O diabo entre nós

Há quem diga que a grande façanha do diabo no âmbito da raça “Humana” é fazer com que não acreditemos em sua existência.

Façanha diabólica ou não, o fato é que muito de nós é demasiadamente racional, a despeito de ser pouco informada, para se deixar influenciar pelas crenças sobre a existência de um espírito maligno a determinar desejos e suscitar ações, sendo o ato de crer alvo de críticas ferrenhas como fundamento da vida de um sem número de personagens irreais, advindas do mundo da imaginação, da Fantasia – onde se incluem as figuras do próprio diabo, de Deus ou de Papai Noel, um outro Seu representante (sendo ambos velhíssimos sábios de barbas longas a nos observar, julgar, presentear e punir). E também aquele personagem sapo que virou rei, junto com todos os outros que, nas primorosas produções cinematográficas que contam as histórias do ogro Shrek, perderam suas características de “seres maravilhosos”, personificações de belos ideais humanos, para se nos tornar semelhantes em paixões, angústias, medos e inclinações corruptas.

Compulsoriamente enterrados até o gogó no conseqüente lamaçal de merda produzido pelos atos perversos dos servos inconscientes do tinhoso – e ainda considero-os “inconscientes” por mero resquício de minha caridosa formação cristã, que me impulsiona à consideração de certa compreensão benevolente, mesmo para com os reconhecidos essencialmente perversos – são incontáveis de nós os que, embotados por todos os tipos de crenças, erguem os braços para o alto em súplicas a Deus para que, agora, já, Ele exerça Seus poderes de interventor dos males e dos “malas” que, desde a fundação do mundo, avançam a passos largos a fomentar maus desejos e dominar consciências à submissão passiva das pessoas ao estabelecimento de seus impérios de exploração desumana à proliferação das dores e das devastações de onde, como cânceres sociais, tiram seu sustento.

Motivado por suas reflexões sobre toda tolice reinante acerca da existência e da fé em deuses, Epicuro – para alguns, um dos menos substanciais filósofos gregos – questionou: “Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos ‘Deus’?”.

No livro As origens de Satanás – Um estudo sobre o Poder que as Forças Irracionais exercem na Sociedade Moderna, a professora norte-americana Elaine Pagels nos esclarece que, ainda antes da fundação do mundo, o problema do mal começou com a rivalidade entre parentes.

“Uma versão apócrifa da vida de Adão e Eva fornece uma terceira descrição da rebelião dos anjos”, escreveu ela. “No início, Deus, tendo criado Adão, chamou os anjos para admirar-lhe a obra e ordenou-lhes que se curvassem perante seu parente humano mais jovem. Miguel obedeceu, mas não Satanás, que se recusou, dizendo: ‘Por que tu me pressionas? Não adorarei quem é mais moço do que eu e inferior. Sou mais velho do que ele; ele é que deve me adorar!’”.

Embora o diabo tenha sido mostrado como uma entidade exterior independente (assim como Deus), tendo a Literatura, as artes plásticas e o Cinema contribuído decisivamente ao reforço das várias crenças que se desenvolveram em torno de sua figura mítica, então de aspectos vários que vão desde bestas asquerosas a belos sedutores exemplares “Humanos” (vide os filmes O Exorcista (1973), Advogado do Diabo (1997) e o recente Constantine (2005), tendo se tornado o primeiro dos filmes aqui citados apenas um entretenimento insosso diante do argumento inquietante e das imagens angustiantemente apocalípticas do último), embora o diabo tenha sido mostrado como uma entidade exterior todos os mais respeitados estudiosos sobre o assunto concordam que um demônio nada mais é que alguém atarefado em demonstrar uma consciência caracteristicamente desumana; ou seja, subordinada aos mesmos desejos das bestas, que se movem impulsionadas por instintos, da fera que a ancestralidade de nossa formação biológica, como recurso de sobrevivência orgânica, ainda preserva em nós – dos mais simples e prazerosos, como copular ou defecar, aos mais hediondos e humanamente indesejáveis, como prostituir crianças ou matar, quer quando agindo diretamente como assassinos, quer quando contribuindo com pensamentos, desejos e ações que levam à miséria, à doença e à morte generalizada.

Em suas reflexões posteriores, Elaine Pagels nos esclarece que Satanás, inicialmente considerado servo de Deus à tarefa de testar a fidelidade de Seus filhos (como retratado no Livro dos Números no “Caso Jó”), “não é o inimigo distante, mas o inimigo íntimo – o colega em quem confiamos, o companheiro próximo, o irmão. É o tipo de pessoa de cuja lealdade e boa vontade depende o bem-estar da família e da sociedade, mas que se torna de repente ciumento e hostil. Qualquer que seja a versão sobre sua origem que se escolha, e há muitas, todas o descrevem como um inimigo íntimo” – sendo o “inimigo íntimo” mais substancialmente identificado com aqueles maus impulsos que, aqui e ali, estão a determinar os pensamentos e as ações não apenas de nossos próximos, daqueles a quem consideramos “caros”, mas também das nossas próprias (vide Marcos 7:21-23, Bíblia Sagrada).

Graças a evidente demora das forças celestiais à promoção do Apocalipse e salvação de uns poucos representantes de uma Humanidade inconclusa, biblicamente prometida para início do segundo milênio (porque, apesar dos estragos que a Natureza provoca, ainda temos sofrido somente as conseqüências de um ciclonezinho aqui, de uma tsunamizinha ali, de uma guerrazinha acolá...), a maioria de nós tem depositado nas mãos de um sem número de poderosos demônios, espalhados em várias instâncias da administração pública, por exemplos – infelizmente, também na Igreja – a determinação dos destinos de nossas vidas.

Dessa forma, também aqueles que procuram em um Deus exterior o alívio de suas dores sofrem, cedo ou tarde, as conseqüências da desesperança – já que a esperança, “última a morrer”, tem estado sempre em coma.

É certo que a fé pode “remover montanhas”, como nos diz a metáfora cristã (embora nos contem que Jesus necessitou de auxílio de outros à remoção da pedra do túmulo de Lázaro), mas o que vimos se desenvolver até agora entre nós há gerações, graças a todos os tipos e formas de má educação espiritual, foi uma fé inconsistente porque fundamentada em superstições e na formação dos mitos – não no discernimento, no Conhecimento que nos leva à Verdade sobre o Sentido, os propósitos de toda Criação e à certeza de que somos nós, sim, nós que devemos ser os representantes, não das forças diabólicas ancestrais a persistirem no ser pré-Humano que ainda somos, mas representantes genuinamente Humanos de todo Amor, de toda Justiça que deve nos habitar desde o mais recôndito profundo de nosso espírito, “para o alto” e para fora de nossa própria consciência, para que a Religião possa substancialmente efetivar sua missão: qual seja, a promoção de uma religação, em nós, das forças que tudo regem à harmônica sinfonia da Criação e do desenvolvimento e manutenção da Vida.

Assim na Terra como no céu.