A Vida mesma e Suas roupas de “eus” e outros deuses

Não me motivou este confrontar vaidosa e gratuitamente razões do coração cristão do professor filósofo Washington Rocha, ou causar-lhe perda de sua esperança, como de outros, de continuar vivo para sempre além tumulo e encontrar entes queridos mortos há muito que, “por determinação divina”, foram beneficiados com novas vivências no Paraíso, para onde ele, entre outros, anda se esforçando a conquistar o direito de chegar.

Nesse intento, e mesmo que Jesus nos tenha aconselhado a dominar ambições - condição básica a conquistas íntimas do “Reino dos Céus” - Washington Rocha faz talvez o mais ferrenho ambicioso exercício do desejo. Mas, feitas profundas conjecturas filosóficas sobre as razões e valores de ambições cristãs, a ambição, em si, não parece ser o peso posto na balança divina que avaliará nossos méritos ou deméritos de pretendentes candidatos a “Filhos do Reino”. O problema é o que ambicionamos.

Nesse sentido, dentre uma miríade de desejos estapafúrdios circulando entre as pessoas, quer se declarem “cristãs” ou não – super estimuladas pelas mídias, que lhes incitam atenções aos valores expostos nas vitrines dos shoppings (no dizer do jornalista e escritor paraibano Walter Galvão, “alimentando impossibilidades”) – a ambição do professor filósofo Washington Rocha nos parece razoável, embora não as “razões cristãs” que lhe motivam ambicionar ser um dos moradores do “Reino dos Céus”.

Depois da morte de sua querida esposa Eliane – para quem ele escreveu comovido o livro "Razões do Coração Cristão – carta a Eliete, em memória de Eliane Monte da Rocha", sendo relações com a morte o principal fato traumático a estimular crendices – sua mudança de devoção do Comunismo de Marx para o Cristianismo de Paulo de Tarso nos diz que, como descobriu Shakespeare, o coração tem mesmo razões que a razão desconhece. Mas, felizmente, o coração parece também ter razões que a razão reconhece ou, pelo menos, como atestam a Poesia e seus poetas, sente; senão aquela razão pretendida pelo filósofo francês Jean Paul Sartre - cuja idade ideal à sua conquista ele não soube precisar - pelo menos um iluminante lampejo sobre ser de fato “razoável” aquilo que se imagina, se sente ou se intui como “real”, ou possível.

Entre conjecturas as justificativas de seres e nadas presentes, fato inegável entre filósofos/cientistas, mesmo que de perspectivas opostas (que muitas vezes se complementam), é que, nas tentativas de estar-para-sempre, a Vida se vestiu e se veste continuamente em dimensões quânticas, biológicas e astrofísicas. No percurso dos incontáveis milênios de Suas materializações, já não há razões para duvidar de que a Vida, eterna, Se vestiu e Se veste mesmo de tudo com a única intenção básica de mostrar para Si mesma Seu poder de multiplicar-Se indefinidamente a povoar o infinito nada cósmico; infinito porque somente como tal capaz de abrigar as criações provindas da capacidade infinita da Vida de preenchê-lo.

Conjecturas mais profundas a parte, como diriam certos sábios iluminantes, ao que parece, como o sentido das pernas é nos fazer andar – sem que a elas importe para onde vamos – o sentido essencial da Vida é simplesmente viver, em tudo e em nós, a experimentar, de formas várias, Seu poder de expressar-Se e organizar “o Caos”.

Assim, entre os muitos primeiros organismos que engendrou para sentir Sua até então invisível presença eterna, a Vida também Se nos tornou e, em Seu jogo de desenvolver consciências, põe-Se a Se debater na história com outros eus de Si mesma, que encarnou e encarna a Se provocar conjecturas e criar os movimentos a descobrir plenamente Sua própria capacidade criativa de Ser e estar, prosseguindo a feitura desse Seu projeto de consciente Ser universal tanto ou mais absurdo quanto real, refletido também nas esferas sociais – já que tais ações são único fundamento de um genuíno “Reino dos Céus” a estabelecer-Se a superação dos problemas de relacionamentos e contendas inúteis que, desde o primeiro surto de ignorância, e ainda por causa dela, sofre e fazem sofrer hoje esses frágeis “humanos” eus de Si mesma, uns tantos inconscientes de suas interdependências eternas dos poderes da Vida para que, de infinitas formas diferentes, existam todos e tudo, também aqui e agora.

Manifestações atéias contra o conceito da Vida eterna como um “Deus” afirmam que “não há nenhum ‘Deus’ amoroso olhando por nós” e que “tudo acaba com a morte”. Se assim é – e não duvido que seja para o “meu” eu – por que já mesmo ateus concordam com a sabedoria popular, que repete sempre que “a Vida continua” a aliviar a dor de alguém cujo (objeto?) amado morreu?

Que a Vida é mesmo eterna poderão comprovar velhos ateístas ao perceberem que, a despeito da morte de gerações dos seres que aqui estiveram antes de nós – quer imperadores, quer escravos – estamos nós vivos no lugar deles, assim como outros de nós estarão inevitavelmente quando já não mais estivermos. Além disso, olhando para a história das manifestações da Vida em universos "para trás" no tempo infinito até aqui, poderemos comprovar que viver (e morrer) é mesmo inevitável.

Quanto aos cristãos, apesar dos “grandes poderes” do “Deus” que cultuam e de crerem que Ele é o “valor supremo”, à preciosa conquista de Sua presença íntima se deve dedicar todas as forças – o que, segundo as perspectivas de Jesus Cristo, não duvido – ainda preocupadas com ganhos, perdas e se “tudo acaba com a morte”, alguns “cristãos” se perguntam por que então ser bom? Por que fazer o bem se morrem sem nada receberem em troca dos bens que promoveram? E por que “procurar ser bom” se, como está escrito que disse Jesus de Nazaré, ninguém é (ou pode ser) bom, a não ser Deus?

Diante de tantos desejos, de tantas ambições “cristãs”, o filósofo Santo Agostinho já percebera que o que poderia receber por pretender praticar o bem ele já tinha recebido. A saber: sua própria capacidade de praticá-lo.

O problema de minha aceitação da possibilidade da ressurreição de “meu” pequeno “eu” num mundo divino, paradisíaco, onde reencontrarei eus de "meus" entes queridos mortos, reside no fato de que o potencial racional que Se dotou a Vida em mim, mesmo sob perspectivas cristãs, não me permite aceitar uma justificativa qualquer a supor que a Vida eterna, sendo de fato “meu” eu mais profundo (como de tudo e todos), deve preservar, em memórias e vapores, os pequenos “eus” daqueles a quem, como eu, a ignorância, a imaginação, o egoísmo e a esperança temporariamente faz supor poderem “ser para sempre”.

Mas, já que não pode manifestar-Se materialmente como uma só “coisa”, ou como Aquilo que essencialmente é, a Vida multiplica Sua unidade essencial e distribui Sua potência vital à existência dos infinitos S’eus que, quer estrelas ou finalmente verdadeiros Homens, Se Lhe apresentará através dos capítulos seculares da história de Sua eternidade.

Em discussões entre materialistas e espiritualistas, também considerados por aqueles “idealistas” – como se também a teoria materialista não fosse o produto de idealistas a gerar ideias sobre a constituição da matéria e seus valores – digo sempre que Aquilo a quem chamamos “Deus” também pode ser reconhecido como “O Grande Materialista”. Porque, olhando para cima, para baixo e para os lados, até onde “nossos” olhos nos fazem ver (olhos que, na verdade, no fim pertencem à fome da Terra), tudo é o resultado de um grande e gigantesco "amor" aos potenciais de expressão de matérias no vazio universal.

Em Sua imensurável potência, por exemplo, a Vida não poderia ver-Se presente, viva, sem objetivar, sem materializar órgão tão complexo quanto um olho – entre outros que, se influenciando mutuamente ao bom funcionamento dos organismos, possibilita à Vida saber das múltiplas manifestações de Si mesma. E não há o que contestar sobre isso, uma vez que os olhos, como todos os elementos cósmicos e demais órgãos e organismos presentes, atestam a necessidade que a Vida teve (e tem) de ver-Se, cheirar-Se, ouvir-Se, saber-Se... – embora, em Suas últimas e primeiras instâncias (como Se Lhe diria a Vida como um poeta), o que Seu coração sente poderão ver olhos ausentes.

No centro de tudo, em essência, não há mais o que contestar sobre o fato de que todos os seres, a partir das estrelas, são apenas “simples” manifestações de uma Vida infinita que não estaciona Sua potência e Sua vontade de vir-a-ser-e-estar-para-sempre; mesmo que, aqui e ali, envelheça e, depois de falências múltiplas de órgãos, se transforme em cinzas umas tantas de Suas roupas feitas de carnes, ossos e sangue – vestes que Seus sopros de vapores vitais animam à existência ainda apenas por alguns instantes.

Para aqueles “Zezinhos”, “Huguinhos”, “Luizinhos” e outros eusinhos que querem “viver para sempre” nas dimensões da Vida eterna, em todo o Evangelho, como em outros considerados livros sagrados, devo lembrar-lhes que há sempre menção a necessidade da prática do tal despojamento, ou de nos livrar dos fardos que, material e espiritualmente – leia-se (também) mentalmente, ou psicologicamente – tornam mais pesadas suas cruzes e mais difícil, mais apertada e mais estreita “a porta” por onde se efetiva passagem de um estado de “seus” pequenos eus a outras dimensões do Ser – iniciação fundamental da Vida à escolha daqueles S’eus que, finalmente, superando o medo da morte (que inevitavelmente promove a perda da individualidade), ainda em vida, ascenderão à percepção de Suas essenciais convivências eternas. Porque ainda nesta vida, então – como também observou Jesus Cristo – serão estes que passarão da morte à consciência da presença da Vida eterna, condição essencial dos candidatos à consciência da (eterna) ressurreição da Vida, embora não necessariamente de "nossas" vidas.

Assim, entre coisas e conceitos de que devemos nos livrar, segundo Jesus e todos os santos, entre as bugigangas que a Vida, em nós, Se acostumou a entulhar em seu processo de vir a Ser e conhecer-Se, estão inevitavelmente “nossos” efêmeros eusinhos, muitos deles perversos, os quais, todavia, serviram e servem (sic) como instrumentos de conscientizações e evoluções à construção de outras dimensões cósmicas, morais e cívicas da Vida.

A segunda razão para a prática do despojamento, e da necessidade de nos esforçarmos para contribuir com um futuro mundo melhor para outros (ainda que não o usufruamos com eles, assim como outros no passado se esforçaram e se sacrificaram para que nós vivêssemos hoje melhores e mais que eles), é que assim, fazendo como faz a Vida, demonstramos que estamos mesmo sintonizados com Seus propósitos vitais. Porque, como queria Jesus Cristo, quando dividimos mais justamente os bens existentes entre os mais pobres, bens naturais ou industrializados, prestamos testemunho (prático) de que já não somos objetos se digladiando entre objetos pela posse de objetos, mas pessoas em auxílios à diminuição do desconforto dos lares, da frustração individual e da conseqüente diminuição da aumentativa violência entre nós.

E então, quando assim fizermos, poderemos mostrar à Vida que, mesmo que nosso destino seja desaparecer para sempre, procuraremos ajudá-La em Seu projeto de estar-para-sempre, contribuindo para provocar as manifestações de toda plenitude de Sua potência vital nas esferas sociais ao gozo das gerações das futuras “raça de deuses” que cristãos querem ver habitando este mundo. Contribuindo, enfim, à construção do desejado “Reino de Deus” – Reino que, segundo as expectativas de Jesus Cristo, deverá ser erguido ainda “assim na Terra como no Céu”.