TRILOGIA "O CÍRIO DE NAZARÉ" - 1. O CÍRIO PARA OS PARAENSES

Sérgio Martins Pandolfo (*)

Salve ó Mãe de Nazaré/Padroeira do Pará

Ergamos louvor à fé/E ao amor que ela nos dá

SerPan

“O que tens tu, minha mãe celestial, que nos contagia tanto? O que trazeis de atração espelhada no bordado de teu manto? Por que reunis milhares de pessoas, ao atropelo, no teu dia, na procissão do Círio? Multidão imensa e devota a te levar ao teu santuário com tanto zelo?”.

Essas perguntas formuladas em belo artigo sobre o Círio de Nazaré, pelo médico, escritor e fraterno amigo Hélio Titan, serão, talvez, a síntese do mistério e encantamento da festa magna dos paraenses, sem ponta de dúvida a maior demonstração de fé católica do Brasil, que mobiliza multidões e gerações que vão prestar seu preito de devoção e gratidão à Virgem Santa padroeira dos filhos desta terra, por ela abençoada.

A procissão é algo que empolga, emociona e redime ao mais empedernido e incréu dos mortais. Ao passar da berlinda, sentimos alguma coisa de indescritível vigor, uma energia que faz vibrar, num misto de exaltação e contrição. De certa feita recepcionei um ilustre colega cirurgião, do Rio de Janeiro, que ao assistir pela primeira vez ao espetáculo arrebatador da romaria, com sua corda disputada milímetro a milímetro pelos contritos fiéis, chorou copiosa e incontidamente, confessando nunca haver sentido antes emoção tão intensa. Dizia-se leve, em estado de graça.

Costuma-se referir que o Círio é o Natal dos paraenses. Penso que são sentimentos diferentes, incomparáveis.

Para “passar o Círio” muitos aqui nascidos, que um dia “tomaram um Ita no Norte” ou que “ganharam o mundo” em busca de oportunidades maiores costumam fazer o percurso de volta, alguns anualmente, só para, além de prestar reverências e pedir graças à Santa que um dia Plácido achou à beira do igarapé que existia bem atrás da atual Basílica, também poder rever os familiares (quem sabe a última vez?), os amigos dantanho (e muitos novos a fazer), mas principalmente matar a doída saudade – só quem já esteve ausente desta abençoada terra por algum tempo mais longo pode bem aquilatar! – das iguarias (sem iguais) autenticamente parauaras: o pato no tucupi, a maniçoba, o tacacá, o sarapatel de tartaruga, o casquinho de muçuã, o pirarucu (grelhado, ao molho de coco ou no tucupi), o... E as frutas - que são só nossas! -, tais como a pupunha, o bacuri, o cupuaçu, o piquiá, o açaí, o cutite, o pajurá, o buriti, o mucajá. Ou simplesmente poder experimentar de novo, com gáudio e gosto (às vezes com sofreguidão!), nossa farinha d’água e os condimentos autóctones (o jambu, as pimentas, o urucu).

A festa do Círio tem toda essa ritualística cabocla, assim nas mesas fartas, dos mais abastados, como nas nem tanto dos menos aquinhoados pelas benesses da fortuna. Mudam-se os acepipes e as bebidas, mas é o mesmo o “espírito” ciriano. Fala-se sobre tudo e sobre todos. Novidades ainda não sabidas por alguns “dos que venceram no Sul” são avidamente repassadas pelos que aqui ficaram; vitórias e conquistas papa-chibés; glórias e infortúnios de Remo, Tuna e Paysandu, coisas, enfim, ligadas ao parauarismo; tudo regado a um bom vinho (que ainda são fortes as ligações lusitanas), a uma gelada cerpinha, ou mesmo a uma “pura” de Abaeté. É a reunião da família paraense.

O Círio nos traz, também, o reencontro com coisas e loisas de nossa meninice e que têm, até hoje, “a cara” do Círio: os brinquedos de miriti (cobrinhas, galinhas, casinhas, pássaros), genuinamente nossos, inalterados e cobiçados por décadas, pela criançada, que damos aos nossos filhos e netos; de madeira (barcos, aviões, carrinhos, o acrobata, o bate-asas); ou de argila e outros materiais (o roc-roc, o cata-vento, o ratinho movido a um carretel de argila que volteia uma liga de borracha). Lembro-me bem que todos os anos um vizinho de rua, no poético e boêmio bairro do Umarizal, o “seu Lelé”, reunia os filhos e alguns “agregados” para a confecção de bonecas, feitas artesanalmente com camadas sobrepostas de jornais unidas com goma de tapioca que eram, ao final, pintadas com tinta à base de anil, anilina, urucu e outros corantes regionais que, conquanto sujassem as mãos, faziam a felicidade das meninas dos meus tempos de garoto, hoje respeitáveis vovós (ou mesmo bisavós). Tudo fruto da inventividade, da criatividade e habilidade do caboclo parauara.

O Círio é tudo isso. É a volta às nossas origens, às nossas raízes indo-afro-lusitanas, que em maravilhoso e perfeito caldeamento forjaram este povo bom, laborioso, forte, altaneiro e cioso de seus valores e de seu futuroso porvir.

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(*) Médico e escritor – SOBRAMESABRAMES

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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 23/09/2009
Reeditado em 12/10/2009
Código do texto: T1827734
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