Em torno da Morte

Uma de minhas coletâneas de contos chama-se Seis breves histórias sobre a Vida, o Tempo, o Amor e a Morte (recentemente publicada pela Fundação Cultural de João Pessoa (FUNJOPE) - PB). Não são estórias produzidas com o intuito de expressar meu interesse em subverter criativamente as formas originais da escrita, como fizeram e vem fazendo um tanto de escritores vanguardistas ao redor do mundo, a exemplo do irlandês James Joyce (1882-1941) com seu Ulisses (livro mais cultuado do que lido, o qual lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura), ou o português José Saramago (detentor do Nobel de 1998, o primeiro conferido para uma obra de língua portuguesa), ou do francês André Breton (1896-1966) em seu Manifesto Surrealista de 1924, ou do pintor surrealista espanhol Salvador Dali, com seu livro A face oculta, ou dos poetas concretos ou ainda, entre muitos outros, do brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967) e sua consideração pela preservação de expressões idiomáticas da cultura dos interiores de sua região, Minas Gerais, entre outras que inventou ao atendimento de sua necessidade de inovações estético-literárias, que tornaram seus textos intraduzíveis, insatisfatoriamente adaptáveis ao entendimento pleno de seus conteúdos em quaisquer outros idiomas do planeta.

Assim, ainda não me estimula o interesse por novas formas literárias à subversão inovadora de nossa gramática (recurso criativo relativo ao que fizeram os pintores impressionistas, cubistas e abstracionistas como reação ao conservadorismo estético dos pintores acadêmicos, assim como muitos modernos artistas da Música).

Tal exercício não é destinado a neófitos leitores, pouco afeitos ao entendimento de estripulias literárias, artísticas. Páginas e páginas do texto Ulisses, por exemplo, isentas de vírgulas, pontos, parágrafos, travessões e outros recursos ortográficos tradicionais a construção da escrita, a despeito de seu valor criativo-experimental – o qual certamente foi a razão principal a conferir um Nobel ao seu autor – torna-lhes a leitura cansativa e seu argumento pouco compreensível.

Na construção de meus textos – muitas vezes como aqui construídos com longos parágrafos – como disse, preso pela forma tradicional da escrita; porque me interessa estimular o gosto pela leitura a jovens leitores e contar-lhes sempre claramente estórias onde reconheçam suas angústias e esperanças nos universos atuais de modernos interesses, estando minhas modestas inovações apenas nas estranhas personalidades das personagens que invento e nas algumas vezes insólitas situações vividas por elas.

Mas, a bem da Verdade, nenhum dos artistas, por mais felizes inovadores que sejam, podem fugir ao destino de inscreverem suas criaturas, quer teatrais, plásticas, cinematográficas, esculturais, literárias etc. nos contextos dramáticos que lhes proporcionam a Vida (em seus aspectos essenciais e superficiais), o Tempo, o Amor e a Morte.

É o caso do artista plástico-escritor paraibano David Barbosa Jr.

Embora com este seu romance de estréia, A face oculta – cujo nome deve referendar o anteriormente citado livro de Salvador Dali, seu colega artista plástico surrealista espanhol – também tenha explorado um pouco essa necessidade de expressar inovações literárias, como parece evidente em muitos dos parágrafos que constroem seu texto. Apesar de muito bem escrito – para não dizer descritivo-imagético a ponto de sua prosa remeter-nos imagens de Verdadeiras pinturas – aqui e ali David torna-o carente de uma pontuação que proporcione ao leitor sequer uma pausa para respirar, numa provocação à sua observação veloz das coisas fugazes que perpassam ao redor de sua personagem Aristeu Valente – coisas que, acredito, também podem ser consideradas protagonistas da estória, tamanha a importância descritiva que o narrador lhes confere.

Como irão notar futuros leitores do livro, Aristeu Valente, neófito artista plástico – cujas frustrações profissionais de seu “divino” mestre Manoel Anjo devem representar as de seu próprio criador (para quem "A arte continua não servindo para nada") – movimenta-se na Vida observando o Tempo e seus condenados a efêmeros desgastados transeuntes – já que, como nos lembra o narrador desta, "o Tempo nunca pára de amarelar a tinta das paredes, desbotar o verniz dos madeiramentos, oxidar as grades de ferro e corroer o calcário das cantarias" – um tanto arrebatado pelo Amor-tesão ao ir ao encontro da Morte. Não da sua, embora a Morte quase também apanhe Aristeu de surpresa num momento de descuido, como fez com seu amigo Anselmo Boa Ventura, ao velório de quem Aristeu está a caminho – sendo a Morte sub-reptícia protagonista do texto de David (como a maioria das personas, animais e coisas que o compõem, como disse), que me pareceu ter buscado no Ulisses de Joyce inspiração à sua construção (embora talvez, como a maioria, David nunca o tenha lido inteiramente), já que a personagem daquele escritor irlandês, Leopold Bloom, também sai de casa para um enterro percorrendo Dublin durante um dia inteiro.

A despeito disso ou daquilo, entretanto, creio não haver exagero à consideração de certa originalidade na narrativa de David (cujo “fim” de seus muitos argumentos, tanto quanto o fim da própria Vida, se estabelece meramente por não nos ser possível terminar um “livro infinito”). E digo “de certa originalidade” porque é mesmo dificílimo para nós, artistas, sermos completa e absolutamente originais na atualidade, com a vasta história da evolução da Arte em sua multiplicidade formal-expressiva a nos apontar nossas inevitáveis influências e um magote de críticos ferozes (despeitados “lambisgóias”, como os considera aqui o narrador desta estória – e a mim, que aqui fui convidado a fazer papel de um deles) a esmiuçar, com precisão micro-cirúrgica, nossas mais sutis atitudes miméticas.

Além disso, não foi exclusivamente o personagem de Joyce, ou de David, que fez observações reflexivas durante seu trajeto à participação num funeral. Quem de nós, pondo-se a caminho do velório de alguém que amávamos, ou de alguém muito próximo, a despeito da iminente aniquilação de tudo, não presta maior atenção ao misterioso milagre da Vida a se processar compulsivamente em torno da Morte? – ao mesmo tempo a detectar o que nos parecerá o absurdo sentido dos Seus e dos nossos próprios movimentos sobreviventes (então inúteis) no espaço-tempo a caminho da aniquilação.

É o que também faz o personagem de David ao longo das páginas (sempre inevitavelmente inacabadas) deste seu A face oculta, narrador que, num momento, nos esclarece esmiuçar os muitos detalhes que compõem a trama por ter a pretensão de deixar explícitas provas cabais e indubitáveis quanto à natureza verídica do texto. O mérito de suas observações, contudo – ou, mais acertadamente, das observações de sua personagem – está no fato de que David não é um homem comum, mas um sensível e competente artista plástico com saudáveis e promissoras pretensões a escritor. Como tal, pois, tem maior capacidade de investigação das nuances interiores dos movimentos da alma humana, dos movimentos exteriores do mundo, suas maravilhas, absurdos e estimular seus leitores a considerar significativa a mais aparentemente banal das atitudes, ou o mais imperceptível detalhe quer de um movimento da natureza, quer de objetos tão aparentemente insignificantes quanto um chafariz.

Como todo artista-escritor é também David um pesquisador da Existência. Cabe aos seus leitores descobrir com ele, em torno da Morte, o que tem a Vida de significativa e essencialmente valiosa.

Apresentação do livro A face oculta, do artista plástico e escritor David Barbosa Jr. – João Pessoa, PB – Novembro de 2005