Sobre os fundamentos do Fundamentalismo

“Nosso ponto de partida foi a doutrina psicológica ‘Tú és Isto’. A pergunta que agora se apresenta muito naturalmente é metafísica: Que é o Isto com que o tu pode descobrir-se aparentado?

A essa pergunta, a filosofia perene plenamente desenvolvida, em todos os tempos e em todos os lugares, deu fundamentalmente a mesma resposta. O Fundamento divino de toda existência é um Absoluto espiritual, inefável na linguagem do pensamento discursivo, mas (em certas circunstâncias) suscetível de ser experimentado diretamente e compreendido pelo ser humano. Esse Absoluto é o Deus-sem-forma da fraseologia mística hindu e cristã. O fim último do homem, a razão final da existência humana, é o conhecimento unitivo do Fundamento divino – o conhecimento que só pode vir para os que estão preparados para ‘morrer para o seu eu’ e, desse modo, dar lugar, por assim dizer, a Deus. De cada geração de homens e mulheres pouquíssimos realizarão o objetivo final da existência humana; mas a oportunidade de alcançar o conhecimento unitivo, de um modo ou de outro, será oferecida continuamente, até que todos os seres sencientes se dêem conta de Quem realmente são”.

Aldous Huxley em A Filosofia Perene; pág. 35 – Editora Cultrix – 10ª edição, São Paulo, 1995.

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“Sou um religioso fundamentalista, e orgulho-me bastante disso”.

Assim começa o texto do professor Jonathan Sacks sobre o Fundamentalismo, publicado no Times de agosto de 2004.

Numa conversa com um amigo, fui classificado como “fundamentalista” porque defendo o argumento de que, como ele faz – junto com grande parte das pessoas que se acreditam “cristãs” – não deveríamos afirmar sê-lo, uma vez que, na atualidade, a contar com os pequenos e grandes frutos (ações) que brotam de nossas férteis árvores (“almas”), não há autênticos cristãos no mundo, cujos maiores representantes depois de Jesus foram o apóstolo Paulo, os filósofos Agostinho, Tomás de Aquino e o “primeiro naturalista”, Francisco de Assis, entre pouquíssimos outros, a despeito da multiplicação de templos ditos “cristãos” ao redor deste mundo.

Disse que fui “acusado” de fundamentalista porque, a despeito do sentido inequivocamente justo do termo a significar idéias e atitudes calcadas em justos e necessários FUNDAMENTOS ideológicos, fui peremptório ao defender determinadas idéias e valores que, quando ausentes da prática cotidiana daqueles que se dizem “cristãos”, não os credenciam a se auto-definirem como os tais, sendo tal atitude, a despeito da boa intenção de estimular hereges pecadores às práticas cristãs, um tanto leviana e irresponsável (significando a expressão “herege” aquele que se permite fazer opções a outras ideologias).

Além disso, fundamentalistas como eu, ou “quaisquer deles”, como acreditam alguns, propagam “a idéia da intolerância, do exercício do poder sem limite, da hegemonia imposta e a uma ‘absolutização’ do ego em detrimento do outro”. Contudo, como pretenso “cristão”, pense no necessário exercício de tolerância proposto pelo fundamentalismo cristão em relação àqueles que, se dizendo “seguidores de Cristo”, tratam mal e exploram negativamente o trabalho de sua empregada doméstica; ou são flagrados saindo de motéis com crianças; ou extorquem dinheiro de velhos aposentadas, dedicando depois parte do montante que extorquiu ao pagamento do dízimo; ou aqueles que pregam a união entre os povos do planeta e, com suas más ações políticas, estimulam o nacionalismo fragmentário e a desarmonia nas relações mais simples com seus próximos; ou...

Os maus exemplos abundam. Mas, por sugestão de Jesus a necessária demonstração de nossa prática cristã, será preciso que o fundamentalista cristão perdoe setenta vezes sete, e mesmo àqueles que estupraram e mataram mulheres e crianças! E isso pelo simples fato da consciência de que, ao terem agido assim, eles apenas demonstram, não sua perversidade demoníaca, sua Humanidade inconclusa, sua divindade impossível (como nos parece claro), mas uma “Humana” ignorância, uma vez que “errar é ‘Humano’” e, via de regra, a maioria de nós não sabe fundamentalmente por que faz ou tem propensão à realização de tais atrocidades, e tantas outras – a despeito da crença de que nossa tendência para o mal é inspirada por espirituais “forças exteriores”, produtoras daqueles impulsos aos quais comodamente atribui-se a gerência de “Satanás” e que, na Verdade, vem dos instintos de nossa remanescente, reincidente e, ao que parece, indômita consciência animal.

“Os fundamentalistas cristãos dão seu espetáculo nas televisões dominicais, enquanto os muçulmanos derrubam torres – e, portanto, é com estes que nos preocupamos”, observa o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco num texto sobre o assunto, além do fato de que “nem todos os terroristas são fundamentalistas, como as Brigadas Vermelhas não o eram, assim como não o são os terroristas bascos” – embora atuem inevitavelmente fundamentados em algumas crenças, observo.

Num texto pescado no site do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC), o professor Josué Candido da Silva, Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP), é de opinião de que, “dentro de um projeto mais amplo de educação para convivência democrática, o desenvolvimento da razoabilidade tem como objetivo evitar tanto o dogmatismo e o fundamentalismo quanto o relativismo”.

“O fundamentalismo é a crença na existência de uma única Verdade e na posse absoluta dessa Verdade. De modo que a única atitude aceitável é o assentimento a essa Verdade. Aqueles que discordam devem ser vistos como inimigos da Verdade, enquanto incapazes de compreendê-la ou, motivados por uma profunda má fé, tentam disseminar a dúvida como forma de espalhar o caos e, por isso, devem ser combatidos. Todos nós experimentamos hoje os efeitos do pensamento fundamentalista” – observa ainda o Prof. Josué: “O pressuposto do fundamentalismo é a aniquilação das diferenças, a homogeneidade do pensamento único, enquanto o ideal democrático é o direito à diferença como própria condição de possibilidade do convívio democrático”.

Pergunto em que se fundamenta o Prof. Josué para nos assegurar que todos os fundamentalistas querem “a aniquilação das diferenças” além do preconceito de que “todo fundamentalista é inimigo da democracia”? Não são aqueles que se dizem “democráticos” criadores e defensores fundamentalistas das idéias e dos valores que justificam a ação democrática?

Embora a expressão “Fundamentalismo” esteja comumente associada a conflitos religiosos (embora provavelmente não possa ser essencialmente dissociada de questões religiosas, ou ainda pseudo-religiosas), há também um fundamentalismo ateu, econômico, político-partidário, de direita, de esquerda, do centro, feminino, masculino, de mercado, entre muitos e muitos outros que deveriam atestar a submissão de todos à condição de fundamentalistas.

Assim, não concebo separações entre fundamentalismo, dogmatismo e relativismo, uma vez que os dogmas também são elaborados a partir de fundamentos idealistas, assim como o relativismo e seus adeptos. Por exemplo: é dogma entre os espiritualistas que “Deus é o Ser supremo, criador do céu e da Terra”, como também é dogma para o comunista, fundamentado em suas convicções políticas, que “todo capitalista é necessariamente desumano”. É dogma fundamental das feministas que, potencialmente, “todos os homens são machistas” (o que não duvido), embora não seja Verdade que todo homem é necessariamente um “porco chauvinista”. Quanto aos relativistas, fundamentam sua máxima “tudo é relativo” com argumentações que repudiam a probabilidade de um reconhecível Bem supremo, absoluto – e que até mesmo as ações praticadas por indivíduos, e/ou grupos deles, notadamente maléficas, sejam passíveis de ser reconhecidas (e perigosamente valorizadas) como “boas” e, portanto, “necessárias”.

Entre todos os relativismos dogmáticos fundamentalistas, defendidos por todos e por cada um de nós às próprias justificativas de modos válidos de permanência ou de voluntária retirada da Existência, prefiro aceitar como absoluta a idéia fundamental que me garante ser capaz de compreender o Sentido fundamental da minha vida e, a despeito do que possam asseverar os intérpretes da filosofia perene, a ainda por muito tempo misteriosa necessidade da Vida de tudo.

Fevereiro 2006