A NECESSIDADE DA FILOSOFIA

O astrofísico norte-americano Neil DeGrasse Tyson, em um podcast recente, demonstrou, através de suas declarações, um profundo desprezo (e desconhecimento) pela filosofia. Pouco tempo depois, me deparo com um blog brasileiro chamado Ceticismo.net demonstrando total apoio ao que foi dito pelo astrofísico (algo bastante irônico, já que “ceticismo” é um termo filosófico). O autor do texto, autodenominado “André”, defende, segundo ele mesmo, através de uma pergunta retórica, que a filosofia é inútil. Será mesmo?

Primeiramente, eu gostaria de ressaltar o profundo desconhecimento desses defensores a respeito do que é filosofia e do que ela trata. Não me surpreende que alguém que faça parte de um blog claramente cientificista seja pouco familiarizado com a filosofia. No entanto, é de ficar estupefato pela falta de noção de um famoso astrofísico, que teria a difícil missão de substituir o grande Carl Sagan como apresentador da série Cosmos, ao demonstrar tamanha carência de conhecimento a respeito do assunto de que está tratando. Todavia, esse desprezo e desconhecimento dos fundamentos da filosofia não é um caso isolado, mas, infelizmente, algo muito recorrente nos cursos de ciências naturais e engenharias. Se é recomendável não falar daquilo que não é da sua “alçada” (e, por conta disso, eu raramente tenho falado de ciência ou sobre a Bíblia nos textos mais recentes, mesmo quando tenho fontes a meu favor), parece que quando se trata de filosofia todos acham que são especialistas. É claro que aqui não se trata de crer no que diz um filósofo simplesmente porque foi Aristóteles, Hegel ou Marx quem falou. A filosofia não se faz desta forma, embora os adversários dela acreditem que sim, e todos que estudam filosofia sabem muito bem disso. O problema é não saber o básico da filosofia, isto é, do que ela se ocupa e quais são os seus métodos.

Em filosofia não importa o que fulano ou sicrano disse, e sim como ele defende seu ponto de vista. O nosso caro amigo André, do blog Ceticismo.net, defende que a filosofia é inútil e que somente a ciência é capaz de orientar o raciocínio. Para provar seu ponto de vista, ele teria que usar a filosofia ou a ciência. Como ele não pode provar seu ponto de vista cientificamente (algum cientista já comprovou em laboratório que a filosofia é inútil?), só lhe restaria comprovar filosoficamente. Mas se ele tentasse fazer isso, já estaria provando que sua opinião está errada, pois isso mostraria que a filosofia é útil, nem que seja para o absurdo de comprovar sua própria inutilidade. O grande Aristóteles já dizia que não é possível escapar da filosofia, porque, para provar que ela é desnecessária, você teria, necessariamente, que usar a filosofia. Não tem outra alternativa. Não se pode provar isso cientificamente. E se não se usar nem uma nem outra, a opinião de que a filosofia é inútil não passa de uma opinião vazia, sem fundamento, isto é, um mero preconceito. Não tem saída. Nosso amigo André entra num mato-sem-cachorro ao negar a filosofia.

O nosso amigo poderia dizer que não está usando filosofia para provar sua tese de que a filosofia é inútil. Poderia alegar que está apenas fazendo uma comparação entre ciência e filosofia e mostrando que esta é inútil diante daquela. No entanto, teríamos primeiramente que nos perguntar se esse argumento é válido, o que já é fazer filosofia. Ao tentar fazer isso, veríamos que o argumento é inválido, porque parte do pressuposto de que ciência e filosofia tem a mesma função, o que é falso. O avanço da ciência e da tecnologia não é uma evidência contra a filosofia, simplesmente porque a explicação da natureza e o avanço tecnológico não é a função dela. Já foi em tempos muito remotos, e os estudantes de filosofia sabem muito bem por quê: porque a filosofia lida apenas com verdades que não podem ser comprovadas empiricamente. A partir do momento que se encontra meios de comprovar empiricamente uma tese, esta deixa de ser filosófica e passa a ser científica. Não quer dizer, no entanto, que antes disso todas as opiniões são igualmente válidas, pois elas devem ser sustentadas em fortes argumentos. A que tiver os melhores argumentos é a que devemos aceitar. Além do mais, existem questões que jamais serão passíveis de comprovação científica. O que fazer com elas, então? Crer que todas as alternativas são igualmente válidas, ou procurar aquela que fornece melhores razões para ser aceita?

Neil DeGrasse Tyson comete o mesmo erro. No seu podcast, ele afirma que os filósofos não são produtivos na compreensão do mundo natural. Eis o falso pressuposto: o de que a filosofia se preocupa em conhecer a natureza. Como disse acima, há muitos séculos a filosofia abandonou essa pretensão. Isso porque foram descobertos meios empíricos de fazê-lo. Mas o que é mais irônico é que até mesmo muitos daqueles que se consideram anti-filosofia tem convicções filosóficas sem o saber. Lembro muito bem de uma discussão que tive com um ateu (discuto mais com ateus que com religiosos) que dizia ser a metafísica algo inútil. No decorrer da conversa, ele declarou que apenas coisas materiais podem existir, que não há nada de metafísico no mundo. Eu mostrei que ele era um materialista, e forneci uma tonelada de informações mostrando que o materialismo é uma corrente filosófica – e metafísica. Esse jovem ateu cientificista e anti-metafísico era um metafísico convicto, sem o saber. Isso porque ele tinha uma má informação do que se tratava a metafísica. Para ele, era algo relacionado com fadas, duendes, espíritos, Deus (embora, sobre este, exista mesmo alguma relação, quer seja afirmativa ou negativa), mas ele estava totalmente errado. A metafísica é um ramo da filosofia que trata da POSSIBILIDADE do real. Quando alguém diz que apenas coisas materiais são possíveis, ele está filosofando sobre quais entidades podem ser reais. E isso é uma postura metafísica que chamamos de “materialismo”. Esse jovem ateu, na verdade, era bem mais metafísico que eu, que nem sou materialista (embora seja ateu). Acho que ele não ficou muito contente com a descoberta.

Muitos problemas científicos passam por problemas filosóficos e metafísicos. Não se sabe o que causou ou poderia ter precedido o Big Bang, mas quando se reflete sobre o que poderia ou não poderia tê-lo causado, isso é fazer metafísica, já que é uma reflexão sobre o que pode ser ou não ser real. Aqui não há nada de científico, pois nada foi comprovado cientificamente ainda, mas quando alguém diz, por exemplo, que é impossível que a causa do Big Bang seja material, ou que é impossível que ele tivesse tido causa, está falando de algo que não é comprovado, apenas especulado. E não é o caso que todas as especulações são igualmente válidas. Algumas, obviamente, são melhores que outras.

Quando alguém se pergunta pelos limites da ciência, sobre o que ela pode ou não pode conhecer, esta pessoa já está fazendo filosofia. Uma vez que a ciência não pode se fundamentar em si mesma, isto é, não se pode usar a ciência para justificar a ciência, o que seria uma falácia de petição de princípios, é preciso alguma outra coisa para justifica-la. E quem quer que tente fazer isso, terá que usar a filosofia para tal (o problema é que, geralmente, usa-se uma filosofia de péssima qualidade). Mesmo aqueles que acreditam que a ciência pode conhecer tudo, que só existe o que pode ser conhecido cientificamente (isso já é metafísica, pois não pode ser comprovado pela própria ciência, lembrem-se), essa pessoa já está fazendo filosofia, embora uma seja uma filosofia bem tacanha. Até mesmo se alguém diz que se DEVE crer apenas na ciência, ela terá que usar a filosofia para justificar essa opinião, pois a ciência lida apenas com o modo como as coisas SÃO, não o que elas são, nem como elas DEVEM SER. É impossível justificar cientificamente a opinião de que só se deve crer na ciência. Para isso, é preciso argumentar filosoficamente.

Para finalizar, vamos esclarecer um pouco essa última distinção. Imagine que existem três programas educativos A, B e C. A ciência pode determinar qual o melhor dos três? A resposta é: não! Você poderia dizer que o melhor é aquele em que os alunos aprendem mais, então o cientista certamente poderia medir em qual dos três programas, levando em conta todas as variáveis, os alunos aprendiam mais. Sem dúvidas isso poderia ser feito. No entanto, você está partindo do pressuposto de que o melhor programa de educação é aquele em que os alunos aprendem mais. E se, no programa A os alunos apreendessem mais conteúdos, mas no programa B eles se tornassem mais criativos e no programa C mais críticos, qual dos três programas seria o melhor? Para defender que o programa A, B ou C é melhor, deve-se primeiro estabelecer qual o dever da educação, isto é, como DEVE ser. A ciência pode medir qual tem mais sucesso em função de uma variável x, y ou z, mas não pode dizer qual das variáveis deve ser utilizada porque isso está no âmbito do que deve ser, não do que é.

O preconceito comum é de que filosofia se trata de “Heidegger disse isso, Kant falou aquilo”, como escreveu nosso amigo André. Filosofia trata-se de provar, não empiricamente, aquilo que se quer defender. Quem quer que se posicione contra a filosofia, terá que usar a filosofia para sustentar sua opinião, já que cientificamente seria impossível. E se não usá-la, sua opinião não passa de um preconceito vazio e descartável.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 16/05/2014
Reeditado em 25/05/2014
Código do texto: T4808781
Classificação de conteúdo: seguro