuniza vivenciar sentimentos como a empatia e a solidariedade. Pode se constituir também como um recurso para trabalhar a habilidade de leitura e desenvolver as competências de compreensão e interpretação de textos, tidos como “essenciais à práxis jurídica, quanto para promover a ampliação do próprio horizonte de compreensão dos juristas e, portanto, a reflexão destes acerca dos fenômenos jurídicos e sociais” (KARAM, 2017, p. 829).

Algumas obras literárias como Chão das carabinas são fontes para debater questões jurídicas, podendo contribuir com a formação jurídica, ética e humana de seus leitores, além de oportunizar o contato com a construção da linguagem literária, enquanto fenômeno estético e social.

Chão das carabinas, de Moura Lima

O Estado do Tocantins é jovem, com pouco mais de 30 anos. Sua literatura, ou a chamada literatura tocantinense, não se inicia com sua criação em 1988; ao contrário, havia muitos escritores que produziam literatura no então chamado norte goiano, atual Tocantins. Esse é o caso de Moura Lima, que publicou sua obra mais conhecida, Serra dos pilões – jagunços e tropeiros, em 1995, ou seja, antes da criação do Estado, ocorrida em 1988, e que continua em pleno exercício literário até hoje.

Moura Lima é um profundo conhecedor da região do antigo norte goiano, atual Tocantins. Em sua obra observa-se uma vasta pesquisa e conhecimento da história, da fauna e da flora, da linguagem viva, ao utilizar a norma popular regional, comum no mundo e na vida sertaneja.

Como advogado, Moura Lima teve acesso ao processo criminal, convertendo-o em material ficcional para o seu fazer literário. Como já referido, o romance faz referência a datas, a personagens históricos, a fatos e a acontecimentos, mas, uma vez povoando o universo ficcional, deve ser lido como tal.

Chão das carabinas elege a história e a paisagem tocantinense como pano de fundo para criar e representar literariamente os rincões da terra tocantina, dos idos de 1930 , época profundamente marcada pelo coronelismo. Foi um período em que o poder político estava nas mãos daqueles que controlavam também a economia. Ou seja, os interesses das classes dominantes (economicamente) é que preponderava, em constante prejuízo aos pertencentes às classes menos privilegiadas. A Revolução de 1930 quebrou esse círculo vicioso, mas o sertão, em ato contínuo, demorou para se desvencilhar do patriarcalismo e do coronelismo, podendo ser encontrados resquícios ainda hoje, em graus variados, de norte a sul do país.

É um romance que utiliza uma linguagem recheada de palavras e expressões locais, traços da cultura sertaneja e da religiosidade, os acordos escusos e conspirações políticas, remetendo ao dia a dia do que era viver nesses rincões do antigo Goiás, em que se vivia e se morria por ordem de um coronel, por isso a proteção e as alianças de compadres eram tão valiosas; mas, às vezes, eram sumariamente traídos, justamente por interesses políticos. Contudo, mesmo sendo homens embrutecidos, calejados pela violência, os sertanejos recorrem aos exercícios da fé, fonte de consolo e de entrega à hora da morte, e a crendices populares de feitiçaria. Pode-se perceber a devoção na fala do major Fibrônio, que rememora sua vida como pecador, fazendo um mea culpa, antes da morte: “[...] Sou um pecador, sou um homem de má índole, desviador de famílias; perdão meu pai!... Perdão!” (LIMA, 2002, p. 59). Também, no caso de Rafael, na hora da execução, “o coletor Rafael estava de pé na sala, rodeado pelos filhos, os dois sobrinhos e a esposa, abraçado com o quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”. (LIMA, 2002, p. 74). A cantilena de rezadeira de Chica do Rosário, intercedendo a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e a São Miguel: “Virgem da luz, socorrei-nos, o cão está solto na vila! O sangue rega a terra, há choro de órfãos e viúvas! A traição e a perversidade são as cantilenas das mentes criminosas” (LIMA, 2002, p. 85). E por fim, a figura do feiticeiro da vila, Alexandre, fazedor de oração braba, amarrando pessoas em laços invisíveis, com suas muitas artimanhas e suas mandingas, como no trecho: “[...] velho mandingueiro nas artes do demo, [...] de bornal de couro a tiracolo, onde continha as suas mandracas, pés de anjinhos roubados das sepulturas, nas sextas-feiras, livro preto de Caravaca” (LIMA, 2002, p. 83).

Para fazer um escudo de proteção esses coronéis contratavam jagunços, movidos por interesses financeiros; homens rústicos, de poucas palavras e muito agir na violência e nos saques aos mortos e locais dos assassinatos.

A jagunçada vivia na vila sob as ordens dos coronéis, à rédea solta, dos instintos animalescos, sem justiça nem lei, indômitos, ferozes e valentes como a terrível cascavel do sertão. E obedeciam sem apelação ou agravo, e tinham apenas um código de honra: o soluçar da papo-amarelo, na cantiga da morte! (LIMA, 2002, p. 76).

Para os coronéis que povoam o sertão, a Vila do Peixe constituía-se em sua posse e as gentes, em seu feudo. Para se manter no poder e ganhar território os coronéis traíam antigas alianças, amizades, companheiros na política, ficando claro que o importante é se manter no poder, mesmo que à custa de mortes e dizimação de lugarejos.

O povo humilde, por covardia e medo, bandeou para o lado dos donos da terra, que iriam controlar com a mão de ferro a pobreza e a miséria. Para eles os mortos eram repasto dos vermes e nada mais. A traição galopava fogosa, na maior baixeza possível. Os grandes estavam fazendo escola e oficializando a falsidade, num aleijume profundo, na alma daquela gente simples, por gerações seguidas. As marcas foram tão profundas, que o povo passou a imitar, numa perda de personalidade, até a fala daqueles senhores feudais, que era gritada e arrogante (LIMA, 2002, p. 76).

Percebe-se na obra em estudo a descrição geográfica e cultural, apresentando a flora, a fauna, as crenças religiosas e populares, como já citado, podendo ser lido como um romance histórico regional, já que apresenta traços específicos do local, dialogando também com um conflito histórico ocorrido na Vila do Peixe.

Para João Cláudio Arendt, literatura regional é aquela que

[...] é pródiga em criar lugares de memória, podendo estes se relacionar à representação não só de monumentos, prédios ou locais históricos, mas, num sentido amplo, também de pessoas, eventos, textos, ideias, rituais, canções, instituições. É necessário pensar, ainda, que esses lugares funcionam, para determinados grupos sociais e através das gerações, como pontos de cristalização da memória e da identidade regional e suprarregional (ARENDT, 2011, p. 230).

Não se ambiciona discutir a regionalidade na obra em estudo, apenas marcá-la como presente na narrativa, sobretudo na descrição do contexto local e suas gentes, do antigo norte goiano, conforme Arendt (2011, p. 235): “Existem particularidades que apenas os escritores regionais são capazes de captar e expressar [...]”. Infere-se que esse seja o caso de Moura Lima.

Nas páginas iniciais o autor faz uma advertência ao leitor em uma nota introdutória, em que revela que o romance foi extraído

[...] de uma história real, com alma própria, acontecida na Vila do Peixe, no Norte de Goiás (hoje Tocantins), nos idos de 1936; os fatos históricos foram transportados para o campo ficcional, a partir de processo criminal, depoimentos de testemunhas e de particularidades do morticínio (LIMA, 2002, s/p).

Obviamente que se trata de Literatura, já que os fatos históricos receberam o trato ficcional; a partir da escrita literária passam a figurar no campo da ficção e não da história. É interessante que o autor faz essa ressalva ao destacar que

os personagens que dão vida ao romance, por analogia, se identificam com o tipo social que representam, são criações literárias. O autor não se inspirou em nenhum modelo vivo ou falecido. Qualquer semelhança com pessoa viva ou morta é mera coincidência (LIMA, 2002, s/p).

Após a leitura da nota deixada pelo autor, não há como deixar de recordar a obra Seis passeios pelos bosques da ficção, de Umberto Eco, na qual o autor refletia sobre a obra de ficção, os leitores e o pacto entre escritor e leitor, no ato de leitura.

Esse acordo protocolar mútuo entre autor e leitor na construção da leitura é fundamental, pois

o leitor tem de saber que o que se está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu (ECO, 1994, p. 81).

O romance de ficção é uma obra literária, desta forma não possui obrigatoriedade em relatar aquilo que ocorreu, tampouco ser verossímil com o mundo real. Como nos ensina Eco, o bosque de ficção é bem maior e bem menor que o mundo real.

Em resumo, Chão das carabinas aborda as disputas políticas e relações de poder, mediadas por violência e vingança na pequena Vila do Peixe. Essa vila era um povoado pobre, cujo fundador fora o alferes Ramos Jubé, no final do século XVIII, a partir de um posto de proteção militar, alocado estrategicamente como uma barreira aos ataques dos indígenas da etnia avás-canoeiro. Naquela época Jubé deu ao lugarejo o nome de Arraial de Santa Cruz dos Itans. Esse nome deve-se a um suposto tesouro dos padres jesuítas enterrado em uma das pedras mais altas do rio Santa Teresa, um lugar chamado Itans. O alferes mandou construir uma igrejinha e casinhas de madeira, ao invés de palha, para que resistissem aos ataques dos indígenas. Ele morreu de maleita e foi enterrado em frente da igrejinha, marcando para sempre sua presença como o fundador daquele torrão de terra.

O romance divide-se em 26 capítulos, descritos em números romanos e sem títulos. Possui um narrador onisciente, que tudo sabe e tudo vê, fazendo entradas na narrativa e contando detalhes da vila, do passado e do presente, das motivações políticas que ensejam alguns dos crimes, conforme pode-se observar, na seguinte passagem:

No fundo, como a violência é uma filha bastarda de profundo silêncio, e coração é terra que ninguém entra, o capitão Bentão, apesar de conselheiro e esteio moral da vila, desejava o fim da família Cavalcanti Albuquerque, que lhe roubava o poder e o mando. E ia ficando a cada dia mais rica e dominadora (LIMA, 2002, p. 21).

O primeiro capítulo apresenta o velho jagunço Benjamin, capenga de uma perna, ex-cangaceiro, que alardeava que havia participado do barulho do Duro, ao lado de jagunços, e que a manqueira se deu devido a um tiro recebido e que deixou sequelas. O jagunço, motivado por sentimentos de gratidão para com a família Cavalcante de Albuquerque, especialmente o major Fibrônio Cavalcante, que o acolhera e aos filhos, em um nobre gesto de caridade, fez uma emboscada para o secretário municipal Arorobá Vaz Rodela. Esse escapou com vida e foi bater na casa do capitão Bentão, que o recebeu. Em seguida chega o subpromotor Gustavo Bananeira, que ao tentar precaver Arorobá do jagunço, acaba por confessar a sua participação nas mortes de Chico Ribeiro e sua esposa, com a motivação de tomar os bens e uma herança. Capitão Bentão saiu em comitiva e recomendou não usar de violência, enquanto ele buscava ajuda junto às autoridades da capital. Mas no fundo também desejava o fim da família Albuquerque, que ficava cada dia mais rica e poderosa. Nesse tempo havia um interventor em Goiás, Pedro Ludovico, que mexia com a oligarquia dos poderosos, que a partir de 1930 perderam forças políticas e de mando, passando a não ocuparem a função de árbitros do sertão, passando a ser intermediados por interventores.

O segundo capítulo conta a história do major Fibrônio, que ganhou esse nome e patente por atuar a serviço da Guarda Nacional. Chegou à Vila do Peixe em 1922, com sua tropa, vendendo facas e facões. Sabe-se que ele se chamava coronel José Gomes de Lima e Sá, e que saíra corrido do sertão do Nordeste, a conselho de Padre Cícero, por ter sido falsamente incriminado, juntamente com o coronel José Rodrigues Lima, chefão político de Piranhas, em 1917, na morte do industrial Delmiro Gouveia. Descreve-se que o processo fora uma montagem, de cunho político, e que as confissões teriam sido conseguidas sob tortura e grave ameaça à vida. Foram falsamente acusados e presos os lavradores José Ignácio Pia e Róseo Moraes do Nascimento. Foram absolvidos somente anos depois, quando já estavam mortos. No entanto, a morte de Delmiro Gouveia deixou rastros da verdadeira autoria. No primeiro incidente Gouveia teria sido abalroado pelo cavalo de um sitiante chamado Herculano Vilela, que pelo incidente teria apanhado de chibata. No Nordeste antigo havia um código de honra: em homem não se bate, mata-se. O outro episódio envolvia a honra de uma moça, filha do capitão Firmino Rodrigues, que ao viajar para comprar peças de enxoval em Recife fora seduzida por Gouveia. Major Cavalcante Albuquerque na Vila do Peixe era interventor, representante do governo, chefe político da revolução. Os filhos, um era delegado de polícia, o outro coletor, e um terceiro chefe do correio. O major era apoiado pelo chefão político de Natividade, Dr. Quintiliano, que com a Revolução de 1930 destronou Totó Caiado, responsável direto pelo massacre da família Wolney, na Vila do Duro. Com a chegada do major e o apoio de Dr. Quintiliano, os grandes mandões da vila foram perdendo espaço político, poder de mando, exploração e domínio sobre a gente simples do lugar. Isso foi gerando um ódio muito grande, por parte dos coronéis antigos e demais autoridades do lugar, agravado por acontecimentos durante as disputas eleitorais locais. Para acabar com o problema só havia uma solução aparente, eliminar a família do major.

O terceiro capítulo narra a fundação da Vila do Peixe, então chamada de Santa Cruz dos Itans, pelo comandante alferes Ramos Jubé, auxiliado por Francisco da Silva Montes e Joaquim Tavares, na construção do arraial. Recebeu o nome de Peixe depois de uma grande invernia, seguida de uma grande seca, em que um grande peixe ficou preso em uma formação de lagoa temporária, fruto do grande volume de água. Com o tempo ficou apenas a carcaça, avistada de longe, por quem chegava, dando ensejo para que o lugar passasse a receber a alcunha de Peixe, passando definitivamente a ser conhecida como Vila do Peixe. Em 1936, essa vila tinha apenas cerca de 400 habitantes e 80 casas, e a economia era baseada em pecuária e agricultura.

O quarto capítulo inicia com a saída do capitão Bentão e sua tropa rumo a Corumbá. O povo comum contava que o capitão Bentão tinha um cramulhão preso em uma garrafa, que lhe dava riquezas e o amor das mulheres jovens por onde passava. Mas corria à boca miúda que conseguia as namoradas por meio dos pequenos agrados, como cortes de chita e outros presentinhos. Já do major Fibrônio dizia-se que pegava as mulheres à força, muitas vezes, com violência.

O quinto capítulo revela que o secretário Arorobá, aproveitando-se da ausência do capitão Bentão, em conluio com Gustavo Bananeira, com intenções criminosas, colocou em ação um plano macabro para se livrar de todos os integrantes da família do major Fibrônio Cavalcanti. O primeiro passo foi convocar da cidade e das redondezas os homens bárbaros do sertão com intenção de consumar o massacre. Vieram vaqueiros, roceiros, peões e jagunços, cada qual procurando patrões e parentes para receber armas e munições e ficar à espera da hora da matança. Major Fibrônio mandou o jagunço Benjamim fugir da vila, pois imaginou que se tratava de um acerto de contas de Arorobá com o velho jagunço. O velho Benjamim fugiu em direção ao rio Tocantins para empreender fuga, foi visto e alvejado com tiros, mas fugiu ileso. Arorobá, não satisfeito, mandou cinco homens armados ao encalço do fugitivo; encontraram-no perto da Vila do Duro, mas o velho tinhoso escapou ileso de novo. O coronel Sansão, pai do capitão Bentão, procurou major Fibrônio para uma trégua, propôs que mandasse embora os homens armados, que ele faria o mesmo. Depois de refletir e considerando o coronel Sansão um homem de palavra, aceitou a bandeira de paz. Esse foi o maior erro de sua vida, saberia logo que fora traído.

O sexto capítulo narra a chegada da tropa de boiadeiros na Fazenda Jatobá e as histórias da peonada, sobre casos de sacis e de assombração. Nesta noite, chegam à fazenda alguns jagunços chamando Noratão para se juntar aos outros na mortandade da família do major Fibrônio. A resposta de Noratão à solicitação de Arorobá e de Bananeira foi um estrondoso não, pois não tinha nada contra o major Fibrônio e sua família.

O sétimo capítulo relata, em detalhes, uma manhã fatídica na Vila do Peixe. O dia era 17 de abril de 1936, em que o secretário Arorobá recebe a visita de um molecote avisando que homens na porta do major Fibrônio estavam caçoando dele; devido à tocaia do jagunço Benjamim, de pavor, teria defecado nas calças. Arorobá pede para o moleque chamar Bananeira e resolve antecipar o massacre que seria à noite para aquele momento. Então, de traição, eles decidem tomar o poder da vila e saquear os bens da família do major Fibrônio.

O oitavo capítulo descreve a ação de vingança e a tentativa de extermínio da família do major Fibrônio. O jagunço Marimbondo foi o escolhido para matar o major, subiu em um pé de manga e atirou, errando o alvo e atingindo de raspão seu ombro esquerdo. Desesperado, o major correu para o mato, sendo baleado novamente no pé. Correu ferido para a casa do seu compadre, mestre Constâncio Pontes, juiz municipal da vila, que o acolheu e escondeu em sua casa. Pontes deixou a casa apressado com a família rumo à sua fazenda. O filho do major Fibrônio, o delegado de polícia, Cláudio Cavalcante, saiu à rua para averiguar a confusão, foi alvejado no braço e recebeu outro tiro na virilha, ao chegar em casa. Ferido, pegou a carabina e atirou contra Gustavo Bananeira, mas errou o alvo. Foi apenas esse tiro que a família deu nesse dia. O juiz municipal resolveu trair o compadre e enviou um vaqueiro para informar a Arorobá e a Bananeira que o major se encontrava escondido em sua casa e que poderiam arrombá-la para pegar o fugitivo.

O nono capítulo traz a vila já sitiada, e o chefe dos jagunços Arorobá e o sub-chefe Bananeira assumem a ação da carnificina da família Cavalcante Albuquerque. Não há lei na cidade, apenas o poder de morte através das papo-amarelos e dos punhais. O pequeno destacamento de polícia composto por um cabo e cinco soldados, ao invés de defender as vítimas e suas propriedades, uniu-se aos jagunços, cobrando cada qual o seu quinhão pelas mortes e bens saqueados. O major Fibrônio foi assassinado pelo compadre Gustavo Bananeira, com uma facada no coração; depois a jagunçada descarregou as espingardas no corpo já morto. Foi jogado a céu aberto para servir de alimento às aves de rapina e cães de rua.

O décimo capítulo relata a fuga de Cláudio Cavalcanti, ferido, correndo nu, no meio na noite chuvosa, para despistar a jagunçada. Foi o único filho que fugiu vivo, chegando até as barrancas do rio Tocantins e indo buscar abrigo junto às autoridades de Porto Nacional. Cláudio jurou vingança, que voltaria para arrasar a vila e a todos os envolvidos na morte do pai.

O décimo primeiro capítulo apresenta João Leopoldo, proprietário da fazenda Angical, localizada na confluência do rio Santa Teresa com o rio Tocantins. Dono de engenho e de um alambique, famoso no sertão por ser proseador e alegre. Na fazenda o velho pescador Cipriano Jatobá conta para a criançada reunida a história lendária da Boiúna. Nisso chega Zenóbio Ramos dando notícias de que Cláudio estava ferido e agonizando na canoa. João decide sair rapidamente da casa com a família rumo a Porto Nacional, em busca de socorro médico e de proteção das autoridades para ele e a família.

O décimo segundo capítulo revela a ira de Arorobá pela fuga de Cláudio. Pede que tragam um feiticeiro de nome Alexandre para amarrar em uma oração braba os que ainda iriam morrer, para que não empreendessem fuga. Arorobá mandou que matassem o segundo filho do major e seus filhos. Foram até a casa, Rafael implorou pela vida e dos seus. Foi morto pelas costas, abraçado ao quadro de sua santa protetora.

O décimo terceiro capítulo relata o cenário da vila sitiada e a devastação que a mortandade causou na família e nos moradores do pequeno lugar. Os valentões, os jagunços desfilando pelas ruas desertas, que se tornaram chão das carabinas, terra de bárbaros. Narra-se o sepultamento de Rafael, sem reza e nem encomendação do corpo, levado pelas mulheres e jogado em cova rasa.

O décimo quarto capítulo descreve a farra dos jagunços, com comida e bebida, da agonia à espera da morte, dos que foram sentenciados sem júri e sem defesa. Noticia o suicídio de Cazuza, homem de confiança do major Fibrônio; mais um enterro rápido, sem choro e sem reza, itens proibidos pelos jagunços que acompanhavam de longe, prontos para intervir, em caso de descumprimento das ordens. Arorobá chama o feiticeiro Alexandre para amarrar os sobrinhos do major que haviam conseguido empreender fuga, no dia da morte de Rafael.

O décimo quinto capítulo apresenta Chica do Rosário, rezadeira, moradora das barrancas do rio Tocantins, que fazia suas preces para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e para o arcanjo São Miguel, em prol dos mortos e para a salvação da vila da mão dos ímpios. A rezadeira passa em revista os crimes anteriores cometidos por Arorobá e Bananeira, responsáveis por tramas, mortes e saques de bens dos mortos. Ela conta que na vila não há santos, todos são culpados em algum grau pelo que está ocorrendo.

O décimo sexto capítulo descreve a saga de Henrique, um dos sobrinhos do major, que desorientado e faminto, volta à vila. Chega à casa de sua ex-amante Milota, mulher de muitos e que ganhava a vida prestando favores sexuais aos viajantes e homens importantes da vila, em troca de alguma recompensa monetária ou presente. Depois de uma noite de amor, ela sai, com a desculpa de que providenciaria alimentos para a nova fuga. Delata a Arorobá, também seu ex-amante, o retorno de Henrique. Ele é morto na cama, enquanto esperava a volta de Milota. Pela traição e por entregar Henrique, Milota recebe um corte de chita e um par de brincos de ouro. Poucas mulheres da vila seguem em cortejo até o cemitério e presenciam o enterro do sobrinho do major.

O décimo sétimo capítulo traz o paradeiro do outro sobrinho do major Fibrônio, Adolfo. João Pandeiro avisa Arorobá que Adolfo esconde-se na fazenda Angical. Volta até o local com jagunços e entrega alimentos ao foragido. Depois o mata à queima-roupa. Adolfo fica insepulto, largado aos pés de uma gameleira.

O décimo oitavo capítulo menciona sonhos premonitórios de Arorobá, com um gavião, que o prendia pelas costas, e um monge encapuzado, que o ameaçava com um caldeirão e as areias do inferno. Tanto Arorobá como os moradores demonstravam ter medo da vingança e maldição dos mortos. Certo dia, chega à vila a rezadeira Maria do Rosário, rezando pelas ruas e avisando que a maldição caiu sobre a vila assim como a noite cai sobre o dia.

O décimo nono capítulo descreve a vila após cinco dias de crimes e de violência. Voltou para o lugarejo o prefeito Sebastião Milanga, e em reunião com vereadores queimaram todos os documentos que citavam o major e mudaram o nome da cidade para Vila Santa Terezinha. O capitão Bentão mandou chamar um destacamento policial e uma comissão de inquérito chegou à vila para apurar o ocorrido.

O vigésimo capítulo registra a chegada de um destacamento de soldados de Pedro Afonso, três meses depois da morte da família Cavalcante Albuquerque e do saque dos seus bens. Comandada pelo cabo Justino, começou uma investigação para descobrir os criminosos. Prenderam o feiticeiro Alexandre para arrancar dele uma confissão. O velho Alexandre contou tudo detalhadamente e foi dando os nomes dos criminosos, um a um, e relatando os crimes deles.

No vigésimo primeiro capítulo é narrada a chegada de mais uma comissão de inquérito, com praças e o sargento Jerônimo Valões, de Natividade, que chegou com o intuito de colher depoimento de Herculano Valadares. O grupo era chefiado pelo juiz togado Salomão Gutemberg de Aragão, homem de caráter digno, ético, nomeado pelo governo de Goiás, para apurar o massacre da família do major Fibrônio. O grupo ficou hospedado em casa do mestre Constâncio. O juiz Salomão decretou segredo de justiça ao caso e nomeou o coronel Petrarca Assunção Quiroga como sub-promotor, e Bevenuto Alencar de Aguiar, como escrivão. O juiz deslocou-se até Porto Nacional para ouvir o filho sobrevivente do major Fibrônio, Cláudio, e a viúva, Dona Helena. Nota-se a presença do Estado e do Direito Positivo na narrativa, caraterizados pela presença de uma ou mais autoridades do poder judiciário, pois ouviu-se no processo o Ministério Público; posteriormente, foi decretado a prisão preventiva dos acusados. O juiz ouviu a defesa dos réus, indefensáveis diante da cruel chacina, e ouviu o representante do Ministério Público; por fim, confirmou a denúncia e deu a sentença. O juiz julgou procedente a denúncia e foram pronunciados os acusados Gustavo Bananeira e Arorobá Vaz Rodela como mandantes da chacina da família do major Fibrônio Cavalcante Albuquerque, e como responsáveis pelo suicídio de Cazuza. Foram condenados também por facilitação do roubo de 217 mil réis, dos saques das mercadorias e demais bens da família. Recebeu condenação também Constâncio Pontes, por premeditação, por delação e por facilitação na morte de major Fibrônio. Nessa época o coronel Sansão já havia falecido. Foram nomeados e julgados os jagunços envolvidos nas mortes e roubos. Foi dada a sentença de prisão contra os presentes no julgamento e foi expedido mandado de prisão aos foragidos. Dois meses depois os condenados foram conduzidos a cavalo até a cadeia de Goiás Velho.

O vigésimo segundo capítulo relata que depois da morte de major Fibrônio quem mandava na vila era o capitão Bentão. Eram dele a hospedagem e o pequeno comércio do lugar. O delegado, o juiz de paz, o coletor e o prefeito nada decidem sem antes consultá-lo. Mas ronda na vila uma preocupação; os homens reunidos debaixo da gameleira dão notícia de que Cláudio, o filho sobrevivente do major, em plena saúde, voltou ao Recife para reunir jagunços para uma possível vingança. Dona Helena vai até Barreiras, na Bahia, para trazer um documento que comprovava que o finado marido não devia nada; ao contrário, tinha crédito. Não se dando por vencidos, os homens da cidade contratam um repentista para louvar os condenados da cidade e colocá-los em uma posição de heróis e de vítimas da justiça.

O vigésimo terceiro capítulo conta que em 1938, dois anos depois do massacre da família de major Fibrônio, tem-se a notícia de que Cláudio está voltando com jagunços para atacar Porto Nacional e destruir a Vila do Peixe. Logo as autoridades da vila pedem proteção ao governo, recebendo apenas vinte praças. Um mês depois chegam a Porto Nacional Cláudio e Júlio Cavalcanti, atacando a cidade, com cerca de 150 homens, durante três dias. Porto Nacional foi atacada devido ao coronel Dirico, mandachuva do lugar, ter emprestado armas para o massacre da família do major. A jagunçada queria ouro e saquear a cidade. A cidade resistiu, criaram-se trincheiras, e sob o comando do bispo Dom Alano, veterano da 1ª Guerra Mundial, não sucumbiu, dando tempo para a chegada de soldados e uma metralhadora. Após a chegada de reforço do governo, a jagunçada bateu em retirada.

O vigésimo quarto capítulo expõe os motivos da saída de Noratão e família da Vila de Peixe rumo à fazenda Casco da Anta, do major Capuba, na Ilha do Bananal. O vaqueiro descreve que devido a não ter participado da chacina, os grandes da cidade marcaram-no como um inimigo da vila, sentia-se ameaçado.

O vigésimo quinto capítulo descreve o dia a dia das tropas, da separação dos bois, da contagem, da castração e da ferragem do gado. Também a divisão do gado com os vaqueiros, como paga pelo trabalho prestado. Noratão trabalha com o gado do major Capuba, em local de fartura e de paz.

O vigésimo sexto (último capítulo) menciona que o capitão Bentão proíbe qualquer comentário ou retomada memorialística da chacina ocorrida na Vila do Peixe. Firma-se assim a lei da mordaça, um pacto forçado de silêncio. Mesmo assim a população continua à boca pequena, falando a respeito disso, e a presença da viúva dona Helena na cidade forçava essa lembrança. Enquanto os homens conversam debaixo da gameleira, passa a viúva de Rafael com os filhos para chorar e ofertar velas nas sepulturas dos entes queridos. Conta-se que nasceu ali, misteriosamente, um pé de baru, que passou a incomodar algumas pessoas da cidade, por ser uma lembrança viva do massacre. Em uma madrugada mandaram derrubá-lo por ordem dos novos donos da terra.

Chão das carabinas e Abril despedaçado: a Lei de Talião e o Código

Kanun

Chão das carabinas aproxima-se intertextualmente da obra fílmica Abril despedaçado, do cineasta brasileiro Walter Salles, adaptado para o cinema brasileiro , baseada no romance Prilli i Thyer, de Ismail Kadare, adaptado por Karim Ainouz. Cabe frisar que o filme segue a mesma temática do livro, mas com transposição para outro espaço, no caso, sertanejo, nordestino e brasileiro. Tanto Abril despedaçado como Chão das carabinas se passam nos primeiros cinquenta anos do século XX, respectivamente em 1910 e 1930. Ambas as obras tratam da defesa da honra, dos conflitos armados entre famílias e de sentimentos de posse pelo chão e suas gentes, em que ambas as obras podem ser analisadas em seus diversos aspectos, como estéticos, históricos, sociais e jurídicos.

Em Chão das carabinas e Abril despedaçado apresenta-se uma sociedade patriarcal, fortemente marcada pela cultura da defesa da terra e da honra, já que no sertão, muitas vezes, esses dois elementos não se separam. Assim, a disputa entre as famílias é motivada por interesses políticos, financeiros, que alimentam um código de honra, como, por exemplo: no romance nota-se a presença e a aplicação da Lei de Talião, do “olho por olho, dente por dente”, sobretudo quando Cláudio Cavalcante retorna com jagunços para vingar a morte do pai; e no filme, baseado no Código Kanun, um código antigo, primeiramente oral, e, que a partir do século XV passou a ser escrito. Possui quatro grandes pilares: honra, hospitalidade, conduta e lealdade. Compõe-se por 12 livros e 1262 artigos.

Embora não esteja em vigor, essa tradição é mantida no norte da Albânia. Kanun acolhe uma lei chamada Gjakmarrja, ou “vingança de sangue”, que permite que em caso de assassinato de um membro da família essa tenha direito de matar um membro da família do assassino. Em geral, as motivações para as mortes giram em torno da terra e do dinheiro. A casa é um abrigo, não pode ser violada, em caso de vingança. No filme o código moral e de honra gera um ciclo vicioso e interminável de mortes.

Salvo as especificidades de cada uma das obras, tanto o romance como o filme abordam o conflito no sertão (nordestino e tocantino); o aplicar a lei ou fazer justiça com as próprias mãos, em que gerações se enfrentam em conflitos armados, quase sempre alimentadas por um código de honra, às avessas, em que a honra é lavada com sangue e não com a aplicação da lei, revelando a forte presença do direito costumeiro e a quase ausência da figura do Estado nesses locais. Portanto, no sertão, nos rincões isolados, muitas vezes, a única fonte de direito é a tradição e os costumes. No romance há a quebra da palavra dada (em várias passagens desrespeitam-se acordos e pactos de paz), enquanto no filme a palavra dada é honrada e respeitada (respeito ao tempo de luto para reiniciar o ciclo de vingança).

A origem da palavra Talião deriva do latim talio, significando tal ou igual, no sentido de punição ou do punir para se fazer justiça. Nessa lei, pressupunha-se dar ao crime a punição na mesma medida, para assim ser considerada justa. Ou seja, a justiça resume-se a punir na mesma medida. Mas isso é fazer justiça?

Chão das carabinas apresenta como se organizavam “as vilas e os pequenos povoados, no antigo Goiás, sendo possível perceber como a lei e a justiça eram regidas e aplicadas nesses lugares pelos coronéis e como a (des)ordem era mantida pelos jagunços com suas 44 de papo amarelo” . Assim, observa-se que não há aplicação da justiça nesses tribunais paralelos, pois não se verificam as razões e circunstâncias do ocorrido, apenas faz-se cumprir na medida exata o mesmo que se fez a outro.

Sabe-se que se punir somente o crime não haverá justiça. As normas jurídicas não são instrumento de coerção e dominação; ao contrário, são regras de conduta do (com)viver coletivamente a partir de parâmetros de onde começa e acaba o direito individual, abrindo espaço para o outro indivíduo e as normas e interesses da coletividade. Contudo, não é uma questão de dualidade ou de antagonismo entre o bem e o mal, mas funda-se em algo mais profundo, já que somente quando o bem liga-se à ética passamos a considerar como bens sociais tanto a justiça quanto o direito.

Como nota-se em Chão das carabinas, a violência se perpetua de forma cíclica, ao longo das gerações (Cláudio prepara uma vingança pelo assassinato de seu pai e irmão), de forma idêntica ao representado no filme Abril despedaçado (em que Tonho deve vingar a morte do irmão, assassinado por uma família rival).

Conforme narra Chão das carabinas, a aplicação da Lei de Talião, muitas vezes, não era usada somente para pessoas, mas igualmente para punir cidades e vilas, atingindo não somente os algozes como também pessoas inocentes.

Em uma manhã de céu claro, do ano de 1938, dois anos depois do morticínio, encostou ali, na gameleira, na porta do capitão Bentão, um tropeiro vindo de Porto Nacional, com destino a Descoberto, e contou alarmado: - Chegou a Porto Nacional uma notícia terrível de que o Cláudio Cavalcante está vindo de Pernambuco com um bando de jagunços, para atacar Porto e destruir o Peixe (LIMA, 2002, p. 118).

A sociedade contemporânea segue regras sociais, dogmas e preceitos morais que, muitas vezes, nos afastam do que é fazer justiça, palavra que ganha diferentes sentidos e olhares dependendo do período, conforme Michael J. Sandel (2016, p. 321). O professor, em suas palestras em Harvard, questiona se “[...] matar é, em alguns casos, moralmente justificável?”

Essa não é uma questão simples, tampouco é a sua resolução. Dizer o direito e garantir a justiça quando se tem um crime e a sua punição é dos gargalos sociais, desde tempos imemoriais, em todas as sociedades e culturas. Se for aplicada a Lei de Talião e punir-se o mal com o mal, na mesma medida, para se ter justiça ou o que é justo, teríamos que recorrer à barbárie, ou seja, punir o crime na mesma medida: a tortura com a tortura, o cárcere com o cárcere e a morte com a morte. Isso seria civilidade ou barbárie? Pune-se para moldar o indivíduo e lhe dar nova chance de viver socialmente, ou pune-se com a expulsão do convívio social e a extinção da vida?

A Lei de Talião, ponto de partida dessa discussão, a partir do romance, não pune o mal, mas torna-se também o mal, pois não garante a justiça: ao contrário, dita o que é justo e injusto, a partir do decretar que se cometa um crime para reparar outro crime. Contudo, se não punirmos o crime do seio social podemos decretar a barbárie, assim ampliando-a no tecido social, tornando impossível alguns direitos hoje tidos como fundamentais na nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Para que o sistema social e judiciário funcione é preciso que seja mediado ou que haja a presença do Estado.

O juiz fez virem à sua presença os acusados e, com voz firme, leu a sentença: - Considerando que os fatos marcados na denúncia foram confirmados exuberantemente, ao longo dos autos, além do morticínio, que por si só já basta para arrepiar os cabelos de quantos lerem esta decisão, ainda não se contentaram os assassinos, e ao mesmo tempo em que davam cabo à vida dos infelizes, iam-lhes carregando tudo que possuíam em mercadorias de comércio, objetos de uso, como se não ficassem muitas vidas ainda necessitadas daqueles meios de manutenção (LIMA, 2002, p. 109).

Sendo assim, mesmo um criminoso deve ser respeitado como um ser, e sua punição deve ser exemplar e de ressocialização para ele, bem como para os demais, que vejam na punição uma reparação ao dano, não sua extinção, mas como dito, uma forma de reparar.

Em Chão das carabinas tantos os mandantes como aqueles que participaram do assas-

sinato da família de major Fibrônio tiveram julgamento, condenação e prisão: “Dois meses depois da condenação, numa manhã de inverno, os prisioneiros foram conduzidos, ou melhor, tangidos pelos soldados, para a cadeia Pública de Goiás Velho, a cavalo, pelos caminhos esbrugados do extenso território goiano” (LIMA, 2002, p. 111).

No desfecho do romance, observa-se a tentativa de apagamento de fatos e de memórias, notadamente pela imposição de pacto de silêncio.

E as últimas palavras do capitão Bentão, debaixo da gameleira aos apaniguados, proibindo comentar o morticínio dos Cavalcante Albuquerque na vila, firmava um pacto de silêncio. O povo sentia-se amordaçado, depois dessa proibição, não ousava levantar a crista, para comentar o assunto; se a língua coçava, era no cochicho, olhando para os lados, às ocultas, ao pé do ouvido (LIMA, 2002, p. 136).

Moura Lima flerta com a área e alguns aspectos jurídicos em Chão das carabinas, sobretudo em algumas reflexões quanto à aplicação ou não de leis, sobre o que é fazer justiça, sobre estabelecer a ordem e coibir a desordem social.

A narrativa termina com o canto lúgubre e agourento de uma acauã, podendo ser lido como uma inferência de que o ciclo de poder, de mortes e de desordem se perpetuará naquela vila: “[...] era preciso abafar e silenciar o terrível morticínio. Desta forma triunfava feroz o feudalismo sertanejo dos coronéis arrogantes do sertão. Era o regime social da sujeição e da humilhação” (LIMA, 2002, p. 138).

Considerações Finais

Este artigo dedicou-se a tecer algumas reflexões sobre a lei e a (des)ordem representadas no romance Chão das carabinas – coronéis, peões e boiadas, do escritor tocantinense Moura Lima.

Ao longo do texto, procurou-se aproximar as áreas de Direito e Literatura, sobretudo na análise da narrativa, que pode ser lida como um romance histórico regional, já que o escritor dialoga e reconstrói ficcionalmente uma história local, ocorrida em 1936, em um lugarejo chamado Vila do Peixe, nas barrancas do Rio Tocantins, no antigo norte goiano.

Na narrativa, o sertão e suas gentes tensionam aspectos da lei e da ordem, sobretudo em disputas pelo poder e pelas terras. Nessas disputas, o sertanejo, elo mais frágil, tem seu destino marcado diante do feudalismo sertanejo e do poder oligárquico de coronéis, em que as leis são medidas e aplicadas por aqueles que detêm o poder, seja jurídico, político e/ou financeiro. Há uma presença tímida do Estado, na Vila do Peixe, às vezes tardia e ineficaz, com investigações, julgamentos e prisões, pois o poder continua com os coronéis, apenas com outro nome e patente.

A literatura, enquanto arte, possibilita uma visão privilegiada de mundos possíveis e da alma humana, inclusive perscrutando-a em sua face secreta, presenteando o leitor com inúmeras possiblidades para refletir sobre a complexidade do viver e se relacionar, do que é fazer justiça, diante de inúmeros códigos morais e sociais.

Referências

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SANDEL, Ml. J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

Recebido em 06 de setembro de 2021.

Aceito em 27 de setembro de 2021.