Hipertensão e Outros Significados para a Pequenez de Alguns

O assunto deste texto certamente é, para a maioria das pessoas, relevante no aspecto pelo qual deveria ser fútil e bastante indiferente no aspecto pelo qual deveria ser altamente relevante: programas de televisão.

Estudos sérios mostram que manifestamos nossa personalidade no dia a dia a partir de atitudes geridas pelo inconsciente, bem ao largo da ideia contida na expressão “fiz sem pensar”. A roupa que escolhemos pela manhã, a maneira como dispomos as mãos enquanto conversamos, os olhares que oferecemos diante de determinadas situações, os programas de TV a que assistimos, enfim, ainda somos em realidade um objeto obscuro de pesquisas. Mas já é possível determinar certos parâmetros de comportamentos segundo análise de décadas, de séculos de história de relações do elemento humano e seu mundo exterior.

Quando aceitamos passivamente inclusão de certos conceitos em nossa vida sem apararmos a mínima aresta, estamos em verdade tornando nossa mente extremamente propícia a efeitos produzidos por mentes terceiras. Isso transforma o ser humano em replicador de ilusões. Não há necessariamente que se tornar uma espécie de eremita filosófico e rechaçar toda ideia que não a própria – isso transformaria o ser humano em destruidor de novas ideias -, mas é de grande bom tom que se respeite a si próprio e se busque dentro de si mesmo base sólida para se aceitar ideias novas.

É saudável o hábito de observar incansavelmente antes de criticar, elogiando ou condenando, seja o que for. A primeira noite do primeiro Big Brother Brasil, há dez ou onze anos, deveria servir como parâmetro para o que se veria depois: a hediondez humana levada ao extremo. Nos quarenta minutos iniciais foi possível ver a dignidade humana ser posta a crivo e, infelizmente, perder força. Já nas primeiras cenas, viram-se corpos expostos como mercadoria, carreiras desenhadas em fama a qualquer custo, palavras fúteis fundamentando ideias toscas sobre relacionamento; viram-se olhares vãos em oportunidades perdidas; a condição humana de um grupo de humanos sendo manipulada à bel-necessidade do gosto de milhares de outros humanos, este medido por uma máquina que pretende traduzi-lo em número, o da audiência.

Se se usasse o bom senso, nunca mais se conseguiria ver mais nada referente ao programa.

O primeiro dia do autodivulgado show de ação e aventura que pretendia ser o Hipertensão, da emissora de TV Globo, foi algo parecido com o que Dante gostaria de imaginar para A Divina Comédia, mas sua inspiração não chegara a tanto. Pessoas com sonhos simples, com sentido de vida simples, buscando ferramentas complexas para se autodisporem em evidência. Novamente, corpos desnecessariamente expostos em movimentos em demasia calculados para aparecer na edição seguinte da revista para adultos, masculina ou feminina; fundamentos vitais do elemento humano sendo imbecilizados pela força da lente da câmara da emissora; a questão crucial dos relacionamentos humanos relegada ao calculismo dos que apenas veem a si próprios e ouvem as próprias palavras apenas; vaidade excessiva travestida de autoestima; oportunismo selvagem mostrado como competitividade.

A cabeça humana é surpreendente. A mesma mente que cria crônicas fantásticas, como as de Pedro Bial, saúda a degradação da civilização atual – via BBB - como passo rumo à evolução; a mesma boca - Glenda Kozlowski - que discute o esporte como instrumento de superação acompanha – vibra, mesmo – com cenas em que jovens ávidos por evidência ingerem poção feita de óleo, fígado cru e vermes ou enfiam o rosto num recipiente com baratas para apanhar com a boca um objeto qualquer e assim receberem o título de vencedores. Ou de heróis, segundo os critérios de Bial.

Provavelmente, Voltaire anteviu a inapetência do orgulho positivo da sociedade do séc. XXI ao dizer “Não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”. Este texto não faz apologia à censura, não propõe discussão sobre ser ou não viável que o que se vê na TV, se ouve no rádio, se acessa na internet seja antes passado pelo poder de autoridades. Longe disso. Este texto se coadunaria com Voltaire caso ele vivesse hoje e dissesse “não concordo com o que transmites em tua emissora, mas defendo até a morte o direito de o transmitires. Entretanto, dá-me também o direito de rechaçar o que idealizas com isso, se assim eu julgar conveniente”.

De outra forma, somos o que exprimimos no dia a dia. Rejubilar-se com casas reformadas e doadas a famílias nos programas de domingo não anula a mórbida curiosidade pelas desgraças dessa mesma família, antes exploradas ao máximo no mesmo programa; é estranho ver sessões de orações em prol dos desvalidos na mesma emissora na qual se veem incríveis vídeos de alcoólatras tentando subir uma rua íngreme sob gargalhadas de outros humanos; é surreal observar programas de discussão sobre pedofilia no mesmo canal em que se veem meninas sem curvas rebolando diante das câmeras e de júris que as aprovarão ou não em suas tentativas serem ridículas, sob aplauso e sorriso das mães.

“Mas há bons programas nessas emissoras”, dizem críticos cegos. Ora... sim, realmente há. E se são capazes disso, que se enalteçam os pontos bons para que se evitem os ruins. “Mas esses programas dão emprego para muita gente”, dizem os críticos hipócritas. Sim, dão. Traficantes de drogas e políticos corruptos também dão. “Mas os produtores de programas como esses buscam apenas alegrar a vida do brasileiro”, dizem os críticos ingênuos. Sim, a cocaína também pode produzir o mesmo efeito nos usuários: ilusão de alegria e prazer.

Por milênios, a natureza vem construindo a mente humana pacientemente. Tira um neurônio daqui, coloca outro lá, adapta um DNA acolá, reforça defesas ali, melhora um sistema antes inapto. Mas alguns humanos, parece, não dão conta da importância de reconhecer esse esforço. Certamente, perderão o bonde da evolução e serão engolidos por novas ordens conceituais e, no futuro, serão enumerados por cientistas como raças que foram dizimadas por algum fenômeno desconhecido.