O “Príncipe Tirano” e a “Democracia Militar” no Projeto de Construção de um Império Universal de Alexandre, O Grande e de Júlio César

O “Príncipe Tirano” e a “Democracia Militar” no Projeto de Construção de um Império Universal de Alexandre, O Grande e de Júlio César

Rafael Alves Rossi*

O objetivo desse artigo é analisar o projeto de construção de um império universal e de um consenso político e social amplo presentes nos governos de Alexandre Magno e de Júlio César, entendendo-se ambos como chefes políticos e militares de uma “democracia militar” como fundamento de sua “tirania”.

A partir dos exemplos de Augusto, sucessor de Júlio César, e de Filipe, antecessor de Alexandre Magno, fica mais claro quais eram os projetos hegemônicos da aristocracia romana e da aristocracia macedônia, respectivamente. Nesse sentido, Alexandre e César representaram elementos divergentes no seio das aristocracias às quais pertenciam. Mais do que simples representantes de facções dissidentes ou opositoras, eles lideraram blocos políticos formados por vários grupos sociais e mesmo étnicos.

Aldo Schiavone retrata o governo de Augusto como uma “revolução passiva” dos velhos grupos dirigentes. Representou um consenso conservador, o consenso aristocrático. A identificação de César com o povo, a sua relação mais direta e mais próxima com as tropas, que ele costumava tratar por “companheiros de armas”, a sua relação histórica com os populares e sua pertença à família de Caio Mário combinadas com uma política consciente de governo “interclassista” tornavam o seu programa inaceitável para a aristocracia romana. Além disso, o seu governo, especialmente a partir da sua nomeação para ditador vitalício, passa a ser identificado com a tirania. É o que explica Luciano Canfora . Ele analisa o texto de Plutarco e aponta para o sentido de tirania por ele exposto, comparando com o tipo de poder que existiu na Grécia, um governo de natureza popular-autoritária, cujo maior exemplo foi Pisístrato. César exerceu um poder pessoal contrário às normas constitucionais sem avançar para uma reformulação constitucional de fato. O recurso a manobras políticas para a implementação de seu programa político e social, sem o estabelecimento de novas instituições, encontrou o seu limite na resistência obstinada e feroz dos aristocratas republicanos tiranicidas.

Comparando o programa cesarista original com o regime cesarista estabelecido pelo cesariano e depois “restaurador republicano”, Otávio Augusto, é possível perceber que o caráter conservador da classe dominante romana de fins da República ainda não permitia uma grande inovação em termos de política social.

A mesma comparação vale para Filipe e Alexandre. Alexandre Magno elaborou e aplicou uma política de incorporação das elites asiáticas dos países conquistados e buscou agir em sua presença à maneira oriental, estabelecendo um diálogo com os nobres persas, ao mesmo tempo em que a monarquia macedônica de fato se orientalizava. A maior oposição à política alexandrina partiu dos próprios macedônios e, principalmente, dos velhos generais da época de Filipe. A discussão entre Alexandre e Clito, que culminou na morte do último, foi marcada pela defesa de Clito da memória de Filipe, rei-general dos macedônios e líder dos gregos. Droysen afirma que o rei Filipe da Macedônia retomou a palavra de ordem de Isócrates de união dos Estados da Hélade para travar a luta final contra a Ásia. Desse modo, os velhos generais macedônios e seus aliados gregos se engajaram numa “cruzada contra os persas”. O projeto de Alexandre provocou a desconfiança da aristocracia macedônica. Sentiam-se frustrados por ver os frutos de suas vitórias serem entregues nas mãos dos vencidos . Mas o episódio que talvez tenha causado maiores ressentimentos foi a substituição dos falangistas macedônios pelos 30 mil meninos asiáticos educados nas letras gregas e no treinamento militar macedônio, os “Epigonoi”, como relata Hammond , sublinhando a crise e o motim ocorrido em Ópis, no verão de 324 a.C., que levou à prisão e execução de trinta amotinados macedônios. O projeto alexandrino era muito maior do que os objetivos que uniram gregos e macedônios numa árdua campanha na Ásia. A opção de seguir em direção ao Leste impunha para Alexandre uma política de império ecumênico e a criação de um exército multirracial.

Os projetos de império de Alexandre Magno e de Júlio César eram propostas divergentes no seio das classes dominantes macedônia e romana, respectivamente, e se apoiavam tanto um quanto outro na soldadesca, constituindo governos autocráticos próximos das tiranias, com uma base social ampla e heterogênea e apoio popular. Os projetos imperiais alexandrino e cesariano foram derrotados pelo exclusivismo das aristocracias da monarquia macedônia e da república romana, que não estavam dispostas a ceder espaço para outros atores políticos na divisão do poder e da riqueza. As alternativas políticas que se afirmaram como consequência de seus governos foram, ao mesmo tempo, sua continuidade e sua negação.

Partindo desta constatação mais geral, esbocei as seguintes hipóteses:

1 – Um dos motores das conquistas de Júlio César e de Alexandre Magno foi a “democracia militar” que esteve na base do imperialismo greco-romano em geral e na relação dos príncipes que acompanham seus exércitos em particular. A lealdade das tropas à Alexandre, o Grande, e à César era inspirada pela coragem e pela audácia dos seus comandantes, mas também pelas promessas de prosperidade, pela distribuição de terras aos veteranos e pelo butim de guerra. Mesmo os soldados-cidadãos tinham aspectos que os assemelhavam aos mercenários e, estando em campanha permanente, eram soldados profissionais, militares em tempo integral. O desejo e o interesse desses homens cumpriu um papel determinante nas conquistas militares e na consolidação do poder político de seus líderes, que tinham, muitas vezes, que negociar e dialogar com seus comandados para alcançar os seus objetivos.

2 - César e Alexandre eram príncipes-generais, porque eram chefes políticos na medida em que eram chefes militares. E eram “príncipes tiranos”, porque o seu poder vinha da força das armas, da fidelidade dos seus exércitos e da simpatia do povo, mais do que das constituições de seus impérios. Tanto a monarquia alexandrina quanto a ditadura cesarista tinham um conteúdo político e social “tirânico”, ou seja, aproximavam-se em sua base popular e em seu caráter autocrático, que se caracterizava pelo poder pessoal, pela centralização política em torno do chefe supremo, das tiranias gregas, produzindo uma ruptura constitucional com o regime político anterior.

3 – Tanto Alexandre quanto César buscavam construir um Império Universal, uma Talassocracia Ecumênica com um exército multirracial. Eles alargaram as estruturas políticas deveras estreitas de seus Estados e inovaram em seu comportamento político, desrespeitando as instituições e as constituições tradicionais em nome de um projeto imperial divergente. A fusão do mundo greco-romano com o “mundo bárbaro” evidenciou-se no casamento de Alexandre com Roxana e no relacionamento amoroso (e político) de César com Cleópatra, gerando essa relação um filho que simbolizava esse laço de Roma com o Oriente. A “orientalização” dos governos de Alexandre e de César parece ter sido uma tendência que se afirmava a cada dia, com a adoção das maneiras dos “bárbaros” e do aspecto cada vez mais “absolutista” de sua forma de gerir o Estado, provocando reações violentas contra essa política. Alexandre era um “rei-tirano” de uma monarquia militar orientalizada e César exercia sua ditadura dialogando com a tirania grega e com a monarquia helenística na construção de seu novo regime.

4 – Tanto Alexandre Magno quanto Júlio César pretendiam fazer um governo que fosse um “consenso de todos”. Alexandre adotava os hábitos e vestimentas dos orientais, nomeou asiáticos para cargos administrativos e de chefia militar, enriqueceu gregos e macedônios, formou um exército multiétnico e fundou suas Alexandrias. César nomeou gauleses como senadores, reergueu as estátuas de Pompeu e de Sila, favoreceu seus clientes provinciais, formou um exército multiétnico, concedeu terras aos veteranos, perdoou os seus adversários dando-lhes cargos e distribuiu trigo à plebe romana. Isto é, beneficiaram seus aliados, cooptaram seus adversários e repartiram entre os diversos grupos sociais de seu Estado mundial a participação nos resultados de suas conquistas.

Alexandre Magno, vencido Dario, tornava-se ele próprio Rei da Pérsia, abandonando progressivamente suas raízes macedônias. O novo senhor da Ásia não seria “o melhor entre iguais”. Stoneman aponta para este aspecto, decorrente da vitória final de sua campanha contra o império persa com a rendição da Babilônia após o êxito militar que foi a batalha de Gaugamela. A confirmação de Mazaeus, antigo partidário de Dario, como chefe da Babilônia sinalizou o tipo de política que ele pretendia empreender em relação à nobreza asiática: a cooptação. Conquistados os domínios persas, Alexandre Magno não pensava mais o seu império como macedônio.

Para Hammond , a vitória de Antípatro sobre Esparta e a confirmação da autoridade do Conselho da Comunidade Grega no continente grego e a aceitação do rei da Macedônia como rei da Ásia no Egito e na Ásia ocidental, bem como sua política de incorporação da classe dominante da Pérsida e da Média ao seu governo, à sua monarquia universal, foram os fatos decisivos para que Alexandre pudesse prosseguir em suas campanhas, pois havia assegurado no Mediterrâneo oriental a sua hegemonia. De fato, para o autor, o “rei dos Macedônicos”, o“Hegemon da Comunidade Grega” e o “rei da Ásia” se tornou o chefe de uma talassocracia no Mediterrâneo oriental e no Mar Negro. A frota multirracial formada pela frota macedônica e pelas frotas dos gregos, dos fenícios e dos cipriotas garantiria o sucesso de seu projeto. A Monarquia Alexandrina era agora uma corte móvel. O avanço de Alexandre e de seu séquito para o Leste, diminuíam o peso político e administrativo da Macedônia neste novo Império Universal.

A política imperialista em Alexandre e em César tinha uma importância vital, por serem, respectivamente, a monarquia alexandrina e a ditadura cesarista repletas de contradições políticas e sociais e, como afirma Guarinello , a expansão político-militar de uma cidade-Estado antiga era um empreendimento coletivo, que tinha por objetivo auferir ganhos econômicos que pudessem amenizar as lutas de classes no seio da cidadania, os conflitos sociais internos. Desse modo, Guarinello destaca o papel fundamental da luta de classes no centro expansionista como base das motivações do imperialismo antigo, determinando e influenciando a sua dinâmica. Um dos elementos determinantes do expansionismo romano era a busca de terras cultiváveis.

A vitória de Roma sobre os demais Estados do Mediterrâneo tornou-a uma grande potência e uma verdadeira talassocracia mediterrânea. A Segunda Guerra Púnica foi o passo decisivo nessa direção, com a derrota da sua rival Cartago. O desfecho das guerras civis foi a transformação do Egito em província romana e o advento do Principado. Consolidava-se o Império Romano como o Império do Mediterrâneo. E este império, em sua maior parte, foi conquistado por um exército de camponeses-cidadãos-soldados. A reforma serviana vinculou a estrutura militar de Roma ao princípio de que os proprietários de terras é que deviam prover a defesa da república, armando-se de acordo com a proporção do patrimônio. Giovanni Brizzi apresenta a estrutura da legião romana e sua divisão censitária. Nesse exército, o comando era exercido por oficiais oriundos da aristocracia, o grupo mais abastado, os equites. Os capite censi eram exonerados do serviço militar por não possuírem propriedades rurais, mesmo sendo uma parte considerável da população. Ciro Flamarion Cardoso apresenta a análise de Marx nos Grundrisse acerca do mundo antigo, em especial da história romana, apontando para a relação entre cidadania e posse da terra, sendo a condição prévia para o pertencimento à comunidade de cidadãos a apropriação do solo pelo indivíduo. Na opinião de Yvon Garlan todo soldado-cidadão tinha um pouco de mercenário. A esperança do butim animava o espírito de luta tanto dos mercenários quanto dos cidadãos em campanha. A guerra era uma fonte de lucro para os soldados, fosse através do soldo, da remuneração recebida do Estado, fosse através da rapina privada. A partir da reforma do exército realizada por Mário, os proletários sem bens foram chamados às fileiras do exército romano. Segundo Géza Alfoldy , os proletários recrutados passaram a ser equipados pelo Estado. Antes somente os pequenos proprietários rurais eram recrutados e eram obrigados a fornecer seu próprio equipamento de guerra. A divisão censitária do corpo dos cidadãos em várias categorias como base do recrutamento político e militar perdeu a relevância que tinha no início pelo alistamento voluntário instituído por Caio Mário; o novo exército romano passou a ser formado por homens que faziam do serviço militar uma profissão, verdadeiros profissionais da guerra, leais aos seus chefes militares, o que Brizzi viu como uma espécie de clientelismo .

A relação de César com seus soldados é a maior evidência da “democracia militar” que existiu na base do governo popular-autoritário cesarista ou simplesmente da tirania de César, a “ditadura democrática” cesariana. César favoreceu os soldados que o serviram por mais de quinze anos com colônias de povoamento, fundadas para assegurar que os mais idosos pudessem passar os seus últimos anos de vida na paz e na tranquilidade, livres de preocupações. Esta era a recompensa dada aos leais soldados de César, aqueles que passaram por tantas privações e travaram tantas batalhas; mereciam uma vida segura ao terminarem o seu serviço militar .

Mas isso não impediu a X legião de se rebelar na Itália. A insurreição militar foi causada pelo cansaço das tropas, que exigiam que fossem liberadas. Schmidt , baseando-se no texto de Suetônio, retrata esta cena. César, então, responde para os legionários: “Eu vos dispenso”. Depois, chama-os, durante o seu discurso, de “cidadãos” e não mais de soldados. Os legionários ficam preocupados com a possibilidade de não terem mais butins, soldos ou terras e exclamam: “Somos soldados!”. Essa era a maneira de César de contornar as queixas e motins de suas tropas, além da punição, evidentemente, sendo importante notar que o chefe militar e seus soldados também eram igualmente um chefe político e uma base política. Júlio César não mantinha sua autoridade só pela repressão, mas também pelo consenso, pelo convencimento. Ele, antes de ser um general, era um hábil político. É fácil entender a devoção dos soldados cesarianos, na medida em que o seu comandante lhes concedia terras e riquezas como prêmio por sua bravura e lealdade.

Quando da crise de Ópis, Alexandre discursou para as tropas macedônias relembrando os serviços de Filipe e dele próprio, que tiraram os macedônios da obscuridade e da pobreza, tornando-os líderes do mundo e donos do tesouro da Pérsia, e lhes disse ainda que havia sido ferido com tanta frequência quanto qualquer um deles, vivendo, no entanto, mais humildemente que a maioria e, irritado, completou que podiam ir para casa e espalhar que haviam abandonado seu rei. Depois do discurso, ele se afastou dos macedônios por alguns dias e começou a organizar seu exército para a campanha, nomeando os persas para o comando das tropas asiáticas. Os macedônios atiraram suas armas diante da porta dele e pediram misericórdia. O rei Alexandre chorou com suas tropas macedônicas e permitiu que os macedônios, a exemplo de alguns persas, também o beijassem, e se reconciliaram . A liderança carismática de Alexandre e sua busca do consenso também se combinavam com sua coragem e com sua generosidade, assim como podemos notar em César. Além do exemplo de virtude que encorajava os homens, os soldados de Alexandre e de César tinham nos benefícios concedidos a eles por seus respectivos chefes o motor de sua ação. E, ainda que os líderes encaminhassem seus projetos, também tinham de dialogar com sua principal força política – seus exércitos. Essa parece ser a opinião de Yvon Garlan . Para ele, a política de fixação no Oriente dos greco-macedônios de Alexandre não devia ser interpretada somente do ponto de vista dos soberanos que dela necessitavam para garantir as bases militares, políticas, econômicas e culturais de seu domínio, como é costume se fazer ao analisar os relatos da política alexandrina, mas também do ponto de vista daqueles que eram objeto dessa política, em função de suas aspirações, pois seria impossível uma política de colonização e de helenização realmente consistente, se não houvesse o interesse da base dos exércitos de Alexandre Magno e de setores da população da Grécia e da Macedônia que buscassem novas terras e melhorias de vida.

Inúmeras biografias de César e de Alexandre já foram escritas. Então, por que abordar esse tema? A resposta pode ser encontrada no poema de Bertold Brecht, “Perguntas de um operário que lê”, nos versos que se seguem: “O jovem Alexandre conquistou as Índias./ Sozinho?/ César venceu os gauleses./ Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?”. Essa é uma primeira questão: não tiveram os soldados de César e Alexandre nenhuma influência política, nenhum peso em suas decisões? Exércitos que permaneceram tanto tempo em campanha, que lutaram tantas batalhas e que eram tão devotados aos seus chefes seriam formados por autômatos? Não creio. E acredito que esse problema merece ser melhor investigado.

Outra questão de suma importância é o caráter singular de seus projetos de império. Por que esses homens encarnaram um projeto societário original? Por que eles instituíram um modelo constitucional, ou melhor, de gestão do Estado completamente novo?

A fonte principal utilizada para este trabalho foi Vidas Paralelas, de Plutarco. A análise das biografias de Alexandre e de César escritas por ele serviram de base para a pesquisa. A tradução francesa Plutarque - Vies Parallèles: Vie d´Alexandre – Vie de César de J. Alexis Pierron, revisada e corrigida por Françoise Frazier e com introdução e notas de Jean Sirinelli foi o texto analisado.

Em Plutarco, podemos encontrar alguns pontos de apoio para a problemática levantada e para as hipóteses expostas. Sobre a relação de Alexandre com as tropas e do interesse das tropas nas guerras de conquista, a passagem que se segue é esclarecedora:

Depois da batalha de Issos, ele (Alexandre) lhes enviou (os soldados) a Damasco para que tomassem os tesouros, as bagagens, os filhos e as mulheres dos persas. Os cavaleiros tessálios ali fizeram um butim considerável. Como eles tinham se distinguido no combate, Alexandre enviou-lhes lá propositalmente para lhes enriquecer. Mas o resto do exército também acumulou grandes riquezas; e os macedônios, depois de terem provado o ouro, a prata, as mulheres e o luxo bárbaros, como os cachorros que seguem uma pista, tinham ganas das riquezas dos persas e de encontrá-las. (Plutarco, Alexandre, 24)

Outra fonte utilizada para a pesquisa foi Apiano. A obra História Romana – Guerras Civis, o livro II, na versão em espanhol, tradução e notas de Antonio Sancho Royo, tem uma breve passagem em que César e Alexandre são comparados em seus feitos. Uma comparação comum, basicamente focada na grandeza desses homens:

(...) Pois ambos foram os mais ambiciosos de todos, os mais hábeis na guerra, os mais rápidos em executar suas decisões, os que mais se arriscaram aos perigos, os que menos velaram por suas vidas e os que mais confiaram em sua ousadia e boa estrela mais que em sua habilidade guerreira. (...) (Apiano, As Guerras Civis, II, 149)

Apiano retrata ainda a relação de Alexandre e de César com seus soldados:

Seus exércitos foram igualmente zelosos e dedicados a ambos e lutaram com ferocidade selvagem nas batalhas, mas também, em muitas ocasiões, se mostraram indisciplinados com um e outro e se amotinaram por causa da severidade de suas tarefas. No entanto, quando morreram, choraram por igual a seus chefes e sentiram saudades deles e outorgaram a ambos honras divinas. (Apiano, As Guerras Civis, II, 151)

Havia um diálogo entre os generais e suas tropas que se dava através dos butins e dos motins. Os soldados podiam suportar campanhas intermináveis e duras, mas tinham que receber sua recompensa. Em alguns casos, mesmo com o butim era difícil prosseguir devido ao cansaço. A forma que as tropas tinham de se fazer ouvir e reivindicar era se rebelando. E os chefes respondiam com a repressão aos motins e com mudanças na política militar. Isso mostra que as conquistas de Alexandre e de César, que suas vitórias militares (e também políticas) não eram somente de seu interesse, mas também da própria base do exército e mesmo dos oficiais e que as tropas podiam influenciar na dinâmica, no ritmo e na forma da política expansionista e da estratégia militar.

O governo de César apresentava-se como o “consenso de todos”. A sua autocracia, a sua tirania, unificava politicamente o império, dava impulso à romanização e promovia a paz social. A ditadura vitalícia de César foi a expressão disso:

No entanto, os romanos, curvando-se para a Fortuna de César, e se submetendo a seu jugo, convencidos de que a única maneira de se recuperar de todos os males que causaram as guerras civis, era a autoridade de um só, o nomearam ditador vitalício: era uma tirania declarada, já que seu poder absoluto, não submetido a nenhum controle, tornava-se perpétuo. (Plutarco, César, 57)

Pretendo interpretar o tema a partir de uma perspectiva marxista. O conceito de “democracia militar”, por exemplo, está presente no marxismo clássico e merece ser visto no seu uso original para que se possa compreender a sua reinterpretação para essa pesquisa e o período histórico abordado pela mesma, isto é, nos séculos IV a.C. e I a.C.

O fenômeno do cesarismo, a interpretação do governo de Júlio César e a utilização do conceito de cesarismo como ponte para o entendimento do governo de Alexandre, que não parece ter uma definição conceitual embora tenha servido de modelo para a maioria dos governantes das monarquias helenísticas e do império romano, serão buscados em Gramsci.

Além do marxismo, a filosofia renascentista e o resgate e o esforço de interpretação que foi empreendido naquele momento histórico acerca dos governos de Alexandre e de César não devem ser desconsiderados. Nesse sentido, Maquiavel - filósofo e historiador que foi bastante estudado por Antonio Gramsci - será útil para a definição do conceito de príncipe e da sua aplicação para Alexandre e César. Recorrerei ainda a alguns ensaios de Montaigne e sua percepção sobre a figura de César.

No texto de Yvon Garlan é abordado o conceito de “democracia militar”. Sua análise é centrada no trabalho de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado. O conceito de “democracia militar” em Engels referia-se à sociedade do tipo dos “tempos homéricos”. O avanço das forças produtivas fez emergir estruturas estatais de natureza essencialmente militar da sociedade “gentílica” em decomposição no período então caracterizado como estágio superior da “barbárie”, segundo Engels . Além do destaque para o aspecto militar como determinante para a organização dessas sociedades, a ideia de “democracia primitiva” para o mundo homérico, que hoje é descartada pelos historiadores por provir de uma concepção unilinear da evolução da humanidade, estava presente nos escritos de Engels. No entanto, o destaque dado pelo principal colaborador de Marx e teórico socialista de primeira linha para a guerra como fator de diferenciação social e estruturação política permanecem amplamente admitidos .Vejamos como o conceito aparece no original:

O chefe militar do povo – rex, basileus, thiudans – torna-se um funcionário indispensável, permanente. A assembleia do povo surge onde ainda não existia. Chefe militar, conselho, assembleia do povo, esses são os órgãos da sociedade gentílica que evoluiu para tornar-se democracia militar. Militar – pois a guerra e a organização para a guerra tornaram-se então funções regulares da vida do povo. As riquezas dos vizinhos excitam a cupidez dos povos a quem a aquisição de riquezas parece já um dos objetivos principais da vida. São bárbaros; saquear parece-lhes mais fácil e até mais honroso do que ganhar a vida pelo trabalho. A guerra, antigamente praticada apenas por vingança de usurpações ou por defesa de um território que se tornou insuficiente, é então praticada com vistas unicamente à pilhagem e torna-se um ramo permanente de indústria. Não é sem motivo que as muralhas ameaçadoras erguem-se em volta das novas cidades fortificadas; em seus fossos abre-se a tumba escancarada da organização gentílica, e suas torres elevam-se na civilização (p.150)

Desse modo, ao compreendermos o sentido original empregado por Engels ao termo democracia militar, podemos reinterpretá-lo e utilizá-lo para o melhor entendimento da relação absolutamente singular estabelecida por Alexandre Magno com suas tropas e com os povos conquistados e por César com seus soldados. Tanto o rei macedônio quanto o ditador romano fizeram política através da guerra e foram boa parte do tempo muito mais comandantes-chefe de forças militares em campanha permanente do que chefes políticos “normais”. Eles eram os chefes militares de todo o império (não num sentido formal, mas real); eram “príncipes-generais”. Independente dos aspectos formais e constitucionais, os “soldados em assembleia” exigiam e se amotinavam, e, em campanha, lutavam por seus interesses e pelos de seus chefes.

A guerra era vista como o grande trabalho coletivo das comunidades antigas. Nas “Formen”, Marx levanta o problema da relação da cidadania com a posse da terra e a solução da colonização:

Por exemplo, quando cada indivíduo deve possuir uma determinada quantidade de terras, o simples aumento da população constitui um obstáculo. Para que este seja superado, deverá desenvolver-se a colonização e isto exigirá guerras de conquista. O que conduzirá à escravidão etc., à ampliação da ager publicus e, por isto, ao advento do Patriciado que passará a representar a comunidade, etc. Assim, a preservação da antiga comunidade implica a destruição das condições sobre as quais ela está baseada, tornando-se o seu contrário.

O conceito de cesarismo ajuda a explicar a natureza do governo de Júlio César e de seus sucessores já no regime imperial. A sua utilização como ponte ou referência para o governo de Alexandre, o Grande, pode ser uma possibilidade, na medida em que também o último construiu um acordo amplo entre as elites de seu império universal. O seu poder alicerçado nos exércitos em campanha também parece apontar para essa interpretação.

Em Gramsci, o cesarismo aparece da seguinte maneira:

Pode-se afirmar que o cesarismo expressa uma situação na qual as forças em luta se equilibram de modo catastrófico, isto é, equilibram-se de tal forma que a continuação da luta só pode terminar com a destruição recíproca. Quando a força progressista A luta contra a força regressiva B, não só pode ocorrer que A vença B ou B vença A, mas também pode suceder que nem A nem B vençam, porém se debilitem mutuamente, e uma terceira força, C, intervenha de fora, submetendo o que resta de A e de B.

O teórico marxista explicita ainda de que maneira esta forma político-ideológica se manifesta na ação do próprio César histórico:

O desenvolvimento histórico que teve em César sua expressão assume na “península itálica”, ou seja, em Roma, a forma do “cesarismo”, mas tem como quadro todo o território imperial e, na realidade, consiste na “desnacionalização” da Itália e em sua subordinação aos interesses do Império. (...) Deve-se fazer uma comparação entre Catilina e César: Catilina era mais “italiano” do que César, e sua revolução talvez tivesse conservado para a Itália, com uma outra classe no poder, a função hegemônica do período republicano. Com César, a revolução não é mais solução de uma luta de classes itálicas, mas de todo o Império, ou pelo menos de classes com funções principalmente imperiais (militares, burocratas, banqueiros, empreiteiros, etc.). Além disto, César havia desequilibrado o quadro do Império com a conquista da Gália: com César, o Ocidente começou a lutar contra o Oriente. Isto se vê nas lutas entre Antônio e Otaviano (...)

De acordo com Gramsci, César representava o projeto universalista, não exclusivista; outras alternativas, mesmo que possam ser consideradas progressistas, dependendo da perspectiva teórica, como foi o caso de Catilina, representavam uma solução italiana para a crise, talvez a “revolução municipal” vista como redentora por Aldo Schiavone, mas que não representaria necessariamente a criação de um verdadeiro império universal, como o projeto de César. Sua perspectiva era mais progressista, aberta e avançada que a de Augusto, visto como líder de uma “revolução passiva” por Schiavone, mas, ainda assim, abriu caminho para a revolução de Otávio, que seguiu o seu universalismo.

Alexandre Magno também representou o governo de um sobre todo o império, que unificou tendências conflitantes num equilíbrio instável, mas que impulsionou progressos sociais, culturais e técnicos.

A noção de “Príncipe” de Maquiavel é apresentada em suas múltiplas distinções por Gramsci. Para o marxista italiano, “príncipe” pode ser um chefe de Estado, um chefe de Governo, mas também um chefe político que pretende conquistar um Estado ou mesmo fundar um novo tipo de Estado.

Em Maquiavel, o tipo de príncipe que é objeto dessa pesquisa, ou seja, aquele que acompanha seus exércitos nas marchas, nas batalhas e nos saques, é analisado e a política que cabe a esse príncipe se quiser governar:

O príncipe que acompanha seus exércitos, que vive de presas de guerra, do saque e de resgates e que maneja o que é dos outros, não pode deixar de agir com liberalidade, caso contrário os soldados não o seguirão. E, afinal, ele pode ser amplamente generoso com o que não lhe pertence nem a seus súditos, como aconteceu com Ciro, César e Alexandre, porque gastar o que é dos outros não diminui mas aumenta a reputação.

Como se pode ver, esse trecho de Maquiavel vai ao encontro do que foi explicitado ao longo do texto: o príncipe Alexandre e o príncipe César, por fundamentarem o seu poder nas tropas e estabelecerem uma relação mais próxima por acompanharem as mesmas em sucessivas campanhas e lutando à frente e ao lado delas, deviam atender, mesmo que parcialmente às suas exigências.

Montaigne reforça a diferença já exposta acima entre Júlio César e Augusto. O tratamento conferido por César a seus soldados não parece algo menor, nem tampouco a mudança processada com a vitória da alternativa conservadora para a crise da República romana manifestada no principado de Augusto:

Tratava-os de “companheiros”, como nós, o que foi abolido por Augusto, o qual considerava que César o fizera em vista das exigências do momento, para agradar os que em suma o acompanhavam voluntariamente. (“Na travessia do Reno, César era general; aqui ele é meu companheiro. O crime nivela os cúmplices.”) Mas esse tratamento não convinha mais à dignidade de um imperador ou de um general. E voltou a chamá-los “soldados”.

Desse modo, podemos afirmar que as tropas eram a principal força política dos governos de Alexandre Magno e de Júlio César. Ao assumir o poder após o assassinato de Filipe em 336 a.C., Alexandre altera significativamente o conteúdo da política macedônia e contraria os interesses da aristocracia de seu próprio país em nome de um projeto universalista. O mesmo vale para César, que concentrou em suas mãos os poderes político, religioso e militar e feriu mortalmente o regime republicano oligárquico romano com sua nomeação a ditador vitalício em 44 a.C. A única maneira que ambos encontraram para exercer um poder tirânico sobre a sociedade e contra o exclusivismo aristocrático foi se apoiar na democracia militar, favorecendo os soldados. Os seus governos foram uma confluência dos interesses dos príncipes tiranos com seus soldados.